Cláudia R. Sampaio: “Aflige-me como está o mundo. Basta sair à rua e ver, ninguém que esteja atento e lúcido consegue estar bem”
É das poetas mais necessárias e marcantes dos nossos dias. A sua poesia é desassombrada, torrencial, por vezes crua e em carne viva, com fúria, fogo, cinza e lava, delírio, abismo e subversão. Com seis livros de inéditos publicados, a obra mais recente é a antologia “Já Não Me Deito em Pose de Morrer”, com curadoria de Valter Hugo Mãe. Um livro tesouro que contém relíquias poéticas de Cláudia, que é também pintora e faz parte do projeto “Manicómio”. Ouçam-na no podcast “A Beleza das Pequenas Coisas”, com Bernardo Mendonça
Esta conversa em podcast começa por mergulhar na poesia da autora e, antes disso, na forma como a poesia a acompanha desde os 5 anos, quando Cláudia descobriu a malandrice do jogo das palavras e, através dela, a melhor forma de se traduzir.
Cláudia R. Sampaio tem seis livros de poesia publicados até ao momento: “Os dias da Corja”, “A Primeira Urina da Manhã”, “Ver no Escuro”, “1025mg”, “Outro Nome para a Solidão” e “Uma Mulher Aparentemente Viva”. E a juntar a estes foi lançada, em 2020, a antologia de poemas escolhidos “Já Não Me Deito em Pose de Morrer”, que faz parte da coleção “Elogio da Sombra”, da Porto Editora, com curadoria de Valter Hugo Mãe.
Um livro tesouro cheio de relíquias poéticas de Cláudia R. Sampaio, algumas delas que já não era possível encontrar no mercado, e que foram recuperadas nesta obra, para todas as pessoas que apreciem o que de melhor se faz na poesia contemporânea.
Na sua poesia há um lado terapêutico e também de loucura, de libertação das convenções mundanas. Numa dialética que se alimenta e se acrescenta, como se a cura estivesse numa labareda que cresce dentro de si. “A poesia não vai salvar o mundo, não cura. Mas, de alguma maneira, a arte salva-nos a todos. O mundo sem arte seria um sítio muito mais negro”, chega a afirmar neste episódio.
E aqui revelamos um poema seu, lido no arranque do episódio, sobre este desassossego que deflagra em Cláudia:
Uma vez quiseram-me louca, a arder
e eu ardi com a discrição de
um fogo posto
porque a cura vai na mesma direcção
que a nossa febre
Ateei-me como um relâmpago inesperado
à luz do dia
Eu parecia uma basílica em chamas
de altar por estrear, a arder sozinha
Sempre me recusei a arder como os outros
Ardam-se mais à esquerda ou mais à direita
mais a vento de sul ou de norte,
mas labaredem-se, sejam fogos que ardem!
Porque pior que a desdita loucura
é toda a gente andar em brasa
mas ninguém chegar a incêndio
E no fim são todos cinza
Cláudia R. Sampaio, in Ver no Escuro
Cláudia escreve para dar corpo às sombras que a habitam ou para lhes dar luz e resolver? Para que serve a poesia? E o que é um bom poema?
“A função do poeta é perceber onde está a poesia na vida e suas pequenas coisas e transcrevê-las para o papel. É buscar a música das coisas indizíveis e torná-las dizíveis. A poesia não se explica, é uma sensação. A função do poeta é olhar para as pequenas coisas, e passar para o papel coisas que não se podem dizer se não for em poesia.”, defende Cláudia.
E ainda desvenda que lhe é difícil o caminho da poesia. Que envolve trabalho, esforço e dor. E que lhe desagrada a bazófia de quem se acha mais do que é. Que se afirma poeta, com uma vaidade e superficialidade que não serve a poesia.
“É muito difícil escrever um bom poema. Faz-me alguma confusão ver à minha volta pessoas que são muito cheias de si com aquilo que fazem. Com egos balofos. Isso não serve a poesia. Tens que ter alguma humildade para escrever um poema, e fazer arte em geral. Faz bem até para teres a descoberta, esse lado incompleto que te faz querer mais e mais.”
E o que pode morar num poema? Todos os temas do mundo têm porta aberta na poesia? Até os mais insignificantes?
“Tudo pode ser matéria para a poesia. Até um par de botas. Ou as baratas da Adília Lopes. Ou os meus gatos que fazem parte da minha família. Até eu tenho um poema sobre uma infestação de baratas que sofri numa casa. Tudo o que me atormenta e me faz vibrar pode ser um poema. Neste momento, tenho um lado mais obsessivo na tentativa de decifrar o instante e a passagem do tempo."
Neste episódio olhamos pelo retrovisor, e percorremos os vários caminhos por onde Cláudia R. Sampaio já andou. Começou pelo ballet, depois foi estudar artes para a António Arroio, e em seguida para o Conservatório de Cinema. O que a levou a ser aderecista e depois guionista de cinema e televisão. Mas não gostou de escrever a metro. E em 2013 foi pela primeira vez abaixo, e internada num hospital psiquiátrico. É quando se confronta com as questões da doença e da saúde mental, uma luta que leva desde aí, e que Cláudia transforma e usa de forma contundente como matéria poética e plástica.
O tema da saúde mental é largamente abordado por Cláudia neste podcast. E a poeta deixa claro que apesar de ter passado a ser um assunto mais discutido e comum desde a pandemia, permanece em volta dele ainda muita ignorância, estigma e falta de empatia sobre o que são as doenças mentais. E sobre quem sofre delas. E denuncia aqui alguns episódios em que sofreu violência nas mãos de técnicos de saúde.
“Já sofri violência física e psicológica por parte de técnicos da área da saúde mental. Aconteceu com enfermeiros do INEM numa ambulância quando não estava bem. A pior vez, foi quando quis deixar de viver, e tiveram que me por uma sonda numa lavagem ao estômago, e os próprios enfermeiros gozaram com o meu estado, diziam que era coisa de menina mimada, que queria chamar a atenção, foram agressivos fisicamente. Tenho pena de não ter feito queixa. Custa-me pensar que isto possa ser feito a outras pessoas. Ao chegares àquele estado só precisas do oposto, de carinho, de alguém que te ajude e te ouça.”
Nesta longa entrevista, Cláudia lê dois dos seus poemas e, no final da primeira parte, é surpreendida por um áudio do escritor Valter Hugo Mãe, que lhe deixa uma pergunta que vai fundo em si.
No arranque desta segunda parte, Cláudia responde a uma pergunta do escritor Valter Hugo Mãe. E discorre sobre alguns dos medos que ainda vivem em si. E, mais à frente, é surpreendida por mais outro retrato aúdio sobre si pela também poeta Raquel Nobre Guerra, que é sua amiga íntima e a compara a uma romã de uma forma muito bela, certeira e poética. E lança-lhe também algumas achas para a fogueira das questões que ardem em acesas respostas.
Cláudia conta como os momentos de extrema dor psicológica, que a levaram a parar com tudo e a reinventar-se, foram também de certa forma uma salvação pelo corte que fez com tudo aquilo que lhe fazia mal e de que não gostava. Um ensinamento. Por isso, desde aí, Cláudia escreve poesia e pinta e ilustra.
Há três anos que é uma das criadoras residentes do Manicómio, um espaço de criação para artistas com doença mental e uma plataforma para promoção do seu trabalho. Um conceito que começou no Beato, que se mudou agora para a Baixa de Lisboa, e quesurgiu com o propósito de conquistar a dignidade e o reconhecimento dos artistas que lá trabalham. Sem horários a cumprir, o “Manicómio” oferece liberdade. A maior terapia.
E tem criado projetos maravilhosos como “as consultas sem paredes”, em que qualquer pessoa pode ter acesso a consultas de psicologia a baixo preço, no meio de obras de arte, como no Maat, Museu de Arte, Arquitetura e Tecnologia.
Cláudia revela que tem gosto em falar deste tema, para desmontar muitas ideias erradas, e por isso participa regularmente em palestras sobre saúde mental. Frisando a importância da terapia, para todas as pessoas, tenham ou não doenças mentais.
“A terapia tem sido essencial para a minha saúde mental, além da medicação. Se eu fosse um edifício o que acontece é que durante muito tempo os meus pilares estavam todos a partir-se, rachados, a caírem. Cresci assim. A ideia é substituí-los por pilares novos e sólidos para que o edifício deixe de ruir, não fique torto. É isso que se faz na terapia psicológica. Aconselho-a para toda a gente, tenha uma doença mental ou não. Ficamos a conhecer-nos melhor, a identificar padrões, medos, ansiedades e arranjamos ferramentas para estarmos mais equilibrados.”
JOAO CARLOS SANTOS
Importa dizer que a artista não gosta de dar entrevistas, foge delas, não gosta de falar dos seus livros, recusa o holofote sobre si, diz que é um bichinho, mas é um bichinho raro, daqueles que dá gosto apreciar, ler e ouvir. Já que não é feita da tal prosápia balofa, ensaiada e egocêntrica. Cláudia R. Sampaio é muito autêntica e lúcida, sobre o mundo, e isso é sempre meio caminho andado para a vertigem da conversa correr bem.
“Aflige-me como está o mundo. Às vezes questiono-me como uma pessoa pode estar totalmente bem. É impossível. A não ser que não olhes à tua volta, que tenhas palas. Há vezes em que não consigo ver notícias e não ligo a televisão por tempo indeterminado. Mas acabamos por saber. Basta sair à rua e ver certas coisas. Ninguém que esteja atento e lúcido consegue estar bem, sem estar constantemente a pedir desculpas ao mundo.”
E, como habitual, ficarão a conhecer algumas das músicas que a acompanham. Alguma da sua poesia e de outros poetas que muito estima. A artista lê dois dos seus preferidos: “O Poeta em Lisboa”, de António José Forte, e “Homens que São como Lugares Mal Situados”, de Daniel Faria.
Nesta nova temporada o genérico é assinado por Márcia e conta com a colaboração de Tomara. Os retratos são da autoria de João Carlos Santos. E a sonoplastia deste podcast é de João Ribeiro.
Voltamos para a semana com mais uma pessoa convidada. Até lá pratiquem a empatia e boas escutas!