A Beleza das Pequenas Coisas

Catarina Vasconcelos: “Faço filmes porque a minha mãe morreu e porque quero ter muitas vidas dentro desta. Filmar é viver mais"

Com a sua primeira longa-metragem, “A Metamorfose dos Pássaros”, de 2020, Catarina Vasconcelos já passou por mais de 70 festivais, depois de duas dezenas de distinções, nomeadamente o “Fipresci” da crítica do Festival de Berlim ou o prémio de melhor realização no IndieLisboa, e recebeu 4 troféus nos prémios Sophia. Esta obra, entre a realidade e a ficção, sobre a sua mãe e a sua avó, que partiram cedo demais, soma mais de 15 mil espectadores em sala, além das plataformas de streaming. Após a curta “Nocturno Para uma Floresta”, a cineasta prepara nova longa sobre a relação das pessoas com a morte e aqui desvenda mais sobre si e o seu cinema. Ouçam-na no podcast “A Beleza das Pequenas Coisas” com Bernardo Mendonça

João Ribeiro

Sonoplasta

Catarina Vasconcelos: “Faço filmes porque a minha mãe morreu e porque quero ter muitas vidas dentro desta. Filmar é viver mais"

Tiago Miranda

Fotojornalista


Quem viu no cinema a sua primeira longa metragem “A Metamorfose dos Pássaros”, de 2020, pôde sentir no grande ecrã o que é isso da transcendência da arte que nos eleva e nos cura da dor e do passado, e como se pode transformar uma história familiar aparentemente banal num filme-poema que conta um país, uma época, e as inquietações de todos nós: a morte, a perda, a memória dos que partem.

A cineasta Catarina Vasconcelos tem esse olhar certeiro para as pequenas coisas que são tanto, tanto. E prova que o cinema pode mesmo ser muita coisa, ao usar as ferramentas da ficção para puxar o lustro à memória e contar de forma mais eficaz a realidade.

O seu filme sobre duas mulheres que partiram cedo demais, a sua mãe Ana e a sua avó Beatriz, a avó Triz, não é só uma narrativa familiar bem contada, mas encontra a beleza do detalhe através de imagens que parecem pinturas, fotografias, esculturas, poesia, junto com sonho, mar, flores, árvores, pássaros e os seus antepassados. Tudo num só filme.

Catarina e a beleza de como o cinema pode mesmo salvar-nos da tristeza, do esquecimento, da alienação e da ignorância.

Consta que foi aos 15 anos que Catarina se confrontou com a frase de Dostoievski “A beleza salvará o mundo.” E essa frase passou a ser como uma lanterna nas suas escuridões, como chega a traduzir neste podcast.

“Quando li essa frase pensei: ‘que desplante’. Como é que a beleza salvará quem está a morrer de cancro? Desde quando a beleza ajudou no genocídio na Segunda Guerra Mundial? Como é que a beleza ajudou a luta das mulheres trans em Stonewall? Mas a frase nunca me abandonou. De facto, há algo de esperança na beleza. Quando tudo parece destruído à nossa volta, quando tudo parece cair e que não há escapatória possível, quando conseguimos ver beleza até num momento de tragédia e terror interno absoluto, ainda há esperança dentro de nós.”

Desde a sua estreia, a primeira longa de Catarina já passou por mais de 70 festivais, depois de duas dezenas de distinções, nomeadamente o Fipresci da crítica do Festival de Berlim, o prémio de melhor realização no IndieLisboa, e recebeu mais outros 4 troféus nos prémios Sophia. Um filme que soma mais de 15 mil espectadores em sala, além dos outros tantos nas plataformas de streaming. A fasquia está alta e o futuro é dela.

O que pode o cinema? “O cinema não pode trazer justiça à vida, mas pode trazer o ‘e se…’. E se pudéssemos pensar assim? Pode trazer uma perspetiva mais diversificada do mundo, trazer-nos mundos e realidades para os quais não estamos despertas e alertas. E pode permitir-nos olhar para ângulos mortos e trazer luz para eles. E usar a ficção para falar da realidade.” Mas nem todo o cinema é assim. Catarina alerta para o facto do cinema poder ser uma distorção da vida. E formatar existências e consciências.

“O cinema também pode destruir muita coisa e fazer muito mal. O cinema também é culpado por uma idealização das relações amorosas e sexuais, do que é um homem e uma mulher. Falo das perspectivas Hollywoodescas com que crescemos e que dificultaram um caminho mais meu.”, chega a dizer neste podcast.

Sobre o seu passado, importa dizer que no princípio estava a música. Catarina poderia ter feito parte de grandes orquestras. Começou a estudar violino aos seis anos e, apesar do medo dos pais de ter uma filha a serrar e a desafinar, tomou-lhe o jeito e o gosto e passou a ser um dos seus maiores prazeres. Mas a mãe morreu no 8º grau da escola de música, o último, e Catarina achou que não podia ficar tantas horas a estudar violino com tudo aquilo que sentia dentro de si. Precisava mudar e expressar-se de outras formas.

E foi para a faculdade de Belas Artes estudar design de comunicação. O que Catarina gostaria mesmo de ter estudado era pintura, mas sempre soube que não era grande espingarda a desenho. Por isso, às vezes ficava à porta a espiar algumas das aulas de pintura. E foi lá que descobriu a obra de Antonioni. Depois guinou para Antropologia Visual no ISCTE e Comunicação Visual no Royal College of Art, em Londres. Foi aí que assinou a sua primeira curta-metragem: “A Metáfora ou a Tristeza Virada do Avesso”, dez anos depois do falecimento da sua mãe.


Quando Catarina viu com os pais o filme “Habla Con Ella”, de Pedro Almodovar, emocionou-se muito. A mãe já estava doente. E o filme chegou a lugares muito sensíveis em si. Ao seu lado, um homem desconhecido passou-lhe um lenço de papel. E Catarina sentiu-se menos sozinha. Sentiu que nas salas de cinema há uma comunhão entre os olhos dos que vêem e dos que sentem. Uma comunhão que vem de sermos iluminados pelas imagens que passam e pelas vidas de outras pessoas, que afinal são também as nossas. É essa a grandeza do cinema. Este episódio é recordado por si nesta conversa.

E ficamos a perceber melhor como a morte da Ana significou um antes e um depois na vida da Catarina. A Ana era a mãe da Catarina. E a Catarina afirma que só faz filmes porque a mãe morreu, quando a realizadora tinha apenas 17 anos. De que outra forma poderia a Catarina continuar a procurar a mãe? E de a manter mais viva em si? Os seus filmes são uma procura de apaziguamento e catarse para os seus desconfortos e fantasmas? Qual é o maior papel do cinema? São algumas das perguntas lançadas.

E como olha para os novos movimentos identitários e queer, que reivindicam mais visibilidade, novas linguagens, novos espaços e lugares de poder?

“Acho que não se pode ser feminista sem se ser antirracista e estar nas lutas climáticas, ‘queer’, trans, anti xenófobas e reivindicar direitos iguais entre as pessoas, independentemente do género. O movimento feminista em que acredito é interseccional, inclui e abraça vários movimentos.”

Na segunda parte desta conversa, Catarina fala do poder do amor e da liberdade e responde à questão surpresa colocada pela sua companheira, a cineasta Cláudia Varejão, sobre como vê neste momento a cidade de Lisboa. O que a inquieta, preocupa e estimula? O que acha belo e feio no que se passa na sua cidade? E, sobre isso, chega a afirmar:

“É absurdo que um país que tenha um salário mínimo de 750 euros, seja um país que tenha das habitações para arrendamento mais caras do mundo. Não faz sentido nenhum. Há uma falta de visão para Lisboa, o que tem sido feito na capital tem sido absolutamente deplorável. Não há uma ideia de arrendamento para jovens, estudantes, para pessoas mais velhas.”

E como olha Catarina para o nosso país 50 anos depois do 25 de Abril? E o que importa reconstruir, desconstruir, mudar, sonhar e fazer nos próximos 50 anos para vivermos numa sociedade com menos desigualdades, ódios e ismos? Catarina responde e comenta também sobre o que importa questionar sobre os abusos de menores na Igreja, depois de ter feito parte da Comissão Independente para o Estudo de Abusos Sexuais.

Neste episódio há ainda espaço e tempo para falarmos sobre amor, humor e sobre a sua fé, nos outros, na arte e na natureza. E há lugar para a poesia e para a música que a acompanha.

Nesta nova temporada o genérico é assinado por Márcia e conta com a colaboração de Tomara. Os retratos são da autoria de Tiago Miranda. A sonoplastia deste podcast é de João Ribeiro.

Voltamos para a semana com mais uma pessoa convidada. Até lá pratiquem a empatia e boas conversas!

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: oemaildobernardomendonca@gmail.com

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