A Beleza das Pequenas Coisas

Cláudia Varejão: “O cinema é um lugar de libertação. E se a vida fosse assim? Os meus filmes são possibilidades de fazer diferente”

Em 2022, com a longa-metragem “Lobo e Cão”, a cineasta Cláudia Varejão recebeu o prémio principal da secção “Dia dos Autores”, no festival de Cinema de Veneza. Um filme que aponta a câmara a jovens “queer”, com orientações sexuais e identidades de género diversas, que vivem numa comunidade pobre e opressiva da ilha de São Miguel, nos Açores. A poucos dias da 95ª cerimónia dos Óscares, quando questionada se esse troféu está no horizonte, responde: “Um Óscar? Seria uma trabalheira. O que mais desejo é poder morrer a filmar, e estar insatisfeita e curiosa até ao fim." Ouçam-na no podcast “A Beleza das Pequenas Coisas”, com Bernardo Mendonça

Cláudia Varejão: “O cinema é um lugar de libertação. E se a vida fosse assim? Os meus filmes são possibilidades de fazer diferente”

José Fernandes

Fotojornalista

O último filme da cineasta Cláudia Varejão passa-se na ilha de São Miguel, nos Açores. E aponta a câmara a um grupo de jovens “queer”, com orientações sexuais e identidades de género diversas, que vivem numa pobre e opressiva comunidade de pescadores da região. Na longa-metragem “Lobo e Cão” conhecemos rapazes e raparigas gay, trans e pessoas não binárias que são também ilhas ancoradas num mar de gente normativa e conservadora. E que lutam para existir num lugar com escassos recursos e pouca escolaridade onde o sonho não vai além do horizonte daquele oceano e em que a tradição e a religião rimam tantas vezes com opressão e prisão.

“É pecado querer?” - pergunta a dado momento Ana, uma das protagonistas que se envolve com a amiga Cloe, que veio do Canadá, e que tem como melhor amigo Luís, que gosta tanto de vestidos como de calças. “É pecado querer? É porque quando eu quero, quero muito. Não caibo aqui na ilha.” Nesta obra, a cineasta Cláudia Varejão tem o mérito e o rasgo de dar voz a uma comunidade esquecida e marginalizada de São Miguel - que vive ainda sob o manto hipócrita e cruel da culpa e do pecado - um manto tecido desde tempos imemoriais pela Igreja Católica e que ainda dita em pleno século XXI, quem é anjo e quem é demónio. Quem é querubim e quem é satanás. Quem é pecador e quem não é. Maltratando, humilhando e penalizando tanta gente que quer apenas ser quem é e amar e desejar livremente e saudavelmente, fora dos moldes onde só alguns cabem, e que estão na base dos preconceitos e violências que ainda acontecem por todo o país.

Sobre a cruz que a religião representa para muitas pessoas, a cineasta chega a dizer: "O dogma da Igreja é muito castigador e tem espalhado terror na vida de muitas pessoas. Se a Igreja se permitir integrar a diversidade, deixa de existir enquanto lugar de controlo social, e de padrão hetero-normativo da vida humana. O padrão do homem e a mulher que procriam e a ideia de que a sexualidade só existe para a procriação. Esta é uma forma de controlo social.”

Neste filme de Cláudia - “Lobo e Cão” - aborda-se a descoberta da sexualidade e o desejo dos corpos, mas também a vontade destas pessoas serem livres e de se soltarem de amarras e prisões. E celebra-se o poder da união, da amizade e das comunidades.

Mas a cineasta não se coloca de fora da equação. E afirma neste podcast: "Cresci sem cinema 'queer'. Sem representatividade. Durante muito tempo senti-me uma ilha, em segredo. E onde há segredo, há vergonha, há medo. Não sou apologista do segredo. E o que a arte traz é que as pessoas não tenham que viver em segredo, mas em partilha. Ficarei contente se com os meus filmes contribuir para a diversidade e para que as pessoas respirem e se encontrem"

E porque tantas vezes a realidade ultrapassa a ficção, ou inspira-a fortemente, “Lobo e Cão” é o resultado do confronto de Cláudia com o sofrimento de muitos destes jovens que conheceu naquela ilha, quando ali fez uma residência artística há uns anos. E convidou vários deles e delas a representarem a sua própria vida na ficção. Pode um filme criar mudança e projetar e sonhar grandiosos futuros?

Cláudia provou que sim, já que ao longo do processo criativo desta obra ajudou a criar a associação (A)MAR, o primeiro centro de apoio às pessoas LGBTI+ da região autónoma dos Açores, que passou a dar resposta ao sofrimento e isolamento destes jovens, através de espaços seguros e inclusivos, dando-lhes visibilidade, representatividade e voz. Eis a prova de como um filme pode expandir e alargar o horizonte de um lugar. Ou criar um quase milagre. E isso é grandioso e belo. Como é o seu filme.


Importa destacar que “Lobo e o Cão”, estreou na 79º edição do Festival de Cinema de Veneza e foi distinguido com o prémio máximo da secção “Dia dos autores.” E, mais recentemente, recebeu um dos Prémios Arco-Irís 2021-2022, da ILGA Portugal.

Do seu currículo destaca-se a trilogia de curtas-metragens “Fim-de-semana”, “Um dia Frio” e “Luz da Manhã”, a longa-metragem “Ama-San” - um retrato de mergulhadoras japonesas que apanham pérolas numa tradição milenar, - que lhe valeu dezenas de prémios em todo o mundo, seguindo-se “No Escuro Do Cinema” “Descalço Os Sapatos” e “Amor Fati” (que lhe valeu o Prémio Sophia em 2021.)

Os seus filmes têm sido selecionados e premiados pelos mais prestigiados festivais de cinema, passando por Locarno, Roterdão, Visions du Reel, Cinema du Reel, Karlovy Vary, Art of the real - Lincoln Center, a referida Bienal de Veneza, entre muitos outros. Mas quando questionada sobre se tem no horizonte ganhar um Óscar, responde: "Um Óscar? Seria uma trabalheira. Gostava era de ter sempre dinheiro para filmar. Se para isso tiver de fazer fretes em cerimónias mais ou menos pomposas, entro no jogo. O que mais desejo é poder morrer a filmar, e estar insatisfeita e curiosa até ao fim."

Importa referir que o seu trabalho, tanto no cinema como na fotografia, documentário ou ficção, vive da estreita proximidade com os retratados. Conseguindo a confiança das pessoas para se revelarem na sua intimidade. Como chega Cláudia às pessoas? Como as conquista? Aqui neste episódio em podcast, a cineasta revela como o faz. E o que a move.

A cineasta afirma que através do cinema quer criar encontros, experimentar possibilidades. Mas os filmes não podem também ser desconforto e confronto? A pedra que se joga no charco, para agitar as águas e trazer à superfície o que ninguém vê ou poucos querem ver? Qual o maior papel do cinema? É questionar, encontrar respostas, fazer sonhar? "O cinema é um lugar de experimentação e de libertação. E se a vida fosse assim? Os meus filmes são pequenas possibilidades de justiça poética, de experimentar na ficção fazer diferente do que fazemos na vida. "

A conversa continua por muitos outros caminhos, onde não escapa o tema do amor e do humor. E Cláudia ainda nos dá música e lê textos de Paul B. Preciado e André Tecedeiro.

Como sabem, o genérico é uma criação original da Joana Espadinha. Os retratos são da autoria de José Fernandes. A sonoplastia deste podcast é de João Luís Amorim.

Voltamos para a semana com mais uma pessoa convidada. Até lá, já sabem: pratiquem a empatia, boas escutas e boas conversas!


Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: BMendonca@expresso.impresa.pt

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