Capicua: “Os homens nunca são fãs das mulheres. Nos concertos delas é raro estarem homens na primeira fila. Género não deveria ser critério”
É uma das vozes femininas da música mais comprometidas a elevar a sua arte a um lugar de reflexão cultural, social e política. E fá-lo sabendo que as palavras podem ser uma boa arma contra a alienação. Capicua, ou Ana Matos Fernandes, afirmou-se no rap há mais de uma década, provando que esse lugar também pode ser delas, com novas rimas e narrativas. Aos 40 anos, a artista afirma que não é fácil para uma mulher amadurecer nos palcos. "Na música o envelhecimento das mulheres é completamente desautorizado e desaconselhável. Vou ter que inventar como isso se faz.” Nesta conversa Capicua fala ainda dos desafios da maternidade e da exaustão feminina que afirma partilhar com todas as mulheres. “O feminismo não é um Porto-Benfica, é uma luta pela igualdade, pelos direitos humanos e também é bom para a saúde mental dos homens.” Ouçam-na no podcast “A Beleza das Pequenas Coisas” com Bernardo Mendonça
Parece ter sido ontem, mas passou uma mão cheia de anos desde a última vez que Capicua foi a este mesmo podcast. Mas tanta coisa aconteceu desde aí, na sua vida e no mundo, como a pandemia, a guerra e a crise, que valeu este regresso no arranque desta nova temporada de conversas.
Comandante da guerrilha cor de rosa, não se fica pela pose postiça do “quadrado perfeito” das redes sociais, já que é politicamente comprometida com movimentos e causas sociais que lutam pela igualdade de direitos e oportunidades de todas as pessoas, independentemente do seu género, etnia, nacionalidade, género ou sexualidade.
E em tempos de grandes ameaças à democracia, é importante escutar com atenção pessoas como a Capicua. “A arte é um antídoto para o populismo, ódio e falta de empatia porque nos aproxima dos outros. É uma cadeia de bons contágios.”, chega a declarar neste podcast, e junta várias críticas à falta de mulheres e pouca diversidade nos cartazes dos festivais de verão além da diferença nos cachets entre os homens e as mulheres artistas.
"Para além da óbvia desigualdade de género e falta de diversidade e representatividade nos cartazes dos festivais, desconfio que a diferença na remuneração das artistas femininas e dos artistas masculinos na música é profundíssima. Mas é um palpite, não há estudos sobre isto."
Autora de duas mixtapes, três álbuns em nome próprio, dois discos-livros para crianças, um disco luso-brasileiro colaborativo e um EP ao vivo, Capicua tem provado que é mulher de múltiplos talentos e, depois do seu belíssimo álbum “Madrepérola”, este ano escreveu todas as 11 letras do novo disco da fadista Aldina Duarte, previsto para 2024.
E se nesta vida podemos ser muitas coisas e reinventarmo-nos em várias versões e peles, no arranque desta conversa é lançado um bordão brasileiro, para melhor percebermos como Ana Matos Fernandes se vê atualmente: Quem é Capicua na fila do pão? A resposta acaba por se condensar numa só palavra que diz muito sobre si. E nesta primeira parte ainda surge um depoimento da fadista Aldina Duarte, junto com uma pergunta que a leva a mergulhar mais a fundo sobre uma certa solidão no mundo artístico.
Nesta segunda parte da conversa, Capicua responde a Aldina Duarte sobre como se relaciona com a ideia de solidão artística, as suas ambições e sonhos e critica a nova ditadura do algoritmo, que perverte a validação dos artistas e os convites para festivais. "Gostava que os programadores musicais dessem mais espaço às mulheres e fossem imunes à ditadura do algoritmo. Se não és 'influencer', com muitos seguidores, 'streamings' e 'views' consegues menos concertos. A validação artística está mais quantitativa"
Capicua fala também sobre a exaustão feminina, que é todo um tratado de desigualdade de género que se perpetua, e diz: “Se nós pensarmos que nos últimos milhares de anos as mulheres estiveram em casa a limpar rabos, a fazer sopa e a limpar o chão, percebemos que essa metade da Humanidade podia ter estado a fazer música, literatura, ciência, tudo. Foram elas que alimentaram a força de trabalho do amanhã. Apesar dos avanços, à minha volta ainda não vejo a divisão de tarefas entre homens e mulheres no 50/50.”
Do rap ao fado, Capicua tem feito um caminho artístico muito singular. Por que mares quer continuar a navegar? A pergunta é-lhe feita nesta segunda parte. E se o futuro do rap promete ser dela, Capicua afirma que terá de forjar como amadurecer nos palcos. “Vou ter que inventar como é que se envelhece sendo mulher e fazendo rap em Portugal. Reparei que os Rolling Stones vão ter um disco novo e estava a ver aqueles octogenários roqueiros a abraçarem-se no palco e a imaginar se fossem quatro mulheres octogenárias abraçadas num palco, no meio das guitarras e dos amplificadores. As pessoas iam ridicularizá-las...”
A escrita para crianças é já uma das suas praias, e acaba de lançar mais um livro, chamou-lhe ‘Cor-de-Margarida’, feito em prosa, rosa e margarida e que partiu do desafio de Romeu, o seu filho, à hora de deitar: “Conta uma história da tua cabeça mãe!”.
E Capicua mergulhou fundo na sua criança interior e contou uma história bonita sobre a importância de vivermos bem na nossa pele. Ou como ela canta no tema “Gaudi”, há que aceitar a imperfeição para ser a melhor versão de si. E para isto terá ajudado o que afirmou sobre si nesta conversa, sobre não temer atirar-se para áreas que não domina: “Tenho a autoestima das infâncias felizes." Por fim, revela algumas das músicas que a acompanham e a inspiram.
Nesta nova temporada o genérico é assinado por Márcia e conta com a colaboração de Tomara. Os retratos são da autoria de José Fernandes. A sonoplastia deste podcast é de João Martins e João Ribeiro.
Voltamos para a semana. Até lá pratiquem a empatia e boas conversas!