A Beleza das Pequenas Coisas

Gisela Casimiro: “Acontecem-me pessoas que se transformam em poemas. Mas a poesia surge-me até na piscina quando reparo numa luz diferente"

Há três anos, um poema seu afixado na rua criou um tremor na polícia e foi alvo de um processo judicial por chamar a atenção para a realidade do racismo nas forças policiais. O caso foi arquivado, mas a polémica gerada em torno do seu poema ‘Quando For Grande’ chegou a ser comparada à da obra “Novas Cartas Portuguesas”, das ‘três Marias’, que viram a sua escrita feminista ser julgada em tribunal em plena ditadura, em 1973. Este mês, a escritora, poeta e dramaturga Gisela Casimiro acaba de publicar dois novos livros autobiográficos: um de poesia, “Giz”, e outro de crónicas, “Estendais”, onde partilha as suas dores, alegrias e sonhos e as das pessoas com quem se cruza nos transportes públicos, nos mercados, na rua, na vida, como uma garimpeira que sabe reconhecer a riqueza das histórias mundanas. Ouçam-na no podcast “A Beleza das Pequenas Coisas, com Bernardo Mendonça

Gisela Casimiro é escritora, poeta, artista, curadora, tradutora, dramaturga, performer, ativista portuguesa, leitora compulsiva, voyeur de pássaros logo pela matina, “mulher Hércules” que abre frascos difíceis como ninguém, fazedora de sonhos e de bons bolos que animam a alma, amante de estendais e de pessoas, alguém que gosta de tirar fotos “com a cara no mato, em jardins, enfiada nas flores”, como uma abelha rainha. Uma olheira que encontra a figura da princesa Diana em chás adelgaçantes e que… torce sempre para que toda a gente que corre apanhe os seus autocarros, comboios, barcos. E como escreve no seu instagram é também “memeóloga”, ou seja, assume-se como uma conhecedora dos “memes” que por aí navegam nas redes e nos provocam bons sorrisos. Em suma, Gisela é uma mulher múltipla, e de várias latitudes e geografias, que nasceu na Guiné-Bissau, cresceu em Alverca do Ribatejo, vive em Lisboa e é uma voz que se projeta para o mundo e mais além com o seu segundo livro de poesia “Giz”, depois de “Erosão” (2018), e que publicou também há uma semana o livro de crónicas “Estendais”.

O músico brasileiro Emicida é certeiro na forma como descreve a poesia de Gisela no prefácio da obra “Giz”: “A sua caneta pode ser uma navalha ou uma folha que suavemente passeia junto ao vento.” E ainda acrescenta: “Se existe um tipo de história que nos coloca para dormir, a poesia de Gisela desperta-nos. Para dentro e para fora. Para onde importa, eu acrescentaria.” Fim de citação. E a poeta e dramaturga Maria Giulia Pinheiro junta mais esta achega sobre Gisela: “Ela é felina, sorrateira, sabida, charmosa e perigosa, perigosíssima: unhas grandes, dorso em contorsão, pelo arrepiado em cada um dos seus poemas. Aos poucos, os seus sonhos serão os sonhos dela e os dela serão os seus. Você se tornará ela e o avesso dela.” Fim de citação.

Enquanto cronista, Gisela é uma contadora de histórias do quotidiano, uma garimpeira que recolhe o ouro que sai da boca das pessoas comuns, e que coleciona a riqueza humana que reluz e se ouve a bordo dos autocarros, ao volante de um Uber ou mesmo num mercado apinhado de gente. E tem o talento raro de saber observar e escutar essa beleza das pequenas coisas, que poucos reparam, valorizam, atrasam o passo ou voltam atrás. Como quando Gisela percebeu que mais importante do que chegar depressa ao seu destino era voltar uns metros atrás para perguntar a um sem-abrigo, “o que estava a ler?” E isso é maravilhoso.

Na primeira parte da conversa neste podcast, Gisela Casimiro revela o caminho que andou até chegar à escrita literária e como um emprego comum, há uns anos, “noutra vida”, que a levava a entrar na casa das pessoas que recorriam aos serviços da empresa de comunicação onde trabalhava e a testemunhar as suas intimidades dando-lhe acesso a momentos surreais, ou à literatura e poesia do quotidiano. O facto de Gisela andar muito de transportes públicos também lhe tem dado acesso à beleza das pequenas coisas que pode ser lida nas suas obras.

A escritora revela também neste episódio, algumas das suas eternas dores, os pesos que carrega ou vai perdendo e partilha ainda como ao longo da sua vida ouviu tantas pequenas coisas feias, ditas sem noção, sem conhecimento, por vezes até sem intenção, mas que acabaram por ficar em si como farpas impossíveis de tirar. A sua escrita tem servido de pinça para aliviar essas farpas da memória? A resposta de Gisela pode ser ouvida nesta primeira parte.

Gisela recorda também o episódio em que um poema seu que esteve exposto na rua ter sido apreendido pela polícia, em 2020, e a pessoa que os colava nas paredes ser alvo de um processo judicial. O poema chama-se “Quando for grande”, que faz parte da sua obra “Erosão”, e fala sobre racismo e violência policial. Um poema que não é só poesia, mas uma reflexão e uma denúncia sobre a violência discriminatória que as forças policiais dirigem a pessoas racializadas, não só em Portugal como no resto do mundo.

O processo, entretanto ficou resolvido e arquivado, mas Gisela lamenta o facto desse seu poema ainda não estar obsoleto. E sublinha neste episódio:

“Há um racismo estrutural vigente e há amnésia. Basta verem o selo comemorativo das Jornadas da Juventude que é ofensivo. Não só porque é no Padrão dos Descobrimentos, mas lembrando a infame estátua de Padre António Vieira, está o Papa, vários jovens e um deles negro ajoelhado e uma das meninas tem a mão em cima dele. É uma identidade nacional distorcida, que se baseia em princípios coloniais, hegemónicos, imperialistas e racistas.”

Sobre o apelo da escritora moçambicana Paulina Chiziane, que ao receber há dias o Prémio Camões defendeu que a língua portuguesa, para ser de todos os povos que a falam, precisa de "tratamento, limpeza, descolonização", dando como exemplo a maneira como algumas palavras surgem definidas nos dicionários Gisela chega a considerar:

“Ainda há muitas coisas para corrigirmos nos dicionários e no nosso discurso, como a expressão ‘denegrir’ por exemplo. A escritora Paulina Chiziane deu o exemplo de como vem no dicionário a palavra “catinga”. A língua tem muitas ciladas e eu não sou imune a elas. É preciso irmo-nos educando, aprendendo, corrigindo, porque a língua é um organismo vivo e as pessoas é que fazem a língua.”

Na segunda parte desta conversa, a escritora Gisela Casimiro responde a uma mensagem áudio que o músico e amigo Dino D´Santiago gravou para este podcast, fala sobre temas difíceis sobre as quais escreve como o aborto, e outras violências, como a pele e o cabelo das pessoas negras são ainda alvo de racismo e até de assédio ou apropriação cultural.

“Para além da pele, o cabelo é um elemento do nosso corpo onde o racismo se verifica mais. Chega a haver escolas e locais de trabalho em que no regulamento não se pode ir com tranças, ‘dread locks’, mas apenas com o cabelo desfrizado, liso, esticado. É uma imposição em que certos cabelos não são vistos como aptos a estar no espaço de trabalho, de educação, do que for. Isto além da questão das pessoas assediarem e tocarem no nosso cabelo sem autorização. Por fetiche e exotização.”

A escritora fala ainda de sonhos como fontes de inspiração, de relações e do amor em tempos de apps, de como projeta o seu futuro e dos muitos lugares que ainda quer ocupar e cidades no mundo onde quer experimentar morar. E lê alguns dos seus poemas, um excerto do seu livro de crónicas e ainda um texto da escritora e poetisa americana Maya Angelou. E ainda nos dá música. E revela um pouco do romance que está a escrever.

Como sabem, o genérico é uma criação original da Joana Espadinha. Os retratos são da autoria de Nuno Fox. A sonoplastia deste podcast é do João Ribeiro e teve o apoio em estúdio de João Martins.

Voltamos para a semana com mais uma pessoa convidada. Até lá, já sabem: pratiquem a empatia, boas escutas e boas conversas!

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: BMendonca@expresso.impresa.pt

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