A Beleza das Pequenas Coisas

Luca Argel: “O passado colonial é uma ferida não tratada, está na origem de desigualdades e boa parte da sociedade está em negação”

Há semanas o cantautor luso-brasileiro Luca Argel assinou no jornal “Público” a crónica “Peça desculpas, senhor Presidente”, dirigida a Marcelo Rebelo de Sousa - que virou canção - como um pedido de reconhecimento das raízes de velhos problemas assentes no colonialismo português. “É olhando para o passado que a gente compreende o presente e projeta o futuro.” O seu álbum “Samba de Guerrilha”, de 2021, é a prova que as canções de intervenção podem ser samba e sonhar transformações sociais. “A arte estará a cumprir o seu maior potencial quando desconforta e comove. Gosto da música que confronta.” Autor de inúmeros livros de poesia - publicados em Portugal, Espanha e Brasil - Luca tem dado que falar com o tema “Países que ninguém invade” que cantou em dueto com “A garota não” e lança agora novo disco, “Sabina”, dia 22 de fevereiro, com canções solares e dançantes que evocam os corpos invisíveis da vida quotidiana. “Gosto de provocar.” Ouçam-no no podcast “A Beleza das Pequenas Coisas”, com Bernardo Mendonça

Talvez antes de ouvir este podcast valha a pena ouvir antes o álbum “Samba de Guerrilha”, lançado por Luca Argel, em 2021. Um disco que não é só um disco, masque é um acontecimento, uma aula de história cantada e musicada sobre a história do Brasil ao ritmo do samba e da voz suave e açucarada de Luca Argel e das narrações cortantes de Telma Tvon. Disco esse que tem subido aos palcos como aula e espetáculo a resgatar a história política do samba, dos seus protagonistas e do papel preponderante que desempenharam na luta contra a escravatura, o racismo, o colonialismo, a pobreza e a ditadura militar.

A obra de Luca é a prova que as canções de intervenção estão vivas e podem ser reinventadas, podem ser samba, e são essenciais para se entender melhor o presente, e alcançar um melhor futuro, através dum olhar bem lá para trás. Com espírito crítico, empatia e humildade. E, por vezes, nesse processo pode valer a pena uma nação pedir desculpa por uma questão de empatia e justiça histórica. Por isso mesmo, Luca Argel assinou há semanas uma crónica de opinião no jornal Público, intitulada “Peça desculpas, senhor Presidente”.

Na dita crónica endereçada ao Presidente da República, que virou canção, Luca chega a escrever: “Mas ainda que tarde, Portugal deveria pedir desculpas. Nesta frase “pedir desculpas” não quer dizer mudar o passado. Também não quer dizer “indemnizar”, que é outro verbo e chama outra conversa. Não quer dizer humilhar-se, autoflagelar.se, muito menos fraturar identidades. Pedir desculpas, como qualquer criança é capaz de aprender, é simplesmente um gesto de empatia. Indicativo não de fraqueza, mas de grandeza de espírito. O exercício do perdão (o pedir e o conceder) talvez seja a mais central das premissas cristãs. Por isso é espantoso que logo o país de Fátima ainda não o tenha feito.”

O passado colonial é ainda uma ferida que está longe de cicatrizar? Luca responde que sim, e que boa parte da sociedade portuguesa está em negação. E aponta para os riscos da velha narrativa sobre a expansão marítima : “A glorificação do passado colonial é problemática porque apaga as violências que aconteceram ou relativiza-as e cria mais dificuldade de encontrar o legado dessas violências no presente e de sentir empatia e de perceber porque é que determinados segmentos da sociedade têm mais ou menos riqueza ou mais ou menos acesso a direitos básicos como habitação, saúde e educação de qualidade.”

Ainda sobre passados, mas neste caso o seu: Luca Argel nasceu no Rio de Janeiro, cresceu na Tijuca (não confundir com Barra da Tijuca!), bairro de classe média remediada, que outrora foi um grande pântano (Nota curiosa: Tijuca em língua Tupi quer dizer “água podre”). Formado em música pela Unirio e mestre em Literatura pela Universidade do Porto, teve 20 valores na tese que assinou com o nome: "Meigo Energúmeno. Uma leitura feminista da poesia de Vinicius de Moraes". Um trabalho de investigação onde questioa um certo machismo e masculinidade tóxica encontrada na obra de Vinicius. Há certas músicas e obras de arte que não envelhecem bem? Luca responde que sim, e explica neste podcast o que leva uma obra a envelhecer mal.

Luca costuma dizer que não chegou a Portugal, em 2012, para ficar. Foi ficando. E mantendo uma criação transatlântica tem assinado diversos livros de poesia publicados no Brasil, em Espanha e em Portugal, um dos quais foi semifinalista do Prémio Oceanos 2017, um dos prémios literários mais importantes da língua portuguesa. O seu último livro de poesia tem um título dos diabos: “Fui ao Inferno e lembrei-me de ti”, onde mora um poema dedicado às casas no inferno habitadas por turistas e que jogam a população para a periferia. Uma realidade infernal vivida por muita gente.

Sobre os processos criativos, Luca chega a afirmar nesta conversa em podcast: “Para a poesia acontecer tenho que estar disponível para ela. E tento estar preparado para não a deixar escapar. Mas acontece nos momentos mais inoportunos. Acontecem-me, por vezes, poemas quando estou no banho e não tenho onde anotar. Sei que há telemóveis à prova de água…”

Nesta conversa em podcast que vai a muitos lugares, Luca fala de como o Carnaval no Brasil pode ser libertador e expressão de um povo sofrido. “O Carnaval de rua no Brasil é uma festa altamente subversiva, de inversão de papéis sociais e tem um grande apelo à liberdade. É quando toda a população pobre da cidade toma conta das ruas, para se transformarem num pedaço de coletividade e de purpurina soprada pelo vento. O sofrimento que as pessoas têm no resto do ano e a alegria que demonstram no carnaval têm a mesma amplitude.”

Autor dos álbuns “Tipos que tendem para o silêncio”, de 2016, “Bandeira”, em 2017, “Conversa de Fila”, em 2019, e o já referido “Samba de Guerrilha”, em 2021, tem dado que falar nos últimos tempos com a maravilhosa música “Países que ninguém invade”, que fez com Catia Mazari Oliveira (A garota não) depois de se ter cruzado com ela numa homenagem a Chico Buarque. Se ainda não ouviram este tema, não deixem de o fazer. E fiquem atentas e atentos ao que vem aí. Luca Argel lança agora no próximo dia 22 de fevereiro o novo álbum “Sabina”, considerado “o trabalho mais solar e dançante que o cantautor luso-brasileiro já concebeu até hoje”.

O foco é agora dirigido à memória de Sabina, uma quitandeira desalojada do seu posto de venda, no século XIX, e entre canções e narrações, evoca-se este “corpo encantado das ruas” e os “atores” e “atrizes” da vida quotidiana onde a história se desenrola para lá das narrativas oficiais. Por outras palavras, é um disco sobre os invisíveis sempre presentes no quotidiano da história do Brasil. E não só. E que aponta para novos caminhos… para “que qualquer Sabina, daqui pra frente, possa contar sua própria história.”

Crítico e atento à atualidade, o músico chega a mostrar o incómodo com uma notícia que leu recentemente sobre Cláudia Simões, a portuguesa de 42 anos que terá sido agredida por agentes da PSP em 2020, na Amadora, em frente à filha Vitória, de 8 anos. “Li que a Cláudia Simões, no processo contra os polícias que a espancaram, também será arguida. Por ter supostamente agredido os polícias. Não sei que tipo de Justiça é esta, sinceramente.”

Neste podcast, Luca chega a tocar e cantar por diversas vezes e a ler uma crónica do escritor brasileiro Victor Heringer. E ainda é surpreendido por uma intervenção de “A Garota Não”. Isto e muito mais para ouvirem neste episódio em podcast.

E tomem nota: Este novo trabalho de Luca Argel é apresentado ao vivo no próximo dia 23 de março no b.Leza em Lisboa e no dia 26 de março no Novo Ático, no Coliseu do Porto.

Como sabem, o genérico é uma criação original da Joana Espadinha. Os retratos são da autoria de José Fernandes. A sonoplastia deste podcast é de João Martins.

Voltamos para a semana com mais uma pessoa convidada. Até lá, já sabem: pratiquem a empatia, boas escutas e boas conversas!

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: oemaildobernardomendonca@gmail.com

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