A Beleza das Pequenas Coisas

Mísia: “Com a crise as pessoas estão preocupadas em sobreviver e os artistas ficarão a cantar na internet com pijama e a mostrarem os calos”

Mísia abre o seu coração e regressa com novo disco, “Animal Sentimental”, que vem com um livro autobiográfico, onde a cantora faz um ‘rewind’ à sua vida pessoal e artística. E aqui recorda as suas muitas vidas e capítulos, fala pela primeira vez da matriz de abandono que vem da infância, da inveja portuguesa de que foi alvo, da luta com a doença oncológica, o episódio de violência doméstica num casamento passado e o seu namoro com a morte e vontade de celebrar a vida e os poetas. “Sou mesmo um animal sentimental. Isso salvou-me sempre. Fez-me sentir que estava viva. Mesmo na dor existi com muita força.” Sobre a crise deixa o recado: ”Não temos uma verba para a Cultura minimamente digna. Não somos tratados com o respeito que deveríamos ter." Ouçam-na no podcast “A Beleza das Pequenas Coisas, com Bernardo Mendonça

Mísia é uma mulher brava, artista única no fado, complexa e contrastante, “ora Manoel de Oliveira, ora Almodôvar”, como ela própria diz de si, que sempre soube trilhar um caminho próprio, sem hesitar fazer a barba ao fácil, ao piroso, à imitação, à moda. Fez-se Mísia, mas nasceu Susana, filha de uma bailarina espanhola e de um ‘outsider’ de uma família da alta burguesia do Porto. E neta de uma semivedeta frívola de burlesco e vaudeville, a sua avó “Yaya”. Ora com tantas plumas e castanholas no sangue, parecia estar desde sempre escrito nas palmas da sua mão a estranha forma de vida de artista que viria a ter.

E depois de um percurso errante, em que foi bailarina ou dançarina de burlesco - entre Barcelona e Madrid - encontrou no fado a melhor forma de traduzir as suas dores e emoções. Em 1991 gravou o seu primeiro disco, “Mísia”, numa década em que o fado estava demasiado conotado a um símbolo do Estado Novo, que perpetuava a ideia de uma casa portuguesa, singela, com certeza, com pão e vinho sobre a mesa e o conforto pobrezinho do lar. Mísia teve desde aí a inteligência, a ousadia, a modernidade e o rasgo de querer fazer diferente, em busca de cantar os melhores poetas, sem nunca cair no erro de imitar a inimitável e deusa maior do fado, Amália Rodrigues.

Mísia nunca foi a nova Amália, nem nunca quis ser uma Celine Dion do fado. A artista sempre soube criar um estilo só seu, sem pedir licença, sem se curvar às tradições e aos mandamentos do patriarcado, para reinventar um fado à sua maneira e medida. E, como ela própria assumiu, terá pago alguma fatura por isso, sempre mais amada e premiada no estrangeiro do que no seu próprio país.

Mísia chega a afirmar neste podcast: “A Celine Dion é que começou com essa coisa do virtuosismo da voz. No fado, o texto, o poema, é importantíssimo, e fica esvaziado e banalizado por aquela performance quase circense para ver quem é que grita mais no fado. Há uma banalização que faz perder o sentido trágico do destino que há no fado”.

O que importa salientar é que ao longo de mais de 30 anos, Mísia nunca perdeu a curiosidade, a exigência, a capacidade de surpreender, de se elevar e reinventar com fados gigantes assinados por autores maiores como José Saramago, Agustina-Bessa Luís (que para ela escreveu o seu único poema), Lídia Jorge, Vasco Graça Moura, Mário Cláudio, Helia Correia, Amélia Muge, Tiago Torres da Silva. Ou Jorge Palma, Vitorino e Sérgio Godinho.

Com 13 discos gravados e uma carreira consagrada internacionalmente, que levou a alguns dos maiores e mais prestigiados palcos do mundo, Mísia ficará certamente na história do fado, como das mais originais e ousadas. Que soube seguir pelas portas abertas por Amália, em territórios distantes como o Japão. E conquistou o coração de terras como Istambul, Nápoles e Buenos Aires, onde o público a aplaude como se fosse deles. E verdade seja dita, por cá conquistou um grupo de “misianos”, como ela carinhosamente os chama, feito de artistas, intelectuais, e comunidade LGBTQIA+, que vêem nela uma figura pop e à frente do tempo.

Isto em contraste com um certo sentimento de desamor, num certo Portugal pequenino e conservador, que estranhou a forma como Mísia escolheu abordar o fado e os palcos, e que a chamou de “fadista japonesa”, “fadista da franja”, “fadista pós-moderna”, ou “fadista sacerdotisa”. Terá Mísia sofrido desde sempre o fado da inveja e do ciúme?

“Recordo o que o realizador Manoel de Oliveira me disse quando falou da minha dor que era também a dele. Disse que a inveja dos portugueses era diferente da de outros países. É uma inveja castradora, que em vez de desejar o mesmo ou melhor do que o vizinho, não deixa o outro ter ou ser”.

Este ano, Mísia regressa com um novo disco, “Animal Sentimental” que é acompanhado também por um livro autobiográfico, onde conta o muito que caminhou e cantou até aqui chegar.

Revela de forma generosa os episódios mais duros de vários capítulos da sua vida, como quando em 2016 um Boeing 747 caiu sobre a sua cabeça, que é a metáfora que traduz no seu livro a luta contra a doença oncológica. E fala também de episódios de desamor, do casamento que envolveu violência doméstica e da vontade de desistir da vida. E nisto tudo sempre foi a música e o fado que a salvaram.

“Animal Sentimental” é o relato de uma existência maior do que a vida, em muitas partes, em muitos capítulos, com muitos lutos, muitas peles, palcos, máscaras, marcada acima de tudo pela curiosidade, pela amizade, pela poesia, pelas viagens e pela reinvenção e superação enquanto mulher, fadista e artista. Nele Mísia namora com a morte, mas acima de tudo celebra a vida, a poesia e a memória. E conta com uma belíssima capa que é um retrato seu pintalgado com muitas cores, com poemas inéditos de Tiago Torres da Silva e Lídia Jorge no interior. Livro e disco que revelam as várias faces de Mísia. E também de Susana.

Eis uma conversa em podcast onde Mísia abre o livro da sua vida e onde chega a refletir sobre os atuais momentos de forte crise no país. “Com a crise, a guerra, as pessoas estão preocupadas com o dinheiro para sobreviver, e os artistas vão ficar como na pandemia, a cantar na internet, com pijama e a mostrarem os calos”

Como sabem, o genérico é uma criação original da Joana Espadinha, com mistura de João Firmino (vocalista dos Cassete Pirata). Os retratos desta vez são da autoria de Ana Brígida. A sonoplastia deste podcast é do João Luís Amorim.

Voltamos para a semana, com mais uma pessoa convidada. Até lá escrevam-nos, comentem, ativem as notificações, partilhem, classifiquem o podcast e, já sabem, pratiquem a empatia e boas conversas!

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: BMendonca@expresso.impresa.pt

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