Opinião

Mexer num detalhe para fazer ruir o combate à precariedade

É uma pequeníssima alteração, em que quase ninguém reparou, mas com um efeito profundo e um vastíssimo alcance: implodir um instrumento central do combate à precariedade e aos falsos recibos verdes (nas plataformas digitais, mas muito para além delas), fazendo com que Portugal se volte a apresentar, neste campo, como um “offshore” laboral

No meio da mais de uma centena de alterações às leis do trabalho que o Governo apresentou, sob o pomposo nome de “Trabalho XXI”, há um pequeno detalhe, imperceptível à vista da maioria (a exceção foram alguns juristas que lançaram o alerta), que tem todavia o condão de fazer implodir um dos principais dispositivos legais de que o nosso país dispõe para converter em contrato de trabalho situações de falsos recibos verdes e outras formas de dissimulação de trabalho subordinado. Do que falo? De uma aparentemente singela alteração que vem determinar (numa nova redação do art 186.º-M do Código do Processo de Trabalho) que, no âmbito de uma ação especial de reconhecimento de existência de contrato de trabalho, “se o trabalhador vier ao processo declarar a sua falta de interesse no prosseguimento da ação, o juiz decreta a extinção da instância”. Talvez pareça estranho que um tal detalhe, que parece conferir uma faculdade ao trabalhador, seja um instrumento para fazer desabar o reconhecimento de contratos de trabalho. Mas é.

A origem e o significado da “ação especial de reconhecimento da existência de contrato de trabalho”

Neste caso, não está em causa a alteração do Código de Trabalho, mas de um outro diploma, o Código de Processo do Trabalho, que é onde se definem as regras e procedimentos a seguir em ações judiciais por conflitos laborais. Ora, foi justamente nesta lei que foi inscrito, em 2013, um mecanismo inovador, segundo o qual o reconhecimento de um contrato de trabalho dissimulado através de um falso recibo verde deixava de ser matéria que interessasse apenas ao trabalhador afetado (isto é, à pessoa excluída dos direitos laborais do contrato que lhe estava a ser negado), mas que passava a ser uma causa de interesse público, isto é, a ser garantida pela ação do próprio Estado. Como? Envolvendo nesse processo não apenas a Autoridade para as Condições de Trabalho (ACT), que tem a capacidade e a missão de fiscalizar o cumprimento da lei e notificar as empresas para regularizarem a situação, mas também através do Ministério Público - e aqui residiu a grande novidade! Assim, de acordo com a nova lei, o Ministério Público, representando o Estado, passou a ter a competência de defender, junto da Justiça, a conversão em contrato de trabalho daquelas relações de trabalho subordinado disfarçadas por prestações de serviço. Desta forma, o combate aos falsos recibos verdes deixou de estar dependente da iniciativa do trabalhador. Deixou de ser responsabilidade do precário ou da precária, frequentemente em situação de grande vulnerabilidade, levar a empresa ao tribunal (o que era raríssimo, por motivos que se adivinham) para que a lei se cumpra. Combater a utilização indevida de prestação de serviços passou a ser, com a Lei 63/2013, um objetivo de natureza pública, salvaguardado pelo Estado com a intervenção do Ministério Público.

A origem desta lei é praticamente única na história da nossa democracia. Na sequência da manifestação da “Geração à Rasca”, realizada em março de 2011, que juntou entre 200 a 300 mil pessoas em onze cidades, a sociedade portuguesa debateu o significado e as consequências dessa mobilização inédita. Desse debate saiu uma Iniciativa Legislativa de Cidadãos, lançada em abril de 2011, pelo Movimento 12 de Março e ativistas dos Precários Inflexíveis, do FERVE - Fartos d’Estes Recibos Verdes e da Plataforma dos Intermitentes. Essa Iniciativa consistiu na proposta de uma “Lei Contra a Precariedade”. Durante oito meses, recolheram-se mais de 35 mil assinaturas. Uma das medidas era justamente “a criação de novos mecanismos de combate ao trabalho precário e aos falsos recibos verdes”. Os problemas a que se queria responder eram a dificuldade de um trabalhador precário sem contrato de trabalho tomar a iniciativa de pôr a empresa em tribunal para ter a sua situação regularizada, era o facto de ser muito fácil a empresa dispensar os recibos verdes em caso de denúncias (dado não haver formalmente qualquer vínculo laboral) e a circunstância de estes trabalhadores dificilmente serem representados por sindicatos, nos termos em que estes têm os seus estatutos ou organizam as suas prioridades de intervenção.

A “lei de combate à precariedade” e os seus efeitos, de 2014 aos estafetas de 2024

Em julho de 2013, a Assembleia da República aprovou por unanimidade um texto legislativo comum que “estabelece mecanismos de combate ao uso indevido do trabalho independente em relações de trabalho subordinado”. A Lei n.º 63/2013 entrou em vigor a 1 de setembro desse ano. O caso é particularmente relevante dado o contexto. Estávamos em plena intervenção da troika, num processo de destruição de direitos sociais. Mas a realidade dos falsos recibos verdes era tão escandalosa, e a mobilização cidadã foi tão forte, que nenhum partido, do Bloco e do PCP ao PSD e ao CDS, ousou votar contra esta iniciativa. Também porque a engenhosa solução encontrada depois de um longo processo de especialidade respondia de facto a uma realidade de infração à lei cuja perpetuação ninguém se atreveu a defender. Esta lei foi, naquele período histórico, e em contramão com a conjuntura, a única conquista legal favorável aos trabalhadores - mais concretamente a um segmento específico de trabalhadores, os “falsos recibos verdes”, vítimas de uma fraude legal em grande escala.

Entre o início da aplicação da lei e 2022 (o último ano sobre o qual a ACT disponibiliza os dados), a intervenção da inspeção do trabalho suscitada por este novo quadro deu origem a 3950 advertências a empresas e a 4916 infrações autuadas por dissimulação de contrato de trabalho. A notificação às empresas resultou na regularização imediata de 1746 trabalhadores que deixaram de ser falsos recibos verdes e passaram a ter contrato sem termo e a 1408 participações ao Ministério Público para que este desencadeasse a “ação especial de reconhecimento da existência do contrato de trabalho”. Os números até poderiam ser mais impressionantes. Mas são alguns milhares de trabalhadores que, de outro modo, não teriam nunca passado a ter vínculo. Por outro lado - e aqui reside talvez uma das razões maiores do ataque que a atual proposta do Governo pretende fazer - este foi o mecanismo acionado em 2024 para os trabalhadores das plataformas de entrega de comida (UberEats, Glovo). Percebe-se bem porquê. Se há caso em que é difícil pedir-se que sejam os trabalhadores mais precarizados a garantir e exigir o cumprimento da lei é o dos trabalhadores uberizados, a maioria deles imigrantes, com um frágil estatuto de cidadania, à espera da autorização de residência que a AIMA não atribui no tempo que a lei impõe (90 dias). Ora, com a nova presunção de laboralidade para as plataformas digitais aprovada em 2023, este mecanismo ganhou novo impulso. Só em 2024, a ACT levantou 1217 autos relativos a estafetas sem contrato e reportou ao Ministério Público 884 casos de estafetas que deveriam ter contrato de trabalho com as plataformas, dando origem a outras tantas “ações de reconhecimento” desencadeadas pelo Ministério Público nos Tribunais. Foi por causa delas que os casos aconteceram e que decisões judiciais foram tomadas.

O fim da ação especial de combate à precariedade?

Caso esta lei não existisse nos moldes em que foi desenhada, que efetividade teria a “presunção de laboralidade” para as plataformas digitais que o Parlamento aprovou em 2023? Mais ainda: a Diretiva Europeia (UE) 2024/2831, relativa à melhoria das condições de trabalho em plataformas digitais exige uma presunção simples e eficaz. O mecanismo da “ação especial de reconhecimento” é essencial para que ela opere.

A ideia de que bastaria agora, em algum momento do processo, um trabalhador “vir ao processo declarar a sua falta de interesse no prosseguimento da ação” para que o juiz decrete a ação como extinta é absolutamente contrária ao espírito da lei de 2013, aliás reforçado quando, em 2017, se clarificou em nova alteração legal que, no âmbito da “ação especial de reconhecimento de contrato de trabalho”, não havia lugar à tentativa de “conciliação”, por se saber que esta era um elemento de chantagem e pressão sobre o trabalhador ou a trabalhadora para contornar a lei.

Com efeito, a jurisprudência sobre este mecanismo legal tem afirmado de forma pacífica que o que a “ação especial” visa é o interesse público do reconhecimento do contrato, que não cabe ao trabalhador desistir da ação, até porque não foi ele, mas sim o Ministério Público, o autor da ação. Ou seja, cumprir a lei do trabalho não é, para o Estado português, uma faculdade que caiba às empresas ou aos trabalhadores requerer ou dispensar em função da sua vontade ou conveniência. É uma obrigação coletiva, garantida também pelo Ministério Público. E impera na qualificação contratual o princípio da primazia da realidade. Ou seja, as partes (empregador e trabalhador) não são livres de modificar a qualificação contratual. Não são livres de declarar que um contrato de trabalho não é um contrato de trabalho, só porque querem, da mesma forma que se eu disser que uma garrafa de água é uma garrafa de vinho, ela não passa a sê-lo por eu nomeá-la assim.

Permitir que um processo que visa prosseguir o interesse público de fazer cumprir a lei, em favor do trabalhador, seja extinto por uma mera declaração de um trabalhador, frequentemente sob pressão, é um prémio à parte mais forte de uma relação laboral que é sempre desequilibrada. É também incompreensível do ponto de vista do direito processual. E insisto: a defesa da “autonomia das partes” é, ainda mais nestes casos, um hino à hipocrisia. Por isso, esta pequeníssima alteração constante no anteprojeto do Governo tem um efeito profundo e um vastíssimo alcance: implodir um instrumento central do combate à precariedade e permitir que, no que aos falsos recibos verdes diz respeito (nas plataformas, mas muito para além delas), Portugal se volte a apresentar como um “offshore” laboral.

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