É tudo ‘about business’, estúpido
A presidência de Trump, tal como as anteriores, continua a ter um projeto imperial. A diferença está na natureza desse império: já não é um império de valores, é um império de margens de lucro
Gestor e Analista Político
A presidência de Trump, tal como as anteriores, continua a ter um projeto imperial. A diferença está na natureza desse império: já não é um império de valores, é um império de margens de lucro
Há muitos anos que os Estados Unidos já não são o polícia do mundo, mas nunca esta frase foi tão verdadeira como agora. A primeira visita oficial de Donald Trump ao estrangeiro, neste seu segundo mandato, é a prova viva de que o novo paradigma da política externa americana já não se move por ideais — apenas por contratos. E não é de hoje, mas agora é sem véus, sem vergonha e sem filtros. O império americano já não envia marines para exportar democracia. Envia CEO, acordos de defesa, consórcios tecnológicos, contratos das terras raras e... Boeings.
A imagem é quase cinematográfica: Trump desembarcando no Golfo com um sorriso de negócio fechado, rodeado de príncipes e magnatas, num cenário onde os petrodólares e os megabytes da inteligência artificial se cruzam à sombra dos palácios climatizados. A visita ao Médio Oriente é um guião escrito a preceito: a Arábia Saudita assina o maior contrato de equipamento militar da história, o Catar compra 200 aviões comerciais de uma só vez, e os Emirados Árabes Unidos selam alianças no campo da inteligência artificial. Tudo isto embrulhado em palavras de cortesia, sem um único reparo sobre direitos humanos, repressão, liberdade de imprensa ou presos políticos. Até parecia uma visita mais ao estilo de Xi Jinping: negócios primeiro, silêncio cúmplice depois.
Não se trata apenas de estilo. Trata-se de substância. A presidência de Trump, tal como as anteriores, continua a ter um projeto imperial. A diferença está na natureza desse império: já não é um império de valores, é um império de margens de lucro. A guerra da Ucrânia? Um excelente pretexto para o reforço dos lucros da indústria militar e para a assinatura de contratos estratégicos de exploração de terras raras. A NATO? Só interessa se os europeus pagarem a fatura. Os direitos humanos? Uma nota de rodapé que se esquece no rodapé seguinte. E a Síria? Um bom exemplo de como até os Estados párias podem voltar à mesa desde que sirvam os interesses dos parceiros certos.
Veja-se o caso da recente reaproximação com o Presidente sírio Al-Sharam, sucessor informal da dinastia Assad, ex-combatente islâmico no Iraque, ex-prisioneiro em Abu Ghraib e, durante anos, alvo da política de sanções dos Estados Unidos. Agora, num volte-face digno de Realpolitik pura, as sanções são levantadas, os encontros são agendados e a narrativa é rescrita com tinta de petróleo saudita. Não foi um favor à Síria, como alguns sugeriram. Foi um favor à Arábia Saudita, que pretende estabilizar a região e vê em Damasco um novo peão útil. Em troca, exige-se à Síria entrada nos Acordos de Abraão e colaboração na gestão das prisões onde estão detidos milhares de ex-combatentes do Daesh. Aqui ninguém dá nada a ninguém — e muito menos por idealismo.
É neste contexto que se deve ler o novo eixo de relações com o Golfo. O Catar tornou-se o novo canal diplomático para os “assuntos difíceis”: Israel, Hamas, Irão, negociações nucleares. Os Emirados posicionam-se como a capital tecnológica do deserto, investindo na digitalização, na robótica, nos chips americanos. E os sauditas voltam ao centro do xadrez com o mesmo pragmatismo frio de sempre: compram paz, influência e armamento com a mesma moeda. Tudo isto com o beneplácito de Washington, que já nem finge ser árbitro. Agora é só jogador — e dos mais agressivos.
A política externa dos Estados Unidos, sob Trump, é um manual de negócios, e nada mais. Quando pede aos europeus que gastem até 5% do PIB em defesa, não é por solidariedade estratégica. É para abrir mercados à indústria de armamento americana. Quando pressiona a Ucrânia a assinar contratos de exploração com empresas americanas em plena guerra, não é por amor à liberdade. É para garantir recursos para a reindustrialização interna. Quando se aproxima de regimes autocráticos, não é por ingenuidade. É porque são clientes com liquidez e sem moralismos.
É certo que os Estados Unidos sempre fizeram negócios. Mesmo nos tempos em que vendiam ao mundo o ideal da democracia liberal, nunca deixaram de proteger os seus interesses económicos. Havia uma diferença: ao menos fingiam. Hoje, nem isso. Os Estados Unidos de Trump deixaram cair a máscara. O discurso sobre os direitos humanos é reservado para os rivais. Para os aliados, basta que paguem.
Este regresso aos fundamentos mais crus da Realpolitik americana — despida de valores, desinteressada da diplomacia multilateral, cínica até ao osso — não é apenas um estilo presidencial. É uma doutrina. E tem consequências profundas para a ordem internacional. Num mundo onde os Estados Unidos já não fingem querer liderar pelo exemplo, a China ganha espaço para expandir o seu modelo de influência. Num mundo onde os princípios se vendem ao melhor contrato, os regimes autoritários deixam de temer represálias. E num mundo onde tudo é negócio, as democracias perdem o seu argumento moral.
Pode dizer-se que Trump está a dar continuidade ao que começou no seu primeiro mandato. Mas agora fá-lo com mais confiança, mais redes de influência, e mais descaramento. A visita ao Médio Oriente foi um desfile de contratos, sorrisos e zero escrutínio. A política americana tornou-se aquilo que talvez sempre foi no seu fundo mais cru: “It’s all about business, stupid”.
E, claro, com direito a avião novo. Porque ninguém faz negócios em voos low cost.
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