Opinião

Sim, pode

A liberdade de expressão é um valor essencial, como Aguiar Branco assegurou, e não uma conveniência instrumental, como a esquerda berrou. É caso para dizer que a liberdade de expressão é o mais perigoso dos pilares da democracia, com exceção de todas as alternativas. Pode? Sim, pode

José Pedro Aguiar Branco, 50 anos depois do 25 de Abril, fez-se herói da democracia. Sim, herói. Da democracia.

A história conta-se depressa. Depois de mais uma palermice de café de Ventura, desta vez sobre Turcos, gerou-se grande alarido na Assembleia, mas Aguiar Branco permitiu que a afirmação se fizesse sem reparo da Mesa. Alexandra Leitão resolve, então, ficcionando, perguntar ao Presidente da Assembleia da República “se uma determinada bancada disser que uma determinada raça ou etnia é mais burra ou preguiçosa também pode?”. A resposta de Aguiar Branco foi: “no meu entender, pode. A liberdade de expressão está constitucionalmente consagrada. A avaliação do discurso político que seja feita aqui nesta casa será feita pelo povo em eleições”. Fez bem.

Depois deste episódio em São Bento, vieram os “santinhos” do costume: de Pedro Nuno Santo às carpideiras do “não, não pode”, que, na sua maior parte, se excitaram bastante com a peça “Catarina e a Beleza de Matar Fascistas”, não faltou gente à procissão. Mas já cá voltamos. Uma vez que estamos a falar de liberdade de expressão, e porque por cá raramente fomos pródigos nesta matéria, proponho uma ida a Inglaterra de 1835 e, depois, aos Estados Unidos de 1969.

1835. Daniel O’Connell, um deputado irlandês, na câmara baixa do Parlamento Britânico, referiu-se a Benjamin Disraeli como “um descendente directo do ladrão blasfemo que terminou sua carreira ao lado do Fundador da Fé Cristã”. Antes da tragédia que teve palco na europa continental no início do séc. XX, o anti-semitismo era comum até no Reino Unido já no séc. XIX. Ante esta interpelação, não houve mimimis e apelos à censura. Pelo contrário. Disraeli respondeu directamente a O'Connell: “Sim, sou judeu. E quando os antepassados do honorável cavalheiro eram selvagens brutais numa ilha desconhecida, os meus eram sacerdotes no templo de Salomão”. À canalhice responde-se com coragem, à loucura com sabedoria, terá pensado o dandy de Bloomsbury

1969. Num caso que ficou conhecido como Brandenburg vs Ohio, Clarence Brandenburg, líder do Ku Klux Klan, num comício, acusa o Governo dos Estados Unidos de ataque à “raça caucasiana”, entre outras considerações acerca de vinganças e respostas. Resultado: condenado por incitamento ao ódio, numa sentença confirmada em duas instâncias superiores. Recorrendo para o Supremo Tribunal, com a invocação da primeira emenda (precisamente sobre liberdade de expressão), foi absolvido numa decisão que se tornaria jurisprudência incontornável nesta matéria. De acordo com o Supremo, apenas quando verificadas, cumulativamente, duas condições a Lei se pode sobrepor à Liberdade de Expressão: incitamento imediato a acção criminosa e probabilidade de tal acção ocorrer. Ou seja, por mais maligna e deplorável que seja a afirmação – preparem-se para esquiar sobre gelo fino – só um apelo directo à acção e a probabilidade real de tal apelo ser seguido pode justificar limitações à liberdade de expressão.

Em síntese, a avaliação moral que fazemos das afirmações não podem justificar limitações à liberdade de expressão, sob pena de essas limitações se tornarem mais brancas ou mais pretas, se deslocarem mais para a direita ou mais para a esquerda, mais para cima ou mais para baixo dependendo das inclinações de quem exerce o poder em cada momento; num duplo padrão nada democrático. É isso que permite que, de igual e inalienável forma, e desejavelmente, as indignações se expressem e o combate democrático se trave. Porque a liberdade de expressão é um valor essencial, como Aguiar Branco assegurou, e não uma conveniência instrumental, como a esquerda berrou.

Exemplo de duplo padrão? O que aconteceu em Janeiro deste ano, em Portugal, numa manifestação cocktail – daquelas onde as várias causas dos activistas dos tempos modernos se misturam: “não queremos ser inquilinos de sionistas assassinos”, lia-se numa tarja. Curioso foi que esta afirmação nojenta mereceu pouco reparo da generalidade da esquerda que agora rasga vestes e range dentes (honra ao veemente repúdio expresso por Francisco Assis, um homem livre). Já se o silêncio conivente ou cobarde não surpreende, a legitimação que o Esquerda.net lhe conferiu no artigo “Capital israelita aumenta pressão imobiliária no Porto” merece destaque: é sempre bom sabermos, depois do vómito, onde estão os racistas.

As infâmias de toda esta gente, o ódio racista de O'Connell, de Brandenburg e da extrema-esquerda, as verborreias de Ventura e os ultrajes verosímeis ficcionados por Alexandra Leitão são ameaças, sim. Loucuras inaceitáveis em qualquer mesa do Ocidente, sim. Mas não é calando os ignóbeis que a superioridade moral vence. A superioridade moral do Ocidente e das democracias, com raízes judaico-cristãs e não marxistas, maoístas ou trotskistas, vence com respostas como as de Benjamin Disraeli, do Supremo Tribunal dos Estados Unidos e de José Pedro Aguiar Branco. Não sou eu que o digo, são séculos de construção liberal exemplarmente resumidos, nesta matéria, por William Allen White, vencedor de um Pulitzer e líder progressista (num tempo em que o progressismo era a favor do progresso e não uma expressão do mais primário reaccionarismo): “Dizem-me que a lei está acima da liberdade de expressão. Eu respondo que não se podem ter leis sábias, a menos que haja livre expressão da sabedoria do povo – e, infelizmente, da sua loucura também. Todavia, se houver liberdade, a loucura morrerá pelo seu próprio veneno e a sabedoria sobreviverá.”

Parafraseando Churchill, é caso para dizer que a liberdade de expressão é o mais perigoso dos pilares da democracia, com excepção de todas as alternativas.

Pode? Sim, pode.

Pedro Gomes Sanches escreve de acordo com a antiga ortografia

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