Opinião

Hoje é tinta, amanhã é tiro

Legitimar a violência no espaço público a partir de visões parcelares de moralidade é seguir a máxima de Robespierre. A máxima? "A virtude sem o terror é impotente, o terror sem a virtude é fatal". E, nesse caso, 'bonjour' e 'bonne chance': hoje é tinta, amanhã é tiro

Vou ser moderado e parcimonioso nas palavras: Portugal é, ao dia de hoje, oficialmente, um degredo pestilento. Ou seja, um lugar onde se cumpre pena, e profundamente infectado pela peste.

Esta semana foi fértil em aulas práticas e aulas teóricas sobre essa peste, essa grande disciplina pós-marxista do Séc. XXI: a violência ignorante. "Jovens activistas" – foi assim que a comunicação social designou os bully histriónicos – atacaram o Ministro do Ambiente com tinta verde e pintaram com tinta encarnada as janelas de um lugar onde decorria um evento dedicado ao sector da aviação. Noutro dia, noutra parte da cidade, "manifestantes" encapuzados destruíram uma montra de uma imobiliária, partindo-lhe e pintando-lhe um vidro na fachada. Neste último evento, "morte aos ricos" também foi coisa que se leu em cartazes.

Acção climática e direito à habitação foi o mote desta semana para os bons selvagens. Para a próxima semana, para o próximo mês, serão outras causas quaisquer. Validados os modos, agora é replicar. A verdade é que à custa do sofrimento de muitos que estão hoje sem alojamento e sem perspectiva de melhoria da sua condição, e da desertificação de territórios e da destruição da biodiversidade que lançam povos e países numa pobreza perene, estes poucos "activistas" não querem um debate sério sobre os temas que trazem na agenda. O ponto único da sua agenda é a destruição do que, durante décadas, permitiu que a generalidade das pessoas do mundo saíssem da pobreza para viverem melhor do que os seus pais e os seus avós: a democracia-liberal e o capitalismo. Com isto silenciam de quem discordam, atacam quem não gostam e apelam à morte dos que têm mais.

E, não obstante esta selvajaria, teço algumas considerações. Se o planeta atravessa problemas por causa da acção humana, estes seres mono-neuronais têm a solução: acabem-se as viagens, o comércio global, o aquecimento e arrefecimento artificial, desliguem-se os interruptores e deixem de consumir carne. É um caminho destinado ao sucesso: recolectores a viver em cavernas, graças a polegares oponíveis, têm grande probabilidade de chegar longe.

E por falar em viver em cavernas, Portugal tem uma crise séria de habitação: os jovens não conseguem sair de casa dos pais, as famílias que têm casa fazem malabarismo para as pagar e as que não têm vivem circunstâncias degradantes e trágicas. Ora, num país governado há 8 anos pelo PS, e que é responsável pelo governo em 22 dos últimos 29 anos, e que com as suas políticas permitiu a perda de riqueza dos portugueses em comparação com a UE e, querendo o Estado em todos os domínios da vida, apresenta alguns dos números mais baixos de habitação pública da Europa, para quem é que sobra a culpa? Para os senhorios, para as imobiliárias, para os proprietários, para os investidores em alojamento local e para o Moedas. Já o disse noutro artigo, mas vou citar-me porque vem a propósito: “3.200 milhões ali enterrados [estava a falar da TAP], sem retorno, teriam permitido construir 2.909 prédios e 23.272 apartamentos; isto, se considerarmos 1.100.000 euros por prédio de 4 pisos com 8 fogos de habitação T2, com elevador.”

Isto só não é um manicómio, porque nos manicómios há gente mais lúcida e inteligente. Aumentar o rendimento da procura? Aumentar a oferta? Nada disso: castigar os proprietários. Gente que pagou juros de empréstimos, que suporta custos de condomínio, que pagou e paga impostos – IMT, imposto de selo, IMI, adicional ao IMI (obrigado, Mortágua), taxa liberatória quando arrenda, mais-valias quando vende –, eis os demónios dos "activistas".

Dizia lá atrás que os modos tinham sido validados. Vejamos.

Marcelo Rebelo de Sousa, a comentar em directo a vida do país, ainda a manifestação da habitação não tinha chegado ao fim, mas a montra da imobiliária já tinha sido vandalizada e o cartaz da "morte aos ricos" já tinha sido exibido, apressou-e a afirmar tratar-se de "uma boa causa, uma manifestação importante".

Sobre a bondade das causas, durante a semana, uma Robespierre de franja, num texto sobre os activistas (apanhados) do clima, escreveu no Público uma das peças mais antidemocráticas e incitadoras ao ódio que nos foi dado a ler nos últimos anos: "não podemos, nem devemos, dissociar a bondade de um protesto da bondade da causa pela qual se protesta"; "há actos de protesto, caracterizados como sendo violentos, que pretendem travar situações de superior violência"; "os activistas tinham razões para repudiar a presença da Galp e da EDP naquele evento e razões para estar zangados e impacientes"; "o acto foi violento, mas nada que se compare à violência do que a comunidade científica afirma que os espera".

À Carmo Afonso o Francisco Mendes da Silva, também no Público, com a paciência de um professor de outros tempos, já explicou a diferença daquele chorrilho de disparates e uma democracia fundada num Estado de Direito. Mas houve uma coisa que ficou por dizer taxativamente: legitimar a violência no espaço público a partir de visões parcelares de moralidade é seguir a máxima de Robespierre. A máxima? "A virtude sem o terror é impotente, o terror sem a virtude é fatal". E, nesse caso, bonjour e bonne chance: hoje é tinta, amanhã é tiro.

Pedro Gomes Sanches escreve de acordo com a antiga ortografia

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