Opinião

O ódio da extrema-esquerda é fofinho e benemérito?

Enquanto o PS puder continuar a utilizar o poder executivo para se governar e não para governar o país na prossecução do bem comum, o ódio da extrema-esquerda será sempre fofinho e benemérito

Portugal tem, para lá de todos os outros, um problema de habitação; que não é só de acesso, também é de conforto. E este problema, que compromete um direito constitucional, tem razões estruturais e razões conjunturais.

Desde logo, os salários médios miseráveis, para os quais a baixa produtividade (das mais baixas da UE), a baixa competitividade fiscal (das mais baixas da UE) e a baixa eficácia salarial (com a abissal diferença entre aquilo que o empregador paga e aquilo que o trabalhador recebe) contribuem para o problema estrutural. A este cenário do lado da procura soma-se, sobretudo para pessoas de baixos rendimentos, mas não só, um problema do lado da oferta, já que Portugal tem uma das mais baixas percentagens de habitação pública da UE, construção de novas habitações, apesar de ligeiras inversões pontuais, em baixa desde 2002 e custos de contexto que encarecem o preço final da que existe.

Neste duplo problema estrutural - a tragédia do lado da procura, e a inoperância e ineficiência do lado da oferta - a esquerda, que nos últimos 28 anos governou 22, e a extrema-esquerda, que apoiou parlamentarmente um governo do PS durante os anos da geringonça, aprovando programa de governo e orçamentos, têm a maior parte da responsabilidade.

Se isto não bastasse, a este problema estrutural somam-se agora problemas conjunturais, como a subida das taxas de juro e a inflação.

É, portanto, normal que as pessoas que vêem os seus rendimentos reais diminuirem e os seus encargos aumentarem, no sufoco de um mês cada vez maior que o salário, saiam à rua em protesto. E é, também, natural que os que não saíram à rua mas que se debatem com os mesmos problemas tenham sentido, num primeiro momento, alguma simpatia com a causa. Foi isso que aconteceu na semana passada, na manifestação pelo direito à habitação, em Lisboa. Porém, quem os guiou, quem os manipulou, até ao Martim Moniz foram agitadores e criminosos de extrema-esquerda.

Quando pararem os clamores, os dentes rangidos e as vestes rasgadas, prossigo. Já está?

Disse agitadores e criminosos de extrema-esquerda, sim, porque não encontro designações melhores para descrever quem apela à "morte aos senhorios" ou defende a legalização das ocupações, como se lia em cartazes e ouvia na dita manifestação, e para quem destrói a propriedade de comerciantes e do Estado, como aconteceu em lojas, paredes e motas da polícia, num frenesim revolucionário próprio de gente de encarcerar.

Cabe ao Governo a iniciativa de criar políticas públicas consistentes, credíveis e eficazes que dêem resposta a este problema. Lamentavelmente, com a cabeça nas nuvens, o Governo amalgamou um conjunto de medidas inconsistentes, sem credibilidade e ineficazes. Ao optar por fazer isto, o Governo encheu um barril de pólvora e sentou-se nele a brincar com fósforos, não resolvendo nada e acicatando ódios. Fê-lo com o propósito de desviar as atenções de um dos maiores escândalos da última década, o dossier TAP (que está para Costa como a Parque Escolar esteve para Sócrates). Costa não é, portanto, inocente. E este programa "Mais Habitação" e a forma como ele foi anunciado e está a ser gerido não é inconsequente.

Não vos maçarei com grandes considerações teóricas sobre populismos e extremismos, para o efeito bastarão as definições da Wikipédia: populismo é o "conjunto de práticas políticas que se justificam num apelo ao 'povo' geralmente contrapondo este grupo a uma 'elite'" e extremismo são "modelos de acção política que preconizam soluções extremas, radicais e revolucionárias, para os problemas sociais".

Alimentam ódios visando grupos particulares da população, lançando sobre eles o ónus da desgraça do povo: eis o modus operandi de populistas e extremistas. Se para os populistas de direita a "solução" é fechar as portas, e os inimigos são as "elites corruptas" e os imigrantes pobres, para os populistas de esquerda a "solução" é limitar os direitos de propriedade e os inimigos são os proprietários e os imigrantes ricos.

Ninguém dos que benevolamente aderiram ou simpatizaram com a manifestação se revê neste circo radical. Até porque 70% dos portugueses são proprietários de habitação, e não lhes parece que cercear esse direito de propriedade, conseguido a custo de vidas inteiras, seja solução para as dificuldades que atravessam. O que os portugueses querem é rendimentos de trabalho condignos, condições estáveis de investimento e segurança pública; se as primeiras pretensões escasseiam há muito, a última começa a escassear agora.

E eis, por isso, na rua, as consequências da culpa de António Costa e do Governo. Ao alimentar retoricamente um discurso anti-investimento (Alojamento Local), anti-imigrantes ricos (Vistos Gold), anti proprietários (arrendamento compulsivo), a partir de premissas irracionais como a de que toda a gente tem direito a viver nas zonas mais caras de Lisboa, passam a ser autores morais da baderna que já aí anda e da que ainda está para vir. Do que também são autores, mas materiais, é das consequências da não resolução dos problemas estruturais que identifiquei no início.

Dizia lá atrás que o Governo andava com a cabeça nas nuvens. Estava, claro, a falar da TAP, um escândalo de proporções épicas, onde a troco do apoio da extrema-esquerda, o Governo reverteu uma privatização feita pelo Governo PPD/PSD e CDS, para agora a querer privatizar outra vez. No entretanto, erodiram qualquer módico de decência, comprometeram a separação de poderes, alimentaram nepotismos, enriqueceram camaradas e lesaram o país pelo menos em 3.200 milhões de euros. O que esta semana assistimos no Parlamento faz sobrar em nojo o que falta em palavras fora do vernáculo. Aliás, estes 3.200 milhões ali enterrados, sem retorno, teriam permitido construir 2.909 prédios e 23.272 apartamentos; isto, se considerarmos 1.100.000 euros por prédio de 4 pisos com 8 fogos de habitação T2, com elevador. É mais do que todas as casas compradas no âmbito dos vistos Gold nos últimos 10 anos, pelas quais, se mais a esquerda não quiser contabilizar, foram pagos IMT, imposto de selo e continuam a ser pagos IMI em valores milionários.

Em Portugal, como um pouco por todo o lado, vive-se um risco real de ascenção dos populistas iliberais (basta ver as intenções de voto em França - que sempre foi tragicamente a inspiração da esquerda portuguesa - na Sr.ª Le Pen e no Sr. Mélenchon). Mas a culpa não é dos populistas, é do statu quo, que ninguém mais do que o PS representa neste país.

Militante e alta figura de um partido que representa o poder fáctico, e que é o espelho da corrupção no país - nunca dela se demarcando veementemente nem nada fazendo para a combater -, o Presidente da Assembleia da República exorta o país para os perigos da extrema-direita, mas nunca se lhe ouviu uma palavra assertiva relativamente aos perigos da extrema-esquerda.

Para estes cavalheiros, enquanto os senhorios são ameaçados de morte, a propriedade privada é destruída e ocupada, os imigrantes ricos são diabolizados e os ódios são acicatados (sempre de modo metafórico, claro, como nas patacoadas criminosas de Fanon), mas o PS puder continuar a utilizar o poder executivo para se governar e não para governar o país na prossecução do bem-comum, o ódio da extrema-esquerda será sempre mais fofinho e benemérito do que as inanidades abjectas do Ventura.

Pedro Gomes Sanches escreve de acordo com a antiga ortografia

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