Não espanta que as próximas eleições presidenciais tenham ganho, subitamente, um novo e inusitado interesse. Isso deve-se a vários fatores:
- Primeiro: a insistência do atual titular do cargo em brandir, de quando em vez, em jeito de toca-e-foge, o seu poder de dissolução, denunciou o risco de instabilidade política, mesmo quando existe uma maioria absoluta parlamentar que apoia o Governo, e demonstra que um/a Presidente mais diletante pode criar incerteza, onde devia haver previsibilidade;
- Segundo: o processo de formação do Governo, em 2015, revelou que o poder presidencial de designação da/o primeira/o-ministra/o encerra em si bastante discricionariedade, pois cabe-lhe interpretar os resultados eleitorais e procurar a solução mais eficaz e com suporte parlamentar. O que se passa na vizinha Espanha (com o Rei a ter de solucionar um risco de paralisia, por o partido mais votado não dispor de maioria parlamentar) reaviva, aliás, essa memória;
- Terceiro: a emergência de novos partidos à direita, que não oferecem as mesmas garantias de confiabilidade ao maior partido da oposição, e a (quase) certeza de que o partido do Governo não renovará a sua maioria absoluta reforçam a necessidade de diálogo e negociação à esquerda. A/o futura/o Presidente será, portanto, um novo fiel da balança e desempatará, em caso de dúvida quanto à solução governativa mais fiável;
- Quarto: a transfiguração do cargo presidencial numa segunda câmara legislativa – por via do simulacro permanente de que o Presidente pode interferir na feitura de leis e (até) na tomada de decisões executivas (que cria nos cidadãos a falsa sensação de que a/o Presidente dispõe de poderes para resolver os seus problemas) – acentuou a necessidade de clareza progamática dos candidatos presidenciais. A partir do momento em que um/a Presidente não se limita a promulgar leis, mas se julga numa posição de poder comentá-las e de tecer vaticínios sobre se elas são boas ou más, sobre se elas vão ou não produzir resultados, abre-se a porta para que os cidadãos só queiram eleger um/a Presidente que diga, previamente, ao que vem;
- Quinto: a incompreensível hesitação tática (e até mesmo inaptidão) do PS quanto ao apoio a candidatos/as presidenciais, que se mantém desde 2006, seria mortífera para um governo que pretenda governar com políticas de esquerda ou que pretenda promover acordos parlamentares. Tem-se tornado visível, portanto, que o partido do atual governo não cometerá os mesmos erros, nem desvalorizará a próxima eleição presidencial.
Por conseguinte, não compartilho a visão – algo ingénua (para não dizer cínica) – de quem fingiu ficar muito espantado com o súbito apressar do calendário de escolha de novos candidatos presidenciais. Há um elefante na sala. E, até aqui, poucos queriam falar dele.
Desde 2015, o/a Presidente da República transformou-se num/a “fazedor/a de Reis” (ou “King Maker”). Dito de outro modo, a partir do momento em que se estilhaçou a fantasia de que o partido com mais votos seria, sempre e forçosamente, o que formaria governo, não foi só a Assembleia da República e a matriz parlamentar que ganhou poder. A figura presidencial também encontrou uma nova centralidade. Cabe-lhe interpretar os resultados eleitorais e estabelecer um prognóstico sobre a governabilidade e a solidez das várias alternativas governativas em presença. Por conseguinte, deixou de exercer uma mera função notarial.
Mas, ao contrário do que aconteceu em 2015/2016, em que as eleições legislativas ocorreram em outubro de 2015 e as eleições presidenciais só tiveram lugar em janeiro do ano seguinte, desta vez, o mandato presidencial termina bastante antes do mandato do Parlamento (e, portanto, do Governo).
Quando teve de ponderar que solução de formação de governo adotaria, o Presidente Cavaco Silva sabia bem que o seu mandato se aproximava do fim. Poucos dias depois da contagem dos votos para as Legislativas, Marcelo Rebelo de Sousa apresentava a sua candidatura, em 9 de outubro de 2015. Por imposição constitucional, Cavaco Silva não podia ter dissolvido o Parlamento, fosse por se encontrar nos últimos 6 meses do seu mandato, fosse por estar impedido de o fazer durante os primeiros 6 meses que se seguem à eleição das/os deputadas/os (cfr. artigo 172.º, n.º 1, da Constituição).
Para evitar ter de dar posse ao governo do PS, com o apoio das esquerdas, restar-lhe-ia demitir-se do cargo. Suscitando o debate sobre se o Presidente da Assembleia da República, enquanto Presidente interino (cfr. artigo 132.º da Constituição) teria legitimidade política para nomear um novo governo, já que não lhe faltaria qualquer legitimidade jurídica, pois a Constituição confere-lhe poder para nomear a/o primeira/o-ministra/o, desde que ouvido o Conselho de Estado (cfr. artigo 139.º, n.º 2).
Ora, Marcelo Rebelo de Sousa deixou de ser um “fazedor de Reis”.
O mandato parlamentar e do Governo termina em outubro de 2026. Já o seu mandato termina logo em 9 de março de 2026. A 1.ª volta das eleições presidenciais ocorrerá em janeiro de 2026 e (caso haja) a 2.ª volta decidir-se-á em fevereiro de 2026. Acresce que 6 meses antes do termo do seu mandato – ou seja, a partir 9 de setembro de 2025, o Presidente da República perde o poder de dissolução (cfr. artigo 172.º, n.º 1, da Constituição). E, conforme tem sido mais do que visível, é expectável que a pré-campanha presidencial se inicie mais cedo do que habitual, logo após as eleições autárquicas, que terão lugar entre 22 de setembro e 14 de outubro de 2025.
Por todas as razões expostas, não é de espantar que o tiro de partida para a corrida presidencial já tenha sido dado. Recordando a velha teoria de Mário Soares, brandida na campanha presidencial de 1986, os partidos dirão que os eleitores não devem colocar todos os ovos no mesmo cesto (sob pena de ficarem sem nenhum, em caso de queda).
À direita, incentivar-se-á os eleitores a não permitir que um/a Presidente da mesma cor política do governo possa vir a exercer a posição de árbitro/a. À esquerda, alertar-se-á para o risco de uma futura aliança entre a direita democrática e partidos extremistas, reforçando-se a importância do papel de um/a Presidente que não contemporize com a formação de um governo dependente desse extremismo.
Porém, mais importante que cenarizar, é garantir que as/os candidatas/os falam claro e dizem ao que vêm. Mais do que discutir os traços de personalidade ou a verve mediática, é fundamental que se apresentem, sem meias palavras, quais são as linhas da futura ação presidencial.
Desta vez, não basta palavras vazias sobre o papel de Portugal no Mundo ou a importância do sistema educativo e do SNS. Para que as/os eleitoras/es saibam o que está em jogo, torna-se crucial que digam como pretendem usar os seus poderes presidenciais. E, caso adotem uma visão maximalista do cargo – com intervenção quotidiana de comentário e interferência na tomada de decisão pelos outros órgãos constitucionais –, então, não lhes pode ser perdoada a ausência de um programa claro sobre cada uma das áreas da governação.
Um/a Presidente não pode querer funcionar como segunda câmara legislativa sem, antes, dispor da legitimidade democrática que lhe advém de ter sujeito o seu programa eleitoral a votos. Se as/os candidatas/os pretenderem romper com a tradição político-constitucional de agirem como mero poder moderador, devem colocar as cartas na mesa, antes do jogo.
Para isso, temos pressa.
Exige-se clareza sobre o futuro comum tão cedo quanto possível.