E quem não salta é putinista?
A NATO não está a apoiar a Ucrânia, está a usar a Ucrânia para combater a Rússia, custe isso o que custar ao povo ucraniano
Membro do Comité Central do PCP e professor universitário
A NATO não está a apoiar a Ucrânia, está a usar a Ucrânia para combater a Rússia, custe isso o que custar ao povo ucraniano
Acusar todos os que acham que não há uma solução militar para a guerra da Ucrânia e que uma solução de paz negociada deve ser encontrada o mais cedo possível de estar a favor de Putin nunca fez sentido, mas à medida que o tempo passa, a narrativa de que é preciso continuar a guerra até que a Ucrânia alcance uma vitória militar vai ficando cada vez mais insustentável.
Na verdade, à medida que o tempo passa, as peças da narrativa política e mediática imposta à opinião pública pelos Estados Unidos e pelos seus mais fiéis acólitos europeus, baseada na ideia de que a guerra tem de prosseguir até ao último ucraniano, vão caindo como um castelo de cartas.
Desde logo, a partir do momento em que há cerca de um ano atrás a guerra entrou numa nova fase com a ofensiva russa sobre o território ucraniano, era evidente, tendo em conta a desproporção de forças existente, que a solução que melhor serviria os interesses do povo ucraniano seria trabalhar para um cessar fogo imediato e para a abertura de negociações que permitissem uma coexistência pacífica entre a Rússia e a Ucrânia que salvaguardasse a segurança de todos, incluindo do povo do Donbass.
Defender isto desde o início não era incompatível com a condenação, por mais enérgica que fosse, da atuação da Rússia. Até um criminoso de guerra como Kissinger, que aliás sempre alertou para o facto do alargamento da NATO até às fronteiras da Rússia ser um erro trágico para a paz na Europa, considerou publicamente que não haveria solução militar favorável à Ucrânia, pelo que a única alternativa para a defesa do interesse da Ucrânia seria trabalhar para uma solução diplomática com a maior brevidade possível.
Entretanto, a ideia de que a Ucrânia vivia em paz com os anjos até ao dia 24 de fevereiro de 2022 e que a guerra começou nesse dia, havendo a partir daí “um agressor e um agredido”, não se tornou verdade apesar de ter sido mil vezes repetida. Bastaria reavivar um pouco a memória dos últimos oito anos para ver que isso não era verdade.
Logo após o golpe de Estado da Praça Maidan, celebrado nas chancelarias da União Europeia e dirigido no terreno pela Subsecretária de Estado Norte-Americana Victoria Nulland, que o poder em Kiev ficou refém de forças assumidamente nazis, que as populações russófonas do Donbass foram privadas de quaisquer direitos e passaram a ser alvo de constantes bombardeamentos, que dezenas de pessoas foram queimadas vivas no cerco à casa dos Sindicatos de Odessa por forças nazis, e que a Rússia ocupou a Crimeia sem que isso merecesse mais que uns discursos de condenação e um leve pacote de sanções. Foi o reconhecimento da situação de guerra no Donbass que levou aos célebres Acordos de Minsk de setembro de 2014, que previam a autonomia das populações do Donbass, que o Governo Ucraniano nunca cumpriu e que a Senhora Merkel veio agora reconhecer que tiveram como único propósito ganhar tempo para armar a Ucrânia com o objetivo de retomar o controlo do Donbass. Pense-se o que se pensar sobre o que aconteceu em 24 de fevereiro de 2022, só por hipocrisia se pode admitir que a guerra se iniciou nesse dia e que não foi provocada.
Entretanto, à medida que o tempo passa, o que vemos é que as anunciadas derrotas da Rússia não se verificam no terreno, a contraofensiva ucraniana vai sendo adiada sine die, os discursos de Zelensky vão alternando bipolarmente entre o triunfalismo irreal e o apelo desesperado por armas e munições e que as sanções decretadas contra a Rússia só são seguidas pelos mais fiéis aliados dos estados Unidos.
O que é hoje evidente é que Zelensky não passa de um peão no xadrez norte-americano, que usa a Ucrânia como carne para canhão para enfraquecer a Rússia e que será sacrificado quando deixar de ser útil, e que usa a União Europeia e os países europeus da NATO como bispos e cavalos do mesmo jogo, fazendo com que os seus governantes sacrifiquem as respetivas populações num apoio à continuação da guerra “pelo tempo que for necessário”.
Assim, enquanto os EUA lucram com uma guerra longe das suas fronteiras para a qual ditam ordens, vendem armas e prometem dinheiro, enquanto tomam medidas protecionistas gravemente lesivas das empresas europeias, a União Europeia abdica dos seus próprios interesses, impõe a si própria uma crise energética, paga os custos da guerra através de apoios militares e financeiros à Ucrânia, sofre com as consequências dos sucessivos pacotes de sanções que supostamente prejudicariam a Rússia, e insiste em iludir os ucranianos com discursos grandiloquentes, com promessas de uma rápida adesão à União Europeia que se sabe que nunca poderá ser rápida e com apelos para fornecimento urgente de armas à Ucrânia, a que todos os Estados membros aderem desde que as armas enviadas não sejam as suas.
Ao assumir-se como beligerantes por conta de outrem, lançando pedras e escondendo a mão, por saber que não têm capacidade militar para enfrentar diretamente uma potência nuclear como a Rússia sem custos devastadores para si próprios, os países europeus na NATO assumem um papel de subserviência que a História não deixará de julgar severamente.
O chanceler Schultz é publicamente humilhado pelo anúncio de Joe Biden, feito na sua cara, de que os EUA iriam dar cabo do gasoduto Nordstream 2, não sendo hoje segredo para ninguém que se bem o anunciaram melhor o fizeram. Volodymyr Zelensky é endeusado para consumo da opinião pública dos países europeus da NATO e transformado numa figura político-mediática cujo irrealismo ultrapassa a personagem de ficção com que iniciou a sua carreira política. Os responsáveis europeus da NATO, da União Europeia e dos seus Estados membros, ao repetir obcessivamente o discurso de que não há solução que não seja uma vitória militar sobre a Rússia que sabem de antemão que não é possível, tornam-se atores secundários de uma farsa política que se traduz numa tragédia bem real para o povo da Ucrânia.
A divisão que hoje existe em torno da guerra na Ucrânia não é a de saber quem a condena muito ou pouco. Também não é a de saber quem são os partidários de Putin ou de Zelensky. Pela minha parte, ao contrário de muitos anti-putinistas de recente data, nunca fui, nem sou, partidário de nenhum deles. A divisão que hoje existe, é entre quem quer que a guerra acabe e quem quer que ela se eternize, quem defende uma solução diplomática para pôr fim à guerra e quem insiste em continuar a alimentar a guerra até que ela acabe um dia, sem que se saiba que Ucrânia e que Europa haverá nesse dia.
Perante quem acha que o melhor apoio que se pode dar ao povo ucraniano é lutar para que sejam aceites as propostas de mediação internacional que possam conduzir, quanto antes, a um cessar fogo que impeça a morte de mais ucranianos, no ocidente e no Donbass, e que abra a porta a negociações sérias para um acordo global sobre a segurança na Europa, logo saltam os discursos inflamados de quem acha que só pode haver ucranianos vitoriosos ou mortos. E quem não salta, é putinista.
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