Opinião

Quem baza quer casa: inconstitucional é manter casas ao abandono

O direito à propriedade privada – como qualquer outro direito fundamental – não é um direito absoluto. Além disso, a solução proposta pelo Governo garante que o proprietário do prédio devoluto recebe uma quantia justa pelo arrendamento, pelo que dificilmente se poderá concluir pela inconstitucionalidade

Desde 2011 – e apesar de uma constante diminuição, desde 2012 até 2021, ano do menor número de emigrados –, segundo dados do INE trabalhados pela PORDATA, emigraram 420.501 portugueses e portuguesas. Grande parte deles jovens entre os 15 e os 39 anos. Julgo não ser temerário considerar que a esmagadora maioria o fez porque não encontrou aqui, no seu país, as condições indispensáveis a uma vida digna. Trabalho justamente remunerado, gestão empresarial vocacionada para a valorização da competência e casa (arrendada ou comprada) a preços justos.

Nos últimos tempos, com uma ingénua surpresa, quem vive uma situação de privilégio constatou que uma esmagadora maioria da população não consegue pagar uma habitação digna, mesmo trabalhando. Profissionais altamente especializados obrigados a viver num quarto, partilhando casa de banho com desconhecidos, por preços astronómicos. A subida dos preços de venda de imóveis é vertiginosa, em especial nos grandes centros urbanos, tendo crescido 18,7% no ano de 2022.

É pois com espanto que vejo aqueles que, por razões históricas várias, não só dispõem de mais do que uma habitação própria, como não lhes dão uso efetivo, a revoltarem-se, com acusações descabidas de regresso a um período de ausência de lei e de autoritarismo, apenas por poderem vir a ser forçados a receber uma renda justa pela utilização de um bem de que não necessitam.

Há que dizê-lo, sem qualquer hesitação: as Constituições modernas só protegem a propriedade privada na medida em que ela seja útil à comunidade. Se é justo tolerar que alguns detenham mais bens – em função do seu trabalho, do seu mérito, mas também em função da sorte, da especulação ou de herança familiar –, não se afigura minimamente aceitável que haja um uso açambarcador de bens que são essenciais para garantir uma vida digna aos demais. E muito menos é tolerável que se permita o abandono, o não uso ou até mesmo a destruição de casas, quando há pessoas sem ter onde viver e dormir.

Na verdade, essa ideia de que a propriedade privada só deve ser reconhecida na medida em que não atinja dimensões exorbitantes, não seja ofensiva de outros direitos constitucionais e que contribua para o interesse público nem sequer é uma excentricidade portuguesa. A Constituição alemã, no seu artigo 14.º, n.º 2, expressamente determina que “A propriedade comporta obrigações. O seu uso também servirá o bem público”. A Constituição espanhola, no seu artigo 33.º, n.º 3, reconhece que “A função social destes direitos limitará o seu conteúdo, de acordo com as leis”. E a Constituição italiana, no seu artigo 42.º, n.º 2, também adere a essa preocupação, determinando que “A propriedade privada é reconhecida e garantida pela lei, que determina as suas formas de aquisição, de posse e os limites, no intuito de assegurar a sua função social e de torná-la acessível a todos”. Mais recentemente, o projeto de revisão constitucional apresentado por várias/os Deputadas/os do Partido Socialista propõe a consagração expressa da função social da propriedade privada.

Há muito, portanto, que a conceção estritamente liberal foi abandonada. Com efeito, a visão do direito à propriedade privada, própria do constitucionalismo do final do séc. XVIII e do séc. XIX, como uma garantia que a burguesia impôs ao monarca, encontra-se, hoje, ultrapassada. Nas democracias contemporâneas, o monarca não pune os súbditos caídos em desgraça, confiscando-lhes terras e propriedades apenas porque são seus opositores, redistribuindo-as pelos cortesãos mais próximos. É a comunidade que, através do seu parlamento, determina quais são as condições aceitáveis de exercício da propriedade privada, impondo-lhe limitações indispensáveis à garantia de outros direitos que com ela contendem: o direito à preservação do ambiente e dos recursos naturais; o direito à segurança do espaço público e à proteção coletiva contra catástrofes; o direito à habitação.

A isto chama-se, precisamente, função social da propriedade privada.

Em suma, o direito à propriedade privada – como qualquer outro direito fundamental – não é um direito absoluto.

Assim o tem reconhecido o Tribunal Constitucional, sem qualquer oscilação. Fê-lo em 1988, quando não julgou inconstitucional norma que permitia a expropriação de bens sem pagamento de indemnização, quando aqueles estivessem ao abandono: “O direito de propriedade não é um direito incon­dicionado e absoluto. Ele tem os seus limites: desde logo, não se estende para além do fim para que existe, que é o da satisfação das próprias necessidades, sempre sem detrimento da utilidade comum” (Acórdão n.º 39/88). Voltou a fazê-lo em 1993, ao recusar a inconstitucionalidade de norma que estabelecia a renovação automática e obrigatória de contratos de arrendamento, por reconhecer essa função social da propriedade: “Mas, fundando-se o direito à habitação na dignidade da pessoa humana (ou seja, naquilo que a pessoa realmente é: um ser livre com direito a viver dignamente), existe, aí, um mínimo que o Estado sempre deve satisfazer. E para isso pode, até, se tal for necessário, impor restrições aos direitos do proprietário privado. Nesta medida, também o direito à habitação vincula os particulares, chamados a serem solidários com o seu semelhante (princípio de solidariedade social); vincula, designadamente, a propriedade privada, que tem uma função social a cumprir” (Acórdão n.º 311/1993). E, mais recentemente, em 2009, por decisão relatada pela atual Provedora de Justiça, o Tribunal Constitucional foi ainda mais longe, não julgando inconstitucional uma norma que impunha a venda forçada de prédios quando o proprietário não cumprisse o dever de reabilitação urbanística (Acórdão n.º 421/2009). Mais do que isso, para que dúvidas não restassem, explicou que não é forçoso que o texto constitucional explicite, palavra a palavra, quais são as concretas restrições que podem ser impostas ao direito de propriedade privada, já que elas podem resultar de uma ponderação entre este e outros direitos constitucionalmente protegidos. De onde decorre a improcedência do argumento já utilizado por alguns, no sentido que a Constituição teria que prever expressamente o arrendamento forçado (que, note-se, é menos intrusivo do que a venda forçada, já considerada conforme à Constituição, pelo Tribunal).

Para além disso, há muito que vigoram na ordem jurídica portuguesa normas que permitem outras restrições do direito de propriedade privada. Veja-se, por exemplo, a possibilidade de realização de obras coercivas pelas câmaras municipais, quando os senhorios não as realizem em prédios ou frações arrendados; ou a gestão e arrendamento de terrenos agrícolas e silvícolas sem dono conhecido durante um período de registo provisório que dura 15 anos, previsto pelo artigo 12.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 15/2019; ou o dever, já consagrado, em 2019, nos artigos 4.º, n.º 1, 5.º, n.ºs 1 e 2, e 28.º, n.º 2, da Lei de Bases de Habitação, de o Estado promover o uso efetivo de prédio devolutos pertencentes a particulares, em especial, em zonas de especial pressão urbanística; ou ainda o arrendamento forçado de terrenos agrícolas e silvícolas integrados em zona de gestão da paisagem, que decorre do artigo 36.º, n.º 2, da Lei de Bases dos Solos, na redação que lhe deu o Decreto-Lei n.º 52/2021. Nenhuma delas gerou particular celeuma ou foi alvo de qualquer julgamento de inconstitucionalidade.

Mas, afinal, será excessivo (e, portanto, desproporcionado) que o Estado proceda ao arrendamento forçado de prédios devolutos?

Dúvidas não restam, para ninguém, que a medida cumpre o critério da adequação: isto é, visa assegurar um outro direito constitucional; in casu, o direito a uma habitação condigna (artigo 65.º da CRP), que tem tanta dignidade quanto o direito de propriedade privada. Resta saber se o mesmo é necessário: ou seja, se ele constitui a medida menos lesiva das várias medidas em alternativa. Ora, conforme já se demonstrou, poderia equacionar-se medidas bem mais lesivas, tais como a venda forçada ou a expropriação. Aliás, deve notar-se que, há muito, a Constituição e a lei preveem a possibilidade de expropriação para fins de interesse público e os tribunais têm vindo a aceitá-lo sem qualquer renitência, desde que garantida uma justa indemnização (que não tem de corresponder ao valor de mercado). Sucede que, a solução proposta pelo Governo garante que o proprietário do prédio devoluto recebe uma quantia justa pelo arrendamento, pelo que dificilmente se poderá concluir pela inconstitucionalidade da mesma. Para além disso, o arrendamento forçado de prédios devolutos privados constitui uma medida de fim de linha, já que o novo regime terá sempre de respeitar a atual Lei de Bases da Habitação, que, por imposição constitucional (cfr. artigo 112.º, n.º 3), prevalece sobre as novas leis ordinárias que venham a ser aprovadas), expressamente determina que o Estado deve arrendar, prioritariamente, prédios devolutos que pertençam ao património edificado público (cfr. artigo 4.º, n.º 3).

Poder-se-ia questionar, porém, se o arrendamento forçado de prédio não utilizado pelo proprietários violaria o critério da justa medida, por corresponder a uma medida mais intensa do que o indispensável para salvaguarda do direito à habitação. Mais uma vez, o debate público parece ter esquecido que a proposta legislativa se cinge aos prédios devolutos e que, desde 2006, existe um regime jurídico que já densifica, de modo bastante detalhado, esse conceito. Com efeito, o artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 159/2006, recentemente alterado pelo Decreto-Lei n.º 67/2019, apenas qualifica como prédio devoluto aquele que não seja utilizado há mais de um ano, expressamente determinando que são indícios de desocupação a inexistência ou o baixo cosumo de água, gás, eletricidade e comunicação. E, no seu artigo 3.º, afasta várias situações de não uso há mais de um ano, como por exemplo, as casas de férias, as casas de emigrantes ou de portugueses que representem o Estado português no estrangeiro ou trabalhem em organizações internacionais ou as que se encontrem em processo de reabilitação.

Tudo visto, o conceito de prédio devoluto é bem mais restrito do que o conceito comum de prédio não usado ou abandonado. Cabe às câmaras municipais identificar e manter um inventário dos prédios devolutos. O que garante que só as casas que não são efetivamente utilizadas, sem razão válida, podem ficar sujeitas a este novo regime de arrendamento forçado, cumprindo assim o princípio da proporcionalidade.

Em suma, quando há uma imensidão de pessoas a sofrer, há que fazer escolhas. A acumulação de riqueza por poucos, sem que isso se traduza no efetivo uso desses bens, não é tolerável, quando há quem não tenha onde morar, salvo vivendo uma vida de indigência. Evidentemente, há outras soluções complementares que o Estado e a sociedade não estão dispensados de tomar.

Aliás, estranha-se a falta de criatividade e de rasgo atual. É preciso encontrar novas soluções e novos modos de vida em sociedade. Não se percebe como é que não se aproveitou os ensinamentos do combate à pandemia para se manter (e, se necessário, impor) regimes de trabalho à distância. Num país tão pequeno e bem servido de vias rodoviárias como é o nosso, a possibilidade de se viver fora dos grandes centros urbanos, não só contribuiria para o repovoamento de zonas hoje periféricas e abandonadas como para a diminuição da pressão imobiliária sobre os grandes centros urbanos. Por outro lado, é pena que não se aposte noutro modelo de construção de prédios de habitação comunitários (ou “cohousing”), que passe pela construção de espaços comuns, como cozinhas e equipamentos de lavandaria e secagem partilhados entre vários apartamentos. Atento o custo elevado da multiplicação destas divisões de cada apartamento individual, contribuir-se-ia, em muito, para a diminuição dos custos de construção (baixando o preço médio das casas) e promover-se-ia uma vivência mais comunitária e solidária, com manifestos benefícios para o ambiente.

E não se diga que ninguém quereria partilhar espaços comuns deste tipo. Quando há tanta gente fechada em quartos claustrofóbicos e degradados.

Não admira portanto que quem não encontra uma habitação condigna, se vá embora. Porque quem baza, quer casa.

E pode ser que não volte.

Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa

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