Importa começar por lançar a questão: em pleno século XXI, é possível analisar “militarmente” uma guerra que tem um enorme eco global, ignorando a raiz genocida e ilegítima do invasor, a envolvência política, entretanto gerada em defesa do invadido e as peças que acabam por se mover, mesmo que indiretamente, no terreno?
1. A resposta é um rotundo “não”, mas esse erro básico na análise durou até há poucos dias entre os mais variados generais, major-generais e outros que sem sê-lo, caíram na mesma estreiteza. “A Rússia não podia perder, era impossível a Ucrânia ganhar e tudo era uma questão de tempo” disse-me um desses majores recentemente. De nada me valia transmitir que dispunha de informação que poderia indiciar o contrário, pois eu estava claramente envolto numa “narrativa romântica criada no Ocidente e cujo desfecho a curto prazo é catastrófico para todo nós.” Pois, constato como a alguns destes perpetuadores da realpolitik em todo e qualquer tema da política internacional, julgando-se com isso donos da aura de um suposto pragmatismo maior, as certezas militares confundiram-se com a discordância política. Como não podia deixar de ser, até esta última tem-se revelado desastrosa. Veja-se: se há coisa que se torna “clara” para quem porventura ainda não o tivesse como tal, é que não foi só num primeiro tempo que o alinhamento completo da União Europeia e da Nato à resposta inspiradora dos ucranianos foi crucial. A linha contínua nos apoios aos serviços de inteligência ucranianos e ao armamento das suas tropas tem feito mais pelo fortalecimento da Nato e dos valores fundacionais da União Europeia, do que o enfraquecimento gerado pela importação de gás russo, levada a cabo pelo executivo de Merkel e outros governos “ingénuos” de países europeus desde 2014.
2. Perante o cenário atual e com um Putin que ao fim de 200 dias de guerra parece estar a perder demais fora e dentro do terreno (falta de tropas, munições e motivação das suas linhas), resta-lhe agora a tentativa de martelar algumas falsas narrativas. A mais relevante é a de que a administração americana quis esta guerra, enquanto é público que os seus serviços secretos não só avisaram os ucranianos, a U.E, como sabe-se que Biden há mais de seis meses que tentou persuadir o chefe do Kremlin para não avançar com a invasão. A bota não bate naturalmente com a perdigota nesta narrativa e até o discurso inflamado e louco do chefe do Kremlin nas vésperas da guerra está aí a confirmá-lo.
3. As sanções têm o seu efeito boomerang e por isso já pesam na Europa também. Mas para lá da constante autoflagelação Ocidental de alguns, fazem estragos maiores do lado de lá e não devem ser separadas dos efeitos e resultados da recente e extraordinária contra - ofensiva ucraniana no terreno. Não é só o apoio dos EUA e da União Europeia através do armamento em peso a produzir resultados. A queda no preço do petróleo logo à partida e o tombo nas receitas da venda do gás têm sido catastróficas para uma Rússia, onde também já se vislumbram os primeiros sinais de uma oposição interna a querer tirar espaço a Vladimir Putin.
Confesso que nunca acreditei que perante tamanha humilhação desde o inicio, isso não pudesse vir a acontecer e escrevi há pouco mais de dois meses neste jornal que dificilmente a estratégia de alguns líderes Ocidentais não passaria por aí.
4. Uma operação de Putin desastrosa para o país e que aniquilou de vez com a economia russa; a invasão que trouxe mortes e destruição para russos, falantes da língua russa dos dois lados da fronteira ucraniana, conduzindo a Finlândia e Suécia pelo caminho para a Nato e perdendo de forma quase imediata grande parte (todo?) da expressão na exportação do gás russo para o mercado europeu. Enquanto isso, o “estratega” apresentava e mostra ao mundo uma nação russa sórdida, violenta, mentirosa e descontextualizada no seu revanchismo.
Sem resultados concretos no terreno e com uma imagem de força ou poderio a esvanecer-se de forma completa, até os líderes das mais violentas e opressivas das ditaduras podem-se tornar presas fáceis. Está a acontecer com Putin.
A guerra do chefe do Kremlin não será o fim da Ucrânia como país. Bem pelo contrário. Deve é levar ao fim de Putin na Rússia, antes que este atire o seu próprio país para um abismo ainda maior e sem retorno possível.
Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: clubeexpresso@expresso.impresa.pt
Assine e junte-se ao novo fórum de comentários
Conheça a opinião de outros assinantes do Expresso e as respostas dos nossos jornalistas. Exclusivo para assinantes