Opinião

Nos idos de março

Nos idos de março

Gonçalo Ribeiro Telles

Consultor de comunicação

Nesse mesmo mês de março e poucos dias antes, Andrei Kozyrev, ex-ministro dos Negócios Estrangeiros no tempo de Ieltsin, aludia em entrevista ao Financial Times que a ideia de se isolar excessivamente ou de humilhar o ditador russo nesta guerra em particular, correndo-se assim o risco de dar azo a uma catástrofe nuclear, não fazia sentido pelo que estava em causa. Simplesmente, acomodava uma espécie de mindset ocidental, sem qualquer correspondência do outro lado

Existem supostas gaffes na política que são intencionais. Faz parte. Mais ou menos inconvenientes e que muitas vezes servem para passar uma mensagem direta e “sem filtro” à qual interessa essa denominada condição, mas que não escondem aquilo que se pensa e quer dizer por outra via. Foi mesmo assim que há pouco mais de três meses, li, ouvi e interpretei as declarações do presidente norte-americano na Polónia, referindo-se a Vladimir Putin como um carniceiro que não podia continuar no poder a longo-prazo.

Ao dia de hoje, com um dos mais recentes massacres russos do centro comercial de Kremenchuk e sem qualquer objetivo militar maior ou menor, difícil é não voltar ao que o não raras vezes fragilizado Biden disse nessa altura. Nada mudou, a frase só se tornou mais rigorosa e ganhou expressão.

Nesse mesmo mês de março e poucos dias antes, Andrei Kozyrev, ex-ministro dos Negócios Estrangeiros no tempo de Ieltsin, aludia em entrevista ao Financial Times que a ideia de se isolar excessivamente ou de humilhar o ditador russo nesta guerra em particular, correndo-se assim o risco de dar azo a uma catástrofe nuclear, não fazia sentido pelo que estava em causa. Simplesmente, acomodava uma espécie de mindset ocidental, sem qualquer correspondência do outro lado. Aí, a linguagem que surtiria efeito era outra e a “força” prevaleceria sempre. Por mais encurralado que um “rato” está, ele encontra sempre uma saída para “vender” uma vitória interna. Kozyrev acrescentava que a sensação completa de perder a guerra no terreno ucraniano e fora dele era o único garante de uma retirada russa do país, de um golpe de Estado interno em Moscovo ou da negociação de um cessar-fogo, finda a estratégia falhada e mascarada internamente de Putin.

Era nestes termos que o Ocidente deveria atuar.

Passado estes meses, à luz do bloqueio de Kaliningrado por parte da Lituânia e um certo temor imediato de que se “estaria a ir longe demais nesta contra - ofensiva,” apercebi-me de como não só alguns líderes europeus se tornaram medrosos no atual contexto, mas sobretudo, contraproducentes. Às maiores conquistas russas no terreno, a União Europeia deu nos últimos tempos um sinal de diminuir-se naquilo que Kozyrev e outros com ele consideravam como essencial que não se fizesse.

A ajuda aos ucranianos tanto no domínio militar e não militar só pode intensificar-se. É imperativa a perceção do Kremlin de que a ação de hoje não corresponde a um esforço temporário da União Europeia, dos EUA ou que será relegada para uma importância relativa com o passar do tempo. As medidas de investimento anunciadas no G7 para alguns países em desenvolvimento que ainda não cederam na sua aparente “neutralidade”, é já um passo em direção a responder à posição russa, mas sobretudo, chinesa, em continentes como o africano. É-o também quanto aos blocos que dominarão o mundo, a uma globalização diferente em que a sobrevivência maior das democracias liberais e a ordem internacional passaram a estar ameaçadas no seu todo.

O significativo reforço da Nato do leste europeu, o apoio continuado à Ucrânia, a adesão da Suécia e a Finlândia, bem como toda esta demonstração recente de poderio alargado não deixa de ser condizente com isso e a constatação daquilo que alguns vaticinavam como crucial há três meses. Demorou, mas o essencial nunca desapareceu. Passa por fazer tudo para esvaziar ou retirar do poder Putin e aquilo que representa.

Não há meia via.

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