Existem supostas gaffes na política que são intencionais. Faz parte. Mais ou menos inconvenientes e que muitas vezes servem para passar uma mensagem direta e “sem filtro” à qual interessa essa denominada condição, mas que não escondem aquilo que se pensa e quer dizer por outra via. Foi mesmo assim que há pouco mais de três meses, li, ouvi e interpretei as declarações do presidente norte-americano na Polónia, referindo-se a Vladimir Putin como um carniceiro que não podia continuar no poder a longo-prazo.
Ao dia de hoje, com um dos mais recentes massacres russos do centro comercial de Kremenchuk e sem qualquer objetivo militar maior ou menor, difícil é não voltar ao que o não raras vezes fragilizado Biden disse nessa altura. Nada mudou, a frase só se tornou mais rigorosa e ganhou expressão.
Nesse mesmo mês de março e poucos dias antes, Andrei Kozyrev, ex-ministro dos Negócios Estrangeiros no tempo de Ieltsin, aludia em entrevista ao Financial Times que a ideia de se isolar excessivamente ou de humilhar o ditador russo nesta guerra em particular, correndo-se assim o risco de dar azo a uma catástrofe nuclear, não fazia sentido pelo que estava em causa. Simplesmente, acomodava uma espécie de mindset ocidental, sem qualquer correspondência do outro lado. Aí, a linguagem que surtiria efeito era outra e a “força” prevaleceria sempre. Por mais encurralado que um “rato” está, ele encontra sempre uma saída para “vender” uma vitória interna. Kozyrev acrescentava que a sensação completa de perder a guerra no terreno ucraniano e fora dele era o único garante de uma retirada russa do país, de um golpe de Estado interno em Moscovo ou da negociação de um cessar-fogo, finda a estratégia falhada e mascarada internamente de Putin.
Era nestes termos que o Ocidente deveria atuar.
Passado estes meses, à luz do bloqueio de Kaliningrado por parte da Lituânia e um certo temor imediato de que se “estaria a ir longe demais nesta contra - ofensiva,” apercebi-me de como não só alguns líderes europeus se tornaram medrosos no atual contexto, mas sobretudo, contraproducentes. Às maiores conquistas russas no terreno, a União Europeia deu nos últimos tempos um sinal de diminuir-se naquilo que Kozyrev e outros com ele consideravam como essencial que não se fizesse.
A ajuda aos ucranianos tanto no domínio militar e não militar só pode intensificar-se. É imperativa a perceção do Kremlin de que a ação de hoje não corresponde a um esforço temporário da União Europeia, dos EUA ou que será relegada para uma importância relativa com o passar do tempo. As medidas de investimento anunciadas no G7 para alguns países em desenvolvimento que ainda não cederam na sua aparente “neutralidade”, é já um passo em direção a responder à posição russa, mas sobretudo, chinesa, em continentes como o africano. É-o também quanto aos blocos que dominarão o mundo, a uma globalização diferente em que a sobrevivência maior das democracias liberais e a ordem internacional passaram a estar ameaçadas no seu todo.
O significativo reforço da Nato do leste europeu, o apoio continuado à Ucrânia, a adesão da Suécia e a Finlândia, bem como toda esta demonstração recente de poderio alargado não deixa de ser condizente com isso e a constatação daquilo que alguns vaticinavam como crucial há três meses. Demorou, mas o essencial nunca desapareceu. Passa por fazer tudo para esvaziar ou retirar do poder Putin e aquilo que representa.
Não há meia via.
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