Opinião

Dura Lex Sed Lex, Sic Infirma Est

Não é só a obsessão reguladora, as proibições, as imposições, as regras, em nome de uma suposta virtude - o PAN, por exemplo, propôs esta semana que os telhados da cidade de Lisboa passassem, progressivamente, a ser brancos… -, o que já não seria pouco, perigoso e muito inconveniente; é a completa falência da autoridade do Estado, a quem depois, ante a incapacidade de fazer cumprir a lei, ninguém liga nenhuma

O liberal Carlos Guimarães Pinto, esta semana, no Facebook, desabafou sobre uma parte quantitativamente relevante do processo legislativo. Num dos pontos da sua publicação disse: “Outra consequência do spam legislativo é a possibilidade de algumas destas propostas de alteração acabarem aprovadas (muitas vezes por receio dos partidos de serem vistos a rejeitar propostas inúteis, mas que parecem bem intencionadas), gerando ainda mais burocracia e incumprimentos. A troco de um pequeno momento mediático de sinalização de virtude, acabamos com despesa pública fixa ou burocracia adicional que não serve qualquer objetivo.”

O “conservador” James Fitzjames Stephen, no século XIX, na sua crítica a Stuart Mill em Liberty, Equality, Fraternity, afirmou que “antes que um acto possa ser tratado como crime [ou passível de punição legal], ele deve ser bem definido e deve-lhe ser definida também prova específica, e também deve ser de tal natureza que valha a pena preveni-lo (...). [Até porque] há uma esfera (...) na qual o direito e a opinião pública são intrusos susceptíveis de fazer mais mal do que bem.”

De que é que um liberal e um “conservador” estão a falar, para se encontrarem de acordo em tal matéria de regulamentação e “dano alheio”?

Aqui há dias lembrei-me das regras impostas pelo Governo, há dois anos, para ir à praia: distância de 1,5 metro entre banhistas; interditas actividades físicas com 2 ou mais pessoas, a menos que fossem actividades náuticas - não perguntem…; os toldos e as barracas tinham que estar a 3 metros, e os seus limites a 1,5 metro; 5 pessoas era o limite máximo por toldo ou barraca - sem excepção para famílias; havia uma lotação máxima por praia, com um sistema de semáforos, que se podia consultar numa app; sentidos únicos de circulação e com um distanciamento, já referido, de 1,5 metro; os corredores de circulação podiam ser paralelos ou perpendiculares à linha de costa - mas não diagonais, presume-se. Estas regras aplicavam-se a "praias de banhos", o que, considerando os mais 2.000 kms de costa, deve ter sido para facilitar a vida aos fiscais, que, não obstante, nunca verdadeiramente fiscalizaram. De resto, como seria fácil antecipar.

Também esta semana tentei descobrir quantas multas, coimas e contra-ordenações existem em Portugal, mas não fui bem sucedido. A cada ida ao Google o resultado era predominantemente rodoviário. Encontrei, porém, algumas coisas interessantes. Uma delas foi descobrir que há mais de 100 maneiras de uma empresa apanhar uma coima por incumprimentos relativos só à segurança no trabalho. Exemplos? Se, por falta de zelo, "não assegurar ao trabalhador condições de segurança e de saúde em todos os aspetos do seu trabalho", mas também se, por excesso de zelo, "implementar medidas de prevenção que não sejam antecedidas e que não correspondam ao resultado das avaliações dos riscos associados às várias fases do processo produtivo, incluindo as atividades preparatórias, de manutenção e reparação, de modo a obter como resultado níveis eficazes de proteção da segurança e saúde do trabalhador." Ultrapassada a questão dos termos da primeira norma e da interpretação da segunda, é aquilo que o povo costuma designar por: preso por ter cão e preso por não ter.

Consegue o estimado leitor, a partir desta pequena amostra, imaginar quantas áreas, quantas regras e quantas sanções existem em Portugal? Desafio radical: e quantos fiscais - públicos, claro - temos para cada uma das áreas? E quantos precisaríamos mais para uma eficaz cobertura normativa? Desafio ainda mais radical: e as receitas obtidas? Digo receitas obtidas para lembrar as eficazmente fiscalizadas, mas também, e sobretudo, as relapsamente ineficazes. Por exemplo: qual foi a receita arrecadada por atirar beatas para o chão, desde que esse mau hábito é penalizado? Alguém conhece alguém que tenha sido multado por isso?

O João Miguel Tavares, no Público de 5ª feira, a propósito dos metadados e do RGPD, elabora sobre como uma boa - e necessária - intenção inadequadamente regulamentada pode levar ou à paralisia ou ao desvio do seu propósito, com mais dano do que ganho. Mas eu, lendo-o, recordo-me de mais duas coisas: a excepção de que as entidades públicas gozam na aplicação do RGPD, fazendo lembrar o célebre faz o que ele diz, não faças o que ele faz; e, mais grave, o quanto a regulamentação sem considerar as condições efectivas de aplicação provoca em erosão na autoridade do Estado.

Voltemos ao Carlos Guimarães Pinto e ao Fitzjames Stephen: não é só a obsessão reguladora, as proibições, as imposições, as regras, em nome de uma suposta virtude - o PAN, por exemplo, propôs esta semana que os telhados da cidade de Lisboa passassem, progressivamente, a ser brancos… -, o que já não seria pouco, perigoso e muito inconveniente; é a completa falência da autoridade do Estado, a quem depois, ante a incapacidade de fazer cumprir a lei, ninguém liga nenhuma.

Um Estado que regula sem ser capaz de fazer cumprir é um Estado que desiste da sua função principal. A Lei é dura, mas é a Lei, diziam os Romanos; porém, sem meios para se fazer cumprir, está enferma e fere de morte os pilares do Estado.

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