Opinião

Falar de saúde mental das crianças está na moda? Não, não está!

Sabemos o que é a saúde mental das crianças ou falamos porque é um assunto que aparentemente se tornou moda e o medo fez com que se espalhasse mais depressa? Temos assistido a um excesso informativo nos media e nas redes sociais em resultado dos efeitos da pandemia e esta situação pode provocar maior ansiedade, tristeza e medo nas crianças e é preciso desmistificar o tema

Sem darmos por isso, tudo mudou. Já não se vai para a creche e escola com a mesma frequência. Já não se brinca com os amigos de sempre, nem se fazem as festas de aniversário como habitual. Já não se pode convidar os amigos para irem lá a casa comer ou brincar. Temos pais tensos, em teletrabalho e sem disponibilidade para dar a atenção necessária. De repente, as rotinas, as prioridades, tudo mudou na vida das nossas crianças. Não obstante, sabemos que as crianças não têm sido o foco de maior preocupação no contexto da pandemia em que vivemos há mais de um ano. Embora sejam igualmente infetadas, as crianças apresentam manifestações clínicas mais leves do que adultos e idosos, mas o impacto da pandemia sobre a sua saúde mental deverá ser da mesma grandeza ou talvez maior.

Esta circunstância levou a que saúde mental passasse, nos últimos meses, a ser tema de discussão quase diário, nos media e nas redes sociais, por profissionais de saúde mental, comentadores, sociólogos, a propósito das consequências da pandemia no bem-estar físico e mental das crianças e jovens. A par disso, figuras como a tetracampeã olímpica de ginástica artística, Simone Biles, vieram lançar um novo olhar para a necessidade de se falar sobre esta realidade de forma aberta. Aquela revelou ao mundo não estar apta emocionalmente para realizar a prova nos Jogos Olímpicos de Tóquio 2020. Várias manifestações de apoio surgiram, desde logo entre os colegas de equipa e outros profissionais, considerando um contributo fundamental para que todos olhemos para a nossa saúde mental com mais cuidado e determinação, governantes incluídos.

Um estudo da Comissão Europeia “Our Europe, Our Rights, Our Future”, apresentado em março deste ano, envolvendo mais de 10.000 crianças dos países da União Europeia, entre os 11-17 anos, mostrou que os problemas relacionados com a saúde mental se têm vindo agravar nos últimos anos, mostrando que 1 em cada 10 crianças referem viver com problemas de saúde mental ou ter sintomas de depressão e/ou ansiedade. As raparigas e os jovens são os mais afetados. Por outro lado, 1 em cada 5 crianças, entre os 11 e 17 anos, diz que se sente triste e infeliz na maioria do tempo, situação que se agrava quando falamos das crianças LGBTQ+, as crianças com deficiência e as crianças migrantes.

Sabemos que o que se passa na infância pode levar a quadros de doença mental na idade adulta. Os números são preocupantes. Antes da pandemia a Organização Mundial da Saúde (OMS) estimava que 20% das crianças e adolescentes apresentavam pelo menos uma perturbação mental antes de atingir os 18 anos e que, mesmo em países desenvolvidos, apenas 1/3 das crianças com problemas significativos recebem tratamento.

Mas será que sabemos o que é a saúde mental ou falamos porque é um assunto que aparentemente se tornou moda e o medo fez com que se espalhasse mais depressa? Pelos relatos que nos chegam, em Portugal, os consultórios dos Pedopsiquiatras (psiquiatria infantil) no sector privado estão cheios - os recursos dos Serviços Públicos são poucos, os mesmos que existiam antes da pandemia – e estão sobrecarregados pelo aumento da procura. Sabe-se que no Hospital Dona Estefânia em Lisboa, para a primeira infância o tempo médio de espera é agora de dois meses, quando foi sempre abaixo de um mês. Para a segunda infância, são três a quatro meses e, para a adolescência, são mais quatro a cinco meses.

Não sou contra que se fale sobre os problemas da saúde mental, pelo contrário, mas temos assistido a um excesso informativo e esta situação pode provocar maior ansiedade, tristeza e medo nas crianças e é preciso desmistificar o tema.

Mas, afinal, o que é saúde mental?

Apesar de não existir uma definição oficial para o conceito de saúde mental, a OMS defende que a saúde mental é um estado de bem-estar em que o indivíduo realiza as suas capacidades, consegue lidar com as fontes de stress normais do dia a dia, pode trabalhar de modo produtivo e frutífero, e é capaz de dar uma contribuição à comunidade em que se insere. Naturalmente que esta definição contém elementos centrados no adulto, sendo necessário adaptá-la às crianças e aos jovens. Também a Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos das Crianças reconhece o direito a todas as crianças ao mais elevado nível de saúde, lazer e educação e, também, o direito a um nível de vida adequado ao seu desenvolvimento físico, mental, espiritual, moral e social.

Numa perspetiva de desenvolvimento, podemos dizer que ao longo do crescimento a criança realiza um conjunto de aprendizagens que lhe permitem responder adequadamente aos desafios que o meio onde se insere lhe coloca, de forma cada vez mais autónoma. Se neste percurso a criança se deparar com exigências para as quais ainda não é capaz de encontrar resposta e se o ambiente não lhe proporcionar apoios adequados para o fazer, isso constitui um fator de risco de aparecimento de problemas de saúde mental.

Os problemas de saúde mental podem assumir múltiplas formas e expressões. Alguns problemas traduzem-se em experiências internas como alterações do foro emocional (ansiedade ou tristeza elevada, etc.) ou ao nível do pensamento (dificuldades de atenção ou concentração, na compreensão dos estados emocionais e intenções dos outros, etc.). Outros assumem formas mais externas como, por exemplo, problemas de comportamento ou abuso de substâncias. No entanto, não é nenhum destes sintomas que permite o diagnóstico de um problema de saúde mental.

Para que um sintoma constitua verdadeiramente um alerta para a existência de um problema de saúde mental, ele terá que ser intenso e frequente, persistir no tempo, ser desadequado face à idade da criança, ter repercussões no desenvolvimento psicológico normal ou causar graves restrições em diferentes áreas de vida da criança, como no modo como esta brinca, aprende, se relaciona com os amigos e colegas, no acto de dormir, comer, sair à rua, inventar, criar e até protestar.

Neste âmbito, refiro um estudo realizado em Portugal que englobou 502 crianças e jovens entre os 5-18 anos de idade que já estavam a ser acompanhadas nos Hospitais Santa Maria e Pulido Valente, mostrando que houve um agravamento da tristeza, da irritabilidade e da ansiedade e, em menor escala, das alterações de comportamento. Os resultados mostraram ainda que 45% das crianças e jovens evidenciaram alterações no padrão de sono, 78,5% diminuíram o número de horas semanais dedicadas ao exercício físico e 81% aumentaram o tempo de ecrã, e não necessariamente por motivos do ensino à distância. Esta realidade repete-se a nível global. Um estudo recente da Universidade de Calgary, no Canadá, que é uma meta-análise de 29 estudos, envolvendo 81 mil jovens, mostra que os sintomas de depressão e ansiedade duplicaram nas crianças e adolescentes devido à pandemia e estima que um em cada cinco apresenta sintomas de ansiedade.

Apresentar sintomas de tristeza e/ou ansiedade, é normal, se considerarmos que as crianças e jovens tiveram que alterar os seus hábitos e rotinas durante os sucessivos confinamentos e restrições aos relacionamentos. Mas isto não é um quadro de doença mental. Os pais têm um papel fundamental na desdramatização da informação, esclarecimento de dúvidas e no comportamento que assumem, principalmente quando estamos a falar de crianças mais novas, passando uma mensagem securizante para que estas não caiam na angústia, insegurança e imprevisibilidade.

Não sendo uma moda, é legitimo interrogar-nos sobre as razões que levam a que a saúde mental da infância em Portugal e também a nível global continue a não ser uma prioridade e com tão pouco investimento em relação a outras áreas.

Sabemos que a intervenção em idades mais precoces pode prevenir ou diminuir a probabilidade de incapacidade a longo prazo, e que esta é a ação que traduz melhores resultados em termos de custo/eficácia para contrariar o aumento contínuo dos problemas mentais. Temos evidência científica internacional - desconheço se existe algum estudo epidemiológico nacional que determine a prevalência das perturbações psiquiátricas antes dos 18 anos - para facilmente entendermos que a saúde mental deveria ser uma prioridade não só a nível de saúde, mas também no que se refere à educação, à proteção social e à defesa dos direitos humanos.

Quando olhamos para os avanços das últimas décadas no nosso país, vemos uma evolução positiva do número de serviços/unidades especializados em saúde mental para a infância e adolescência, embora a sua distribuição geográfica não seja ainda uniforme, existindo áreas que são claramente carenciadas, como é o caso do interior Norte e Centro, Alentejo e Algarve. O desenvolvimento de uma rede de serviços é uma das prioridades definidas pela Rede de Referenciação Hospitalar da Psiquiatria da Infância e adolescência criada em 2011 e atualizada em 2018, anualmente revisto pelo Plano Nacional para a Saúde Mental.

Mas o aumento do número de serviços e unidades hospitalares por si só não basta. Os cuidados devem ser prestados por equipas multidisciplinares em que se privilegie uma abordagem integrada da criança/família e se valorizem as intervenções em articulação com a comunidade, nomeadamente o trabalho de proximidade com os Cuidados de Saúde Primários e as escolas. É aqui que há ainda um longo caminho a percorrer para se fazer face à carência de recursos humanos, uma das fragilidades das equipas, sendo a multidisciplinaridade quase inexistente em muitas unidades e serviços.

Quero acreditar que as Equipas Comunitárias de Saúde Mental da Infância e Adolescência recentemente criadas pelo Despacho 2753/2020, vão permitir concretizar aquela abordagem integrada caso haja sentido de urgência e investimento para que as cinco experiências-piloto agora lançadas sejam alargadas a todo o país.

Como estão as nossas crianças a lidar com a pandemia? Que efeitos tem na sua saúde e bem-estar? Como podemos ajudá-las? São as perguntas que é agora urgente responder. A saúde mental não é uma moda, não é uma tendência. Já vimos que não será possível atenuar os efeitos da pandemia sobre as crianças e jovens - ansiedade, tristeza, insónia, preocupação, irritabilidade, - mas podemos identificá-los precocemente para que as marcas sobre a saúde mental na geração atual sejam atenuadas e/ou prevenidas. É preciso garantir desde a creche até à universidade um rastreio que avalie os problemas de saúde mental de todas as crianças, principalmente aquelas em situação mais vulnerável e se assegure uma intervenção psicológica especializada, individualizada e gratuita para todas as crianças e famílias que necessitem.

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: ss.odete@gmail.com

Comentários
Já é Subscritor?
Comprou o Expresso?Insira o código presente na Revista E para se juntar ao debate