Recordar o passado para não repetir os mesmos erros no presente e no futuro é tão importante como necessário, principalmente quando falamos de crianças migrantes ou refugiadas, muitas delas não acompanhadas e/ou separadas dos pais. Todos temos presente na nossa memória a história triste do menino sírio Aylan Kurdi, que em 2015 se afogou no mar Egeu, durante uma tentativa de fugir da guerra civil na Síria, tendo o seu corpo sido encontrado numa praia na Turquia. A imagem chocou o mundo e envergonhou os países da União Europeia (UE) que prometeram tudo fazer para que tal situação não voltasse a ocorrer em solo europeu.
Mais uma vez, os números apresentam-nos uma realidade que contraria o discurso político dos líderes europeus. Entre 2014 e 2020, pelo menos 2300 crianças perderam a vida no Mediterrâneo. Cerca de 90% faziam a travessia sozinhas. Os números do estudo realizado pelo jornal britânico The Guardian e o Consórcio Jornalístico Lost in Europe mostram que se perdeu o rasto a mais de 18 mil crianças migrantes e refugiadas, entre 2018 e 2020, o equivalente a 17 crianças por dia. Segundo os dados disponíveis, 90% são rapazes, e cerca de 1 em cada seis tem menos de 15 anos. Muitas delas são desviadas por redes de tráfico de seres humanos e destinadas à exploração laboral e sexual.
As organizações internacionais referem que os números alarmantes de crianças desaparecidas são um sinal que os sistemas de proteção europeus não funcionam, apontando também a falta de coordenação entre os Estados-membros, registos de crianças com informação insuficiente para se lhes seguir o rasto, falta de procedimentos internacionais para a reunificação familiar, estruturas de acolhimento onde as crianças não têm os seus direitos assegurados, como seja educação, saúde e nutrição.
É, por isso, chocante que passados seis anos voltemos a assistir a cenas semelhantes àquelas vividas em 2015, de barcos a fazer travessias perigosas para a Europa vindos principalmente, da Líbia, da Síria, de Marrocos, juntando adultos e crianças, quer com pais ou outros familiares, quer sozinhos.
A questão que se coloca é a de saber se a UE está mais bem preparada para responder à situação, uma vez que, com a aproximação do verão e a subida da temperatura das águas, é de esperar o aumento do número de crianças que fazem a travessia.
A resposta a esta questão que há muito me inquieta visa suscitar alguma reflexão, que não é exaustiva, na esperança de que dando a conhecê-la esta possa ter algum eco junto dos decisores políticos, no âmbito da negociação em curso do novo pacto composto por um conjunto de nove instrumentos – entre propostas legislativas (5) e iniciativas não legislativas (4) a serem adotadas pelos Estados-membros.
Assumindo que o sistema atual não funciona, desde a grande crise migratória de 2015, a Comissão Europeia (CE) apresentou, em setembro de 2020, um novo Pacto para as Migrações e Asilo com procedimentos mais rápidos e eficazes, que pretende substituir as “soluções ad-hoc” a que se assistiu nos últimos anos, exigindo uma melhor partilha de responsabilidades entre os países membros da UE.
A falta de solidariedade existente entre os países europeus tem sido mesmo um dos aspetos mais críticos na gestão da política migratória e asilo da UE, como demonstrado, por exemplo, pelo Programa de Recolocação lançado pela CE em março de 2020 para ajudar a Grécia a ultrapassar a situação crítica essencialmente em relação às 5000 crianças e adolescentes não acompanhados, mas também às crianças com problemas de saúde graves e outras vulnerabilidades, e os membros da sua família nuclear. Até ao presente, apenas 11 Estados-membros participam no programa, assumindo o compromisso de recolocação de 2000 crianças. Portugal já recebeu 78 crianças e adolescentes de um total de 500, que, segundo dados da CE divulgados no final de novembro, tornam o nosso país no 4.º Estado membro que mais acolheu (a seguir à Alemanha, França e Finlândia).
Atualmente, a chegada de uma criança não acompanhada ou separada dos respetivos pais a um posto de fronteira da UE é um processo complexo e na maioria das vezes negativo, na medida em que implica a identificação, registo, acompanhamento e acolhimento das crianças não acompanhadas ou separadas, com um tempo de espera por vezes de meses ou mesmo anos. Formalmente, é aqui que as autoridades responsáveis pelo controlo dos postos de fronteiras têm a primeira oportunidade para identificar eventuais riscos, vulnerabilidades e necessidades especiais. Esta triagem ditará o futuro daquelas crianças, que pode passar por um pedido de proteção internacional, pelo reagrupamento familiar num Estado-membro da UE ou no primeiro país de asilo, pelo regresso assistido ao país de origem, ou até pela sua sinalização enquanto vítima de tráfico.
Não existindo um documento que regule esta área na sua totalidade, impõe-se que seja a Convenção sobre os Direitos da Criança, ratificada pelos 27 Estados-membros, a enquadrar o regime internacional de proteção de crianças migrantes ou refugiadas, destacando-se para o efeito as seguintes disposições: não deverá ser discriminada em relação às demais (artigo 2.º); deverá ter a sua sobrevivência e desenvolvimento salvaguardados (artigo 6.º); e ser-lhe garantido o direito de participação e a ser ouvida (artigo 12.º). De particular interesse neste contexto, é o artigo 22.º, que faz referência ao direito de beneficiar de proteção adequada e assistência humanitária. A este artigo associam-se as disposições constantes da Convenção relativa ao Estatuto dos Refugiados e Protocolo Adicional, destacando-se o direito da criança ao “non-refoulement”, ou seja, “não repulsão” (Artigo 33.º da Convenção).
Quanto a instrumentos adotados pela UE, importa referir também, pela importância que revestem, as diretivas que compõem o Sistema Europeu Comum de Asilo (Diretiva 2011/95/UE, Diretiva 2013/32/UE, Diretiva 2013/33/UE), afirmando que o superior interesse da criança deverá constituir uma consideração primordial para os Estados-membros da UE e contendo cláusulas especificamente dirigidas à criança não acompanhada.
Nesta medida, é positivo que a CE identifique no novo pacto as "necessidades das crianças como uma prioridade", reconhecendo que "a reforma da UE sobre asilo e regresso é uma oportunidade para reforçar as salvaguardas e procedimentos de proteção ao abrigo da legislação da UE das crianças migrantes". Entre outras coisas, sublinha a importância da assistência jurídica em todos os procedimentos de determinação do estatuto e coloca o princípio do interesse superior da criança, como refere o artigo 3.º da Convenção sobre os Direitos da Criança, como uma consideração primordial em todas as decisões relativas às crianças migrantes, a par do seu direito a serem ouvidas. Este princípio deverá, portanto, ser incorporado em todas as fases pelas quais a criança passa, começando pela sua identificação num posto de fronteira ou em território nacional, passando pelo seu acolhimento, pelo processo de determinação da sua idade, ou pelo procedimento de asilo propriamente dito. A realização deste princípio permite assegurar à criança o acesso efetivo aos seus direitos.
A este propósito, é importante mencionar o acórdão histórico do Tribunal de Justiça da UE (TJUE) de 14-01-2021 (Processo C-441/19 TQ vs Staatssecretariis van Justitie en Veiligheid), relativo à interpretação dos artigos 5º e 10º da Diretiva “Regresso” (2008/115/CE), no caso do adolescente guineense de 15 anos não acompanhado cujo pedido de proteção internacional havia sido rejeitado pela Holanda. O TJUE vem exigir, à luz do quadro jurídico da UE em vigor, que o princípio do superior interesse da criança seja aplicado, contrariando a decisão tomada pelas autoridades holandesas. As conclusões desta decisão do TJUE terão certamente consequências na forma como os Estados-membros e os próprios juristas vão interpretar e operacionalizar aquele princípio noutros casos de pedidos de proteção internacional de crianças não acompanhadas. Além disso, admite-se que tenha necessariamente impacto no novo pacto, não só na aplicação da legislação e prática atuais da UE, mas também na nova arquitetura legislativa e política da UE neste domínio, ainda em fase de negociação, assim como na cooperação da UE com países terceiros, de forma que estes assegurem soluções duradouras para o regresso destas crianças.
Convém referir que o novo pacto prevê ainda medidas como, por exemplo, que as crianças não acompanhadas e as famílias com crianças menores de 12 anos passem a ficar isentas do procedimento de triagem obrigatório no posto de fronteira; que passe a haver alternativas eficazes à detenção de crianças e suas famílias, além do estabelecimento de regras relativas às provas exigidas para o reagrupamento familiar simplificado; que seja atempada a nomeação de tutores para as crianças não acompanhadas à chegada no posto de fronteira, prevendo também o reforço da rede europeia de tutores; e que haja um reforço ao alojamento e assistência adequados, o acesso rápido e não discriminatório à educação e o acesso aos serviços de proteção.
Termino como comecei. A mensagem deixada pelo menino sírio Aylan Kurdi é maior do que podemos imaginar. Ele representa todas as crianças refugiadas que trocam a morte certa por uma morte provável, todas as crianças sírias, líbias, marroquinas ou outras que clamam por uma oportunidade justa de construir um futuro melhor na Europa. Cabe aos líderes europeus a responsabilidade de fazer com que o princípio do superior interesse da criança seja a principal prioridade do acolhimento e integração destas crianças, cumprindo o sonho de Aylan Kurdi, de ter a oportunidade de ser apenas Criança!