A Beleza das Pequenas Coisas

A culpa é sempre dos pais?

Numa destas noites, passou por mim um grupo de rapazes adolescentes, ainda sem idade para terem barba, mas já capazes de engrossar a voz, a partilharem de forma efusiva feitos e glórias. Eram uns 8. Nenhum teria mais de 15 anos.

Um deles gabava-se do que tinha feito a uma espécie de ‘boneca insuflável’.

Poupo-vos a expressão, mas referia de forma gráfica a forma como se satisfez sexualmente com ela. Uma boneca que, na verdade, era uma rapariga de carne e osso. E, suspeito, uma jovem da idade deles.

Todos se riram alto e bateram nas costas do rapazinho armado em machão, como se celebrassem a vitória do capitão após um golo.

O machão imberbe reforçava para os amigos que tinha cumprido o ato de forma maquinal, fria e violenta. Como quem fura a parede da marquise para montar um novo estendal para o inverno.

Que namorados, maridos e companheiros serão estes rapazolas no futuro?

Pensei neles quando vi a nova minissérie britânica do momento, “Adolescência”, da Netflix.

Ser ou não ser másculo

E não esqueci as perguntas colocadas nesta história de ficção por uma psicóloga a Jamie Miller, o protagonista de 13 anos que foi acusado e detido por matar uma colega com uma faca de cozinha.

“O que é ser homem?” e “o que consideras ser másculo?” Estas questões saltam do ecrã para quem assiste a este enredo no sofá de casa.

E poderiam ser colocadas àqueles rapazes gabarolas com quem me cruzei e a tantos outros imberbes ou homens feitos em Portugal, no Reino Unido, ou de qualquer outro país da Europa ou do mundo.

Poucas vezes as séries de ficção mais populares são tão boas como as vendem. E, ainda mais raras vezes, fazem-nos refletir profundamente sobre a sociedade e os seus males estruturais.

A série “Adolescência” tem essa virtude. E é talvez melhor do que a pintam. Não só é excepcionalmente bem representada e filmada com planos de sequência fora de série que acrescentam mais tensão e realismo às cenas — como não se deixa levar por planos espalhafatosos ou voyeuristas. E, acima de tudo, é um drama extremamente bem escrito e pensado.

É um tratado sociológico sobre como andamos a educar as nossas crianças e jovens. E que tipos de pais, mães e educadores somos para estes menores.

Adolescência pega numa batata quente e não se queima. É um reflexo realista do bullying, da violência de género no namoro, e das doenças do foro da saúde mental que assolam os mais novos.

O tema é tão pertinente que chamou a atenção da esfera política britânica e deverá ser discutido no Parlamento.

Das notícias para a ficção

Foi preciso o tema ser trabalhado na ficção, para se dar mais importância ao que já tinha sido notícia no Reino Unido.

“Li um artigo no jornal sobre um rapaz que tinha matado uma rapariga. E, três semanas mais tarde, estava a ver as notícias e aparece a história de um miúdo que tinha matado uma miúda à facada. Pensei: ‘o que se estará a passar na sociedade para este tipo de coisa ser tão frequente?", contou o ator e criador da série Stephen Graham no programa “BBC Breakfast”.

Em apenas quatro dias, "Adolescência" foi vista mais de 24 milhões de vezes.

É a série mais popular da Netflix, em 71 países, incluindo Portugal, e está no Top 10, noutros 91 países.

Importa dizer que nesta minissérie não há apenas bons e maus, ninguém é inocente e todos são vítimas de uma cultura machista, misógina, homofóbica, abusiva e predatória.

Aqueles miúdos da história, na idade do armário, vivem demasiado ligados nas redes sociais, enquanto as mães e os pais parecem desligados deles, assoberbados na suas vidas profissionais.

A selva juvenil

Os jovens retratados parecem não distinguir bem a realidade da ficção, o mal do bem, a morte real do ‘game over’ de um jogo de computador, ficando só a contar os valores polarizados e primários, numa espécie de selva juvenil.

É a selva que só tem dois lados, o fraco ou forte, o bonito ou feio, o popular ou o falhado e alvo de humilhação.

Uma arena que salta dos corredores da escola, para o mundo digital no Instagram, no Tik Tok, Snapchat, onde certos emojis e ‘nudes’ não consentidos se espalham rapidamente pela comunidade e causam estilhaços na auto-estima como bombas.

Portugal despertou também nos últimos anos para o flagelo do cyberbullying e bullying em contextos escolares.

Mas esta pandemia social está longe de ser curada e controlada, como já escrevi anteriormente. E importa ajudar os professores, educadores e auxiliares de educação a lidar com este problema.

Deverá banir-se os telemóveis das escolas e regressar-se aos manuais escolares? Ou deverão criar-se regras mais apertadas para o uso de ecrãs, e promover-se mais debate e reflexão sobre igualdade de género e inclusão?

Sobre isso recordo o contra ciclo em que estamos nesta matéria que só pode dar mau resultado.

O ídolo Andrew Tate

Acresce que estes adolescentes da minissérie são jovens que idolatram Andrew Tate.

Aquele que é considerado o mais perigoso influencer do mundo, um ex-lutador de kickboxing que radicalizou milhões de jovens rapazes com mensagens sexistas e de ódio às mulheres, acusado de violação, tráfico humano e organização criminosa na Roménia.

Ora os conceitos misóginos difundidos por Tate, a cultura da ‘manosfera’, são lavagens cerebrais para os mais novos.

E, entre outras barbaridades, sugere-se que é razoável que os rapazes forcem e manipulem as raparigas a uma relação sexual. Sob pena de não ficarem com nenhuma…

O medo de ser ‘Incel’

E sob a ameaça de se ser considerado um “incel” - termo cunhado nos anos 90 e que é uma abreviação de “celibatários involuntários” (do inglês ‘Involuntary Celibates’).

A referir-se a rapazes e homens frustrados que se descrevem como incapazes de ter um relacionamento ou vida sexual. E que culpam abertamente as mulheres pelo seu “fracasso sexual”, julgando-as oportunistas ou promíscuas.

Ou seja, as novas gerações a perpetuarem a ferida do sexismo e da violência para com as mesmas vítimas. Que, mais tarde, poderá tomar a forma de violência doméstica, uma realidade ainda alarmante no nosso país.

O próprio protagonista da série, de 13 anos (brilhante ator Owen Cooper), esfaqueia uma colega movido por raiva e frustração. (Não é spoiler, tudo começa a partir daqui). Depois disto ficam muitas questões, inquietações e culpas no ar.

De quem é a culpa?

A culpa é sempre dos pais e mães destes adolescentes? Por ausência, negligência, ou repetição de padrões de comportamento?

Certo é que por melhor que seja a educação em casa haverá sempre falhas, erros. E os pais e as mães não comandam ou controlam todas as acções dos filhos. E, por isso, esta série encerra talvez um dos seus maiores terrores.

“A ideia de o meu filho poder vir a ser assim atormenta-me.”, desabafou uma amiga que anda a evitar ver a série por ser mãe de um rapaz de nove anos.

E a tormenta de quem tem filhas? Quem está a educar as raparigas, está a educá-las de forma empoderada, para se defenderem melhor de abusos e humilhações ou para não humilharem colegas?

A violência é uma herança social e genética?

A culpa é da escola que se demite de intervir de forma eficaz no ‘bullying’ ou de educar para a igualdade de género, diversidade e inclusão?

A culpa é da sociedade que perpetua, geração após geração, valores machistas, misóginos, homofóbicos, de pais para filhos e netos? Não há uma só resposta para uma ferida tão complexa.

Mas depois destes quatro episódios passamos a ter de enfrentar os monstros em nós, nos nossos filhos, e nos filhos dos outros. Não é por fecharmos os olhos que eles deixam de existir.

CONVERSEI EM PODCAST COM …RITA BLANCO

Bastidor da gravação do podcast "A Beleza das Pequenas Coisas" com Rita Blanco
Matilde Fieschi

É uma das atrizes portuguesas mais aplaudidas e premiadas. Rita Blanco já foi muitas mulheres na televisão, no teatro e no cinema.

Só no grande ecrã já entrou em 59 filmes, muitos deles com a assinatura do realizador João Canijo, com quem prepara novo filme e nova peça de teatro, com uma história que se entrecruza.

A atriz revela que a terapia recente a ajudou a arrumar o passado e a aceitar-se melhor a si e aos outros e conta como as filmagens do díptico “Mal Viver/Viver Mal” foram “muito duras”, que a deixaram zangada, mas que a levaram a superar-se como nunca antes.

No futuro, Rita Blanco deseja estrear-se na realização, fazer teatro para crianças e ter um grande terreno para resgatar mais animais.

Ouçam-na aqui.

OUVI E GOSTEI

“Um Gelado Antes do Fim do Mundo”, Capicua

Capicua
André Tentugal

Não deixem de sorver com atenção e gosto o novo álbum da Capicua, “Um Gelado Antes do Fim do Mundo”.

Há faixas com sabores variados e inclui até uma versão surpreendente de “Estrela da Tarde”, de Ary dos Santos, numa deliciosa forma de rap.

Mas é, acima de tudo, um disco comprometido, valente e corajoso, que coloca as botas na lama dos males destes tempos, que é crítico e nada manso para com o sistema que oprime mulheres e tantas outras comunidades, mas que celebra a vida e aponta para caminhos de esperança.

Capicua é a grande herdeira de Sérgio Godinho e Zeca Afonso. Recordo a brilhante versão “Que força é essa amiga”, a partir do original de Godinho, um hino feminista que ficará na história da música portuguesa.

Brava Capicua!

A newsletter “A Beleza das Pequenas Coisas” termina por hoje. Se quiser dar-me o seu feedback, partilhar ideias, sugestões culturais e temas para tratar, envie-me um email para oemaildobernardomendonca@gmail.com.

E deixo a minha página de Instagram: @bernardo_mendonca para seguir o que ando a fazer.

É tudo por agora. Temos encontro marcado no próximo sábado. Bom fim de semana, boas escutas e boas leituras!

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: oemaildobernardomendonca@gmail.com

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