“Não é normal.” Com esta narrativa trumpista, e com base em argumentos preconceituosos, desconhecedores e falsos, a direita portuguesa acaba de votar ao silêncio, à invisibilização e à desproteção as crianças e jovens trans que frequentam atualmente as escolas em Portugal.
A história das amarras
A estratégia de criar um pânico moral começou em outubro do ano passado, no encerramento do 42.º Congresso do Partido Social Democrata (PSD), em Braga, quando o líder do PSD e atual primeiro-ministro Luís Montenegro falou no objetivo de libertar a disciplina de Cidadania e Desenvolvimento “das amarras de projetos ideológicos ou de facção”.
Esta onda alarmista regressou há duas semanas com a aprovação de alterações à disciplina, mas a vaga aumentou em fúria e em força esta sexta-feira com os votos de toda a direita parlamentar a exigir afundar uma das medidas mais emblemáticas sobre inclusão da anterior legislatura.
Recorde-se que a orientação do Governo de Costa visava garantir o direito das crianças e jovens à sua autodeterminação da identidade e expressão de género.
A direita a não ser inclusiva
E agora toda a direita (PSD, CDS-PP, IL e Chega) deu o braço a querer forçar o Ministério da Educação a retirar de cena o guia “O Direito a Ser nas Escolas”.
Para todos estes partidos, são más e perigosas as orientações que visam combater a discriminação e a violência de género nas escolas e consideram uma ameaça a garantia de maior segurança, respeito e conforto a estudantes transgénero. Isto é normal?
Certo é que não será com a retirada do guia sobre educação para a igualdade e diversidade que se diminuirá a violência de género e no namoro, ou que se apagarão as crianças e jovens trans das escolas, do país, do mapa.
Porque elas existem. Mesmo que a ideologia da direita preferisse que não.
Felizmente algumas destas crianças e jovens trans têm a sorte de serem aceites e amadas pelas famílias, amigos, professores e colegas.
Mas muitas outras não. Conheci eu próprio jovens desta comunidade expulsas de forma violenta de casa dos pais, a residirem em casas de abrigo, como na Casa Qui. Outras poderão ir parar à rua.
Esta votação foi mais uma machadada na inclusão destes menores na sociedade.
Nenhum país democrático, decente e de bem, pode deixar de respeitar os direitos e liberdades das crianças ou jovens para serem quem são. Ou permitir que algumas passem a estar numa situação de muito maior vulnerabilidade e discriminação.
Mais bullying a jovens trans?
Todos os estudos apontam que as crianças e jovens trans são o alvo preferencial de bullying, humilhação e insulto nas escolas , assim como de maus tratos e violência na família.
E, por tudo isto, são o grupo mais suscetível de tentar o suicídio, por não aguentarem a pressão e ódio dos pares e o estigma e a discriminação da família.
Como podem ouvir aqui, no podcast “Que voz é esta”, do Expresso, estudantes trans têm uma probabilidade sete vezes maior de atentar contra a vida do que outros jovens.
E só há uma razão para isto: a transfobia que persiste nas escolas (por parte de alunos, professores e auxiliares), assim como na família, nas instituições, no parlamento, na sociedade.
Tudo isto contraria a ideia preguiçosa que atribui a existência desta comunidade no espaço escolar a uma moda, por contágio social.
Bastam dois segundos para percebermos que numa idade em que as crianças e jovens querem, acima de tudo, pertencer e ser aceites não é apelativo ser-se identificado como fazendo parte da comunidade mais maltratada, achincalhada e odiada da sigla LGBTQIA+.
A não ser quando a sua identidade de género fale mais alto.
Onde pára a empatia?
E, mesmo assim, muitos são os armários e silêncios até idades muito tardias (por vezes uma vida inteira), numa sociedade que não aceita a diversidade.
Isto não cria empatia nas forças políticas à direita? Acham que as crianças e jovens trans só existem nas famílias de esquerda?
Estas novas medidas vêm abrir mais espaço à violência e transfobia para as crianças e jovens LGBTQIA+ que não correspondem ao modelo e padrão considerado “normal” pela direita.
Isto em vez de contribuírem para uma sociedade mais democrática, livre, informada, humana e inclusiva, que permite que as crianças e jovens possam crescer de forma segura sem medo de serem quem são. Com amor, respeito e proteção.
O que diz a ministra da Juventude?
O que tem a dizer a Ministra da Juventude e da Modernização, Margarida Balseiro Lopes, sobre esta matéria?
Como joga isto com a estratégia anunciada pelo Governo para criar um grupo de trabalho que visa combater o flagelo do 'bullying' nas escolas?
A ideia é proteger apenas uma parte das crianças e jovens vítimas de bullying ou todas? Em que ficamos?
A história de uma menina trans
Termino a recordar a história da pequena Maria, atualmente com 11 anos, que cheguei a conhecer em tempos, numa reportagem que assinei e que podem ler aqui.
Um caso de sucesso e superação que, com o acompanhamento de técnicos, psicólogos e dos pais, resgatou uma criança trans da tristeza profunda.
Basta referir que no dia em que a professora passou a chamar Maria à criança (a quem fora atribuído o género masculino à nascença), todos os colegas a aplaudiram na sala de aula.
Maria nunca mais esqueceu esse dia: “Senti-me bem. E digo às outras meninas e meninos como eu que não desistam.”, contou-me na altura.
São crianças como a Maria, que poderão sofrer na pele esta medida que pretende negar-lhes a existência nas escolas.
São elas que sofrerão o impacto da retirada destes guias. Com que direito?
O testemunho de uma mãe
Foi em lágrimas, com um nó na garganta, que Cristina, a mãe de Maria, me voltou a falar agora, com receio do que vem aí para a filha e para outras crianças como ela.
Enviou-me um curto texto, cru, emotivo, a quente. Partilho-o para dar voz aos pais e mães destas crianças:
“Sou mulher. Sou mãe de duas meninas excecionais. Tenho a sorte de ser mãe delas. E tenho a sorte de ser mãe de uma menina trans.
Sou mãe de uma menina que nasceu com um pénis. Sou mãe de uma menina corajosa, que com apenas 3 anos nos disse que era uma menina.
Sou mãe de uma menina que me ensinou a ser mais mulher e mais mãe.
Sentia-me feliz por viver num país em que as escolas permitiam que as crianças fossem crianças.
Que escolhessem com o que brincar, que roupa usar e que as ensinassem a ser boas pessoas, independentemente do género, de serem meninos ou meninas.
Ser menino ou menina é uma divisão da sociedade em caixas. Se tem pénis vai para a caixa azul e se tem vagina vai para a caixa rosa.
Ser pessoa vai muito para além disso. E como eu sempre soube que era uma menina, a minha filha com 3 anos também soube que era uma menina.
A escola aceitou. A escola permitiu que a minha filha fosse a menina que é. E agora vão tirar-lhe isso? A minha filha tem direito a ser uma pessoa. A minha filha tem direito a ser uma menina.
Esta orientação devia ser lida por todos. É uma orientação para professores, pais e auxiliares ajudarem a criança a ser a criança que é. Estão a pôr em causa o direito de autodeterminação.
Estão a pôr em causa o trabalho de médicos, professores, auxiliares, pais e mães.
Nenhuma outra criança (cisgénero) perde o direito à autodeterminação. Por que razão uma criança trans perde o direito a ser quem é?
Vamos colocar o futuro nas mãos de seres insensíveis que não sabem o que é o direito da autodeterminação? Que não imaginam sequer a provação que é nascer-se com um pénis e um cérebro de mulher?
Vamos deixar as nossas crianças à mercê da misericórdia dos diretores de agrupamento?
Vamos permitir que crianças e jovens trans deixem de ser crianças e jovens? Vamos voltar a colocar as nossas crianças em caixas (armários) até à maioridade, fingindo ser quem não são?
Cristina, mãe orgulhosa de uma menina corajosa e que, entre outras coisas, é trans.”
CONVERSEI EM PODCAST COM…TIAGO PEREIRA
O realizador Tiago Pereira anda há 14 anos a palmilhar o país de norte a sul para gravar o cancioneiro nacional que os mais velhos não esqueceram e as suas histórias e ofícios.
Desde que começou na odisseia do projeto “A Música Portuguesa a Gostar Dela Própria”, primeiro em co-autoria, depois a solo, já gravou 8100 vídeos.
A newsletter “A Beleza das Pequenas Coisas” termina por hoje. Se quiser dar-me o seu feedback, partilhar ideias, sugestões culturais e temas para tratar, envie-me um email para oemaildobernardomendonca@gmail.com.
E deixo a minha página de Instagram: @bernardo_mendonca para seguir o que ando a fazer.
É tudo por agora. Temos encontro marcado no próximo sábado. Bom fim de semana, boas escutas e boas leituras!
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