Na manhã desta sexta, quando me dirigi à cozinha para preparar o habitual café, assustei-me com o vulto de um homem encostado do lado de fora da janela.
Era um sujeito louro, em posição de morcego ou Batman, a dormir junto à vidraça da minha marquise. Como vivo num terceiro andar alto, a imagem além de insólita, era deveras perturbadora. Poderia ser o início de um filme de Woody Allen. Mas não. Era só o início do meu dia.
Será que aquele homem pode cair? Estará seguro? Desmaiou? Será que se apercebeu tarde demais que tem medo das alturas e deu-lhe um ‘treco’? Será que está a arriscar a vida com uma soneca marota? Será narcolepsia? Será chuva?
Gente é certamente, mas pelo que sei os muros não se arranjam assim. Fui ver. Mexeu-se. Voltou à tarefa.
Para logo depois voltar a adormecer numa posição meio Matrix, largado para trás, preso por um fio, de barriga para cima, em suspenso, a muitos metros do chão, de olhos bem fechados.
Se estivesse de olhos abertos, daquela perspetiva veria que ando a comer duas tostas pela manhã e que, desta vez, até lhe coloquei um ovo.
Estaria aquele tipo a sonhar com o quê? Que era o Super Homem? Decidi confiar na qualidade do arnês e na perícia do senhor que estava ali para consertar a parede do prédio vizinho descascado pelo tempo.
E, mais tarde, vim a perceber que ele era um imigrante de um país do Leste da Europa, quando proferiu umas palavras para um colega. Depois, colocou um tijolo sobre o assunto, digo, sobre a tal parede descarnada, até descer tranquilamente para solo seguro.
A vida deste trabalhador deverá ser dura e o cansaço uma vertigem a surgir nas alturas. Espero que a sua segurança não tenha estado em causa por causa disso.
A verdade é que, horas depois, a parede estava reparada com tijolos novos. E talvez aquele ‘cochilar’, ou ‘power nap’, tenha sido também reparador para este profissional da construção civil.
E já que desta vez o tema da newsletter caiu assim dos céus, e veio parar à janela da minha marquise, não aos trambolhões, mas num repouso profundo, embalado pelo ronco da minha máquina de lavar roupa e dos aviões (vivo no centro da cidade, na rota deles), decidi dedicar as próximas linhas à importância do sono. E ao problema da falta ou má qualidade dele.
Trago para aqui a entrevista feita em tempos à especialista do sono, a neurologista Teresa Paiva sobre o que nos anda a perturbar nesse universo.
De acordo com esta especialista, as razões para noites em claro podem ser múltiplas: má alimentação, má atividade física, fraca exposição à luz solar e à luz ambiente, má organização do trabalho, maus hábitos de sono, deixar-se roubar pelos ladrões do sono, muitas preocupações, traumas e violências.
Noutra entrevista, feita ao investigador Aric Prather, da Universidade da Califórnia, em São Francisco, nos EUA, o tema é abordado com outras camadas interessantes. Para Prather, o sono deveria ser encarado como um direito humano. E, como qualquer outro direito humano, as noites mal dormidas refletem desigualdades sociais, económicas, culturais e étnicas.
Ao reler esta matéria, pensei novamente no trabalhador que serviu de arranque para esta newsletter e sobre as razões daquele insólito repouso ou cansaço. O privilégio de dormir bem não está de facto ao alcance de toda a gente.
Aric, que é um psicólogo que trata a insónia com terapia cognitivo-comportamental, garante que uma comunidade não pode funcionar quando os indivíduos não dormem bem.
E desfaz um mito ou frase tantas vezes ouvida por quem se gaba de ficar bem com 4 ou 5 horas dormidas. “Há pessoas que dizem que precisam de poucas horas de sono, mas isso é mentira. Dormir mal é um fator de risco para morrer mais cedo.”
Há poucos dados nacionais, mas os que já existem dizem que Portugal é um país cansado. Dormimos pouco e mal, e consumimos muitos medicamentos para combater as noites em claro, ainda que as insónias possam — e devam — ser resolvidas de outra forma.
Também o especialista em sono Joaquim Moita, declarou numa matéria da Fundação Francisco Manuel dos Santos que os portugueses não descansam bem, prejudicando a sua saúde física e mental. E deixa a crítica: “A sociedade portuguesa está organizada para que se durma pouco.”
Vale a pena também verem com atenção o brilhante trabalho multimédia assinado por Helena Bento, intitulado “Ou durmo ou morro” que retrata a história de 4 pessoas que têm muita dificuldade em adormecer, que “sentem o cérebro aos atropelos e desejam ‘ter um botão para desligá-lo.”
Estes são 4. Mas há cerca de um milhão de pessoas em Portugal a sofrer do mesmo problema.
Volto ao Aric Prather, na tal entrevista ao Expresso, que deu ainda conta como o mau ou bom dormir interfere na nossa personalidade e conduta pessoal, profissional e social.
“Quando as pessoas dormem o que precisam, são pais melhores, melhores parceiros, mais criativos, mais capazes de fazer as coisas que desejam para as suas vidas, mais resilientes para lidar com o stress”, afirmou.
Em oposição, Aric esclarece que há muitos efeitos negativos decorrentes dos maus hábitos que perturbam o descanso.
“A gentileza é uma espécie de compromisso, e é difícil cumpri-lo quando não se dorme o suficiente. Podemos suportar pouco sono, mas é como se isso tivesse um prazo. Não conseguir obter o que é preciso dia após dia tem um custo.”
Sobre a falta de gentileza e, mais do que isso, falta de empatia e humanidade por tantos grupos sociais, ocorreu-me a pergunta: André Ventura e a sua turma andam a dormir mal? O seu mal é sono?
Certamente que o seu mal é outro, é viver da mentira e do ódio que se espalha nas redes como erva daninha, com desinformação e vídeos manipulados.
E sobre isso, não deixem de ler a crónica de Vítor Matos que aqui conta como o imigrante Iqbal e a mulher ficaram fechados em casa, aterrorizados com as mensagens de ódio que receberam no telemóvel e e-mail, e chegaram mesmo a considerar regressar à Indonésia - país de origem da mulher - depois da exposição mediática de Iqbal por abordar Ventura numa arruada, queixando-se da perseguição aos imigrantes.
Nesta matéria, Vítor Matos, autor do podcast do Expresso “Entre Deus e o Diabo”, disseca ainda a forma como o Chega funciona nas redes sociais.
E revela um estilo sem vergonha, sem lei, sem moral, num “franchising internacional da direita populista”, na linha de Trump, que é uma boa cama para os adormecidos, revoltados e desiludidos do sistema se deitarem. Ou para aqueles que só querem ver o circo a arder. Sem perceberem que se irão queimar nele também. Uma realidade distópica favorável a insónias…
Última nota: O que também é inquietante e de tirar o sono é ver a quantidade de cronistas afastados de vários jornais de uma só assentada, pessoas com um olhar diferenciado, desalinhado do sistema e atento à diversidade, às causas sociais e às vidas comuns de tanta gente que precisa de voz e visibilidade.
Nomes como Ana Drago, Carmo Afonso, Cristina Roldão, Paula Cardoso, Bernardino Soares e António Brito Guterres deixam a partir de agora de poder ser lidos nas páginas onde assinavam. Corridos desses títulos por uma alegada reestruturação. E fazem muita falta.
O assistente social Brito Guterres, chama a este dispensa coletiva uma “purga”, pela dimensão e cronologia desta espiral de afastamento nos espaços de opinião dos media. Uma limpeza sem grande espaço para enganos.
Os tempos estão a mudar no país, na Europa e no resto do mundo. E não parecem ir para melhor. Deixo as palavras de Paula Cardoso, fundadora da Rede Afrolink, na sua última crónica:
“Se escrevo sobre racismo, não é por falta de tema, mas por causa do sistema. Num espaço mediático povoado de redacções sem diversidade nem consciência étnico-racial, onde as vidas negras são demasiadas vezes reduzidas a estereótipos e notas de rodapé, como não escrever sobre a minha identidade negra, profundamente atravessada pelo racismo?”
E junto o comentário de Brito Guterres, que tem escrito muito sobre a crise na Habitação, colonialismo, fronteiras, educação ou democracia participativa:
“Afasta-se a hipótese de falar das substâncias das vidas ou, como se disse cá em casa, dos sítios que têm pó. Acabou a política, vigorou a politiquice. Tudo para que se mantenha uma certa alienação, porque falar e escrever dos quotidianos sentidos pode ser perigoso.”
Por fim, Carmo Afonso despediu-se desta forma na sua crónica: “Não aceitem políticas feitas a partir de perceções. E aceitem um adeus”
CONVERSEI EM PODCAST COM…
É o nº 2 no top dos governantes portugueses com mais tempo em funções. Acima dele, só António Costa. Em vários Governos socialistas tutelou cinco pastas: foi ministro da Educação, da Defesa, da Cultura, dos Assuntos Parlamentares e dos Negócios Estrangeiros.
Até março deste ano foi o número 2 da hierarquia do Estado, tendo sido substituído por Aguiar-Branco. Augusto Santos Silva recusa a ideia que não foi reeleito deputado porque enfureceu o eleitorado imigrante no Brasil por fazer frente ao Chega, e dá conta que dedicará o seu estudo à nova geração de rapazes que parecem ser os novos rebeldes ultrarradicais de direita.
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É tudo por agora. Temos encontro marcado aqui no próximo sábado. Bom fim de semana, boas escutas e boas leituras!
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