A Beleza das Pequenas Coisas

Trabalhar demais, viver à pressa, morrer depressa

Tenho-me confrontado nos últimos tempos com um número maior de pessoas à minha volta em risco de esgotamento ou ‘burnout’. Num espaço de uma semana, fui duas vezes amparar uma amiga que estava com uma forte crise de ansiedade por causa do trabalho.

Numa delas, ligou-me a pedir que a fosse buscar à porta de casa. Mal se aguentava de pé. Estava sentada de mãos na cabeça, e a rua era uma vertigem.

O excesso de tarefas, a pressão do chefe tóxico, os prazos irreais, a falta de tolerância, de empatia, o terrorismo psicológico no envio de e-mails a exigir o impossível, a marcação de reuniões ‘urgentes’ em dias de folga, as férias por aprovar, foram o caldo perfeito para a ansiedade transbordar como numa panela de pressão pondo em risco a sua saúde.

Malte Mueller

Um caso assim parece tomar a forma grave de assédio moral. E importa criar uma cultura de tolerância zero para esta forma de violência nas empresas, garantindo que as chefias sejam denunciadas aos recursos humanos, e realmente investigadas, quando o fazem.

O que nem sempre acontece. E, como assinou José Soeiro, estas situações não são assim tão raras. Já que um em cada seis trabalhadores em Portugal afirma já ter sido vítima desta forma de terrorismo laboral.

Mas assédios aparte, a ideia de trabalharmos demais, e termos pouco tempo para viver, é cada vez mais banal. Mas não por isso desejável, nem normal. Recordo aqui a famosa frase do filósofo Agostinho da Silva, que contraria a ideia de que é o trabalho que dignifica o ser humano: “O Homem não nasce para trabalhar, nasce para criar, para ser o tal poeta à solta.”

A cultura em que vivemos ainda penaliza e desconfia de quem se queixa de trabalho a mais, ainda premeia quem está sempre disponível e produz fora de horas, e não há ainda uma real consciência das chefias para as consequências do stress e da pressão permanente no emprego.

E isto, apesar das notícias e dos inúmeros estudos e alertas dos especialistas para o risco do ‘burnout’, a doença laboral do século XXI em que toda a gente sai a perder.

Há um ano, a minha colega Joana Pereira Bastos noticiou que um inquérito realizado pelo Laboratório Português dos Ambientes de Trabalho Saudáveis revelava que 50,6% dos trabalhadores em Portugal estava em elevado risco de esgotamento. Ou seja, metade estava a um passo de ‘queimar o fusível’.

E indicava também que o regime de trabalho híbrido estava associado a um melhor ambiente laboral e que seria mais protetor para a saúde mental dos profissionais. Há já quem discuta a semana de trabalho de 4 dias, e o governo anterior testou isso mesmo. Para que a sexta-feira passe a ser o novo sábado.

E vários dados apontam que a produtividade e o lucro não caem, e o bem estar e a qualidade de vida dos trabalhadores aumenta. Parece-me um bom negócio. Mas ainda somos demasiado conservadores e o presentismo ainda colhe.

Sobre esta maleita laboral, podem ouvir aqui a entrevista feita no podcast “Que voz é esta” com as explicações da psicóloga Tânia Gaspar e o testemunho do advogado Nuno Castelão, que esteve oito meses de baixa por ‘burnout’.

Esta doença não é nova. Mas a consciência e a real vontade de mudança da maioria das empresas tarda a chegar.

Há décadas, numa palestra sobre “Aceleração e Depressão”, a psicanalista e poeta brasileira Maria Rita Kehl, discursou sobre o problema do tempo acelerado e do trabalho em doses cavalares:

“Eu gosto muito da profissão que escolhi, mas não quer dizer que goste de trabalhar tanto quanto trabalho. É muito diferente. Acho que essa ideologia de gostar do trabalho é um jeito de mascarar a exploração do trabalho.

Tudo bem, estamos sobre o capitalismo, e não estamos a ver no horizonte nenhuma superação possível, mas gosto de pensar que haverá. A mudança vai ter de ser uma superação dessa voracidade capitalista.

Porque essa aceleração, é a da acumulação de capital. Não temos noção disso, porque não somos nós que estamos a acumular. Mas é isso que acelera o nosso tempo, o tempo coletivo.”

A autora do livro “O Tempo e o Cão - A Atualidade das Depressões”, vencedora do “Prémio Jabuti”, livro do ano em 2010, recordou ainda uma frase de um paciente seu que resume na perfeição o estado de alma de tanta gente, sempre a correr, como se vivesse a bordo de um comboio veloz, descarrilado, com destino para lado nenhum. Ou, talvez para a morte:

‘Dá impressão que vivo assim - vamos andar depressa com isso para acabar depressa, para ir para casa depressa e dormir depressa, para acordar depressa, para começar a trabalhar depressa, para viver depressa e morrer depressa.’

A frase é irónica, mas veste-nos bem. Mas como travar esta cultura de trabalho excessivo, tão pouco saudável?

Recentemente conheci outra rapariga que estava há dois dias de pijama fechada no apartamento, na companhia do seu cão. “Estou cheia de dores no corpo. Estou esgotada. O corpo rejeita o trabalho, preciso de descansar.”

Há muitas razões para este mesmo resultado, mas a verdade é que esta exaustão crónica e relação doente com o emprego está a tornar-se numa nova pandemia na nossa sociedade, de dimensões preocupantes a atingir as mais variadas profissões e cargos. Não temos tempo para nos coçar, para estar com a família, para o lazer, para namorar, criar, sonhar, viver.

Nestes contextos de ritmo de trabalho infernal, com mensagens das chefias nas horas de descanso, o cérebro aprende a estar em constante alerta e ansiedade. E não desliga. E ‘queima’. Ou, então, as pessoas desistem silenciosamente do trabalho, mantendo-se apenas de corpo presente.

Em 2022 escrevi sobre isto mesmo, que a pandemia criou um novo despertar e um novo grito silencioso em Portugal e no mundo.

Fruto dessa mesma exaustão, há um movimento de pessoas que se recusa a trabalhar demasiadas horas, para uma vida mais saudável e equilibrada, e há quem tenha passado a fazer o mínimo no escritório, como resposta aos baixos salários, à frustração, desmotivação e relações doentias com as chefias.

Este movimento ganhou o nome de “quiet quitting”, ou demissão silenciosa, e está a levar as empresas a repensar a gestão e relação com os seus recursos humanos. Ou, pelo menos, as empresas que se preocupam em manter a equipa motivada, saudável, equilibrada. Desconfio, infelizmente, que não são assim tantas.

Um exemplo feliz

Por tudo isto, chamou-me a atenção o projeto “Corpo Infinito”, que a artista plástica Joana Vasconcelos criou em 2015 no seu ateliê.

Estive esta semana a visitar as suas instalações, para melhor preparar a entrevista em podcast que lhe fiz. Um espaço enorme nos antigos armazéns do porto de Lisboa, nas Docas de Alcântara, onde trabalham cerca de 60 funcionários, de várias nacionalidades e áreas, da produção, aos bordados, costura, serralharia e eletricidade até à arquitetura.

Nessa manhã, cruzei-me com Mohamed, um refugiado sírio, costureiro de profissão, que estava concentrado a ornamentar uma Valquíria. A história de vida dele, e a sua dificuldade em arranjar trabalho quando chegou a Portugal, é referida na conversa que gravei com a Joana.

Mohamed, costureiro e refugiado sírio, a trabalhar numa Valquíria de Joana Vasconcelos

E, além das monumentais peças que estão por todo o lado a serem trabalhadas pelas várias equipas, fiquei fascinado com o que se passava no último andar, destinado exclusivamente ao bem estar da Joana e de todas as pessoas que trabalham consigo.

Nesse lugar, composto por várias salas, que tem o nome de “Corpo Infinito”, Joana disponibiliza gratuitamente para a equipa, serviços de massagem, terapias holísticas, aulas de meditação e yoga diários, e até astrologia.

Aula de Yoga no espaço "Corpo Infinito", no último andar do Ateliê de Joana Vasconcelos

A artista sabe bem que a energia e a saúde física e mental é finita e não deve estar só dedicada à produção, e percebeu que com estes e outros cuidados, a sua equipa passou a estar mais equilibrada e motivada, prevenindo baixas médicas, abandonos e despedimentos súbitos, aumentando a produtividade e a boa energia no trabalho.

Sala de terapia e massagem do "Corpo Infinito", no Ateliê de Joana Vasconcelos

CEOS e chefias deste país, ponham os olhos neste exemplo…

CONVERSEI EM PODCAST COM… JOANA VASCONCELOS

Gravação do podcast "A Beleza das Pequenas Coisas" com Bernardo Mendonça e Joana Vasconcelos
Matilde Fieschi

Joana Vasconcelos é uma das mais internacionais artistas portuguesas. Durante anos foi conhecida como “a artista do tampão” por causa da obra “A Noiva”, um candelabro feito com 14 mil tampões com que se estreou na Bienal de Veneza, em 2005.

Com um percurso de mais de 30 anos, Joana Vasconcelos é reconhecida pelas suas esculturas monumentais e instalações imersivas que andam por todo o mundo. Em 2012 tornou-se a primeira mulher com uma exposição individual no Palácio de Versalhes, em França. Mas não teve autorização para incluir a peça fulcral da sua obra. “Não é possível tampões em Versailhes”, foi-lhe dito.

Desde setembro que a sua nova exposição “Plug-In”, no MAAT, em Lisboa, já recebeu para cima de 260 mil pessoas, tornando-se a mais visitada da história deste museu. Dia 6 de abril celebra-se este feito com uma ‘finissage’, ao longo de 12 horas de atividades.

Um dos seus maiores desejos é um dia poder abrir as portas do AMA, um misto de museu e atelier, em Lisboa, para quem quiser visitar o seu lugar de criação. Ouçam-na aqui no podcast “A Beleza das Pequenas Coisas”

UM GRANDE APLAUSO PARA…

Jornal digital “Setenta e Quatro”

Quase três anos depois do seu lançamento a 13 de julho de 2021, o projeto de jornalismo de investigação “Setenta e Quatro” chegou infelizmente ao fim por razões exclusivamente financeiras.

Em plena pandemia, um grupo de bravos jornalistas independentes ousaram desafiar a crise e fundar um jornal de investigação, com vontade de fazer bem e de forma diferente, com mais tempo e liberdade.

Foram muitas as reportagens de qualidade assinadas pelo ‘Setenta a Quatro’, como o “Polícias Sem Lei: o ódio de 591 agentes da autoridade”, assinado por Filipe Teles e Pedro Coelho, ou o “Paredes Frágeis em Lugares de Dor: A violência sexual em hospitais e consultórios”, por Ana Patrícia Silva.

Mas a teimosia, o espírito de combate e amor ao jornalismo não bastaram. E por ironia, no ano em que se celebram os 50 anos da democracia, acaba o ‘Setenta e Quatro’. Ficamos todos a perder. Não tinha de ser assim.

E na despedida, a equipa do ‘Setenta e Quatro’ deixou uma mensagem: “Está na hora de debatermos finalmente o financiamento público do jornalismo, um financiamento que seja direto, estrutural, transparente e independente dos poderes político e económico.”

O QUE ANDO A LER

“Paradise”, de Fernanda Melchior ed. Elsinore

Comecei a lê-lo e conto não mais parar. O livro foi nomeado para o “International Booker Prize” e é finalista do “International Dublin Literary Award” e do “Los Angeles Times Book Prize for Fiction”. Descrito pela crítica como uma descida ao inferno, Paradaise (assim mesmo escrito, a nomear um condomínio de luxo no México), é a mais recente obra da autora de “Temporada dos Furacões.

Um romance que agarra logo na primeira página, sobre uma sociedade em conflito, fraturada pela raça, classe e pela misoginia, à mercê da banalidade da violência e da complexidade do mal.

BELEZAS, se quiserem dar-me o vosso feedback, deixar comentários, convites, sugestões culturais, lançamentos, ideias e temas para tratar enviem-me um email para oemaildobernardomendonca@gmail.com

E aqui deixo a minha página de Instagram:@bernardo_mendonca para seguirem o que ando a fazer.

É tudo por agora. Temos encontro marcado aqui no próximo sábado. Bom fim de semana, boas escutas e boas leituras!

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: oemaildobernardomendonca@gmail.com

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