Há quem diga que os jornais perderam a relevância, a memória, a pertinência. Será? Ou seremos nós que não queremos lhes ver a importância? O professor brasileiro de Jornalismo Eduardo Meditsch definiu a profissão como uma forma de conhecimento e foi buscar o conceito de "fazer História à queima roupa”, um raciocínio que nos será útil mais adiante.
Em 2009, o saudoso Comendador Marques de Correia falava no Expresso sobre o air du temps. Muito me tenho recordado deste conceito, que decorre da expressão da filosofia alemã de “Zeitgeist”. Daí a escolha da imagem que abre esta newsletter, “O Caminhante Sobre o Mar de Nevoeiro” (1818), de Caspar David Friedrich.
Instado a explicar do que se tratava, o Comendador invocou um exemplo que parece-me em tudo atual. Passo a citá-lo: “Se um político vence umas eleições, por exemplo, umas europeias - sendo que três meses depois tem umas legislativas -, é natural que fique inchado. Eu mesmo já aqui sublinhei essa notável lei da Física que permite a um homem ou mulher inchar, não em função do que já tem, mas sim daquilo que espera ter.” Excluídos os fatores conjunturais, penso nas Legislativas que passaram, nas próximas Autárquicas e, mais imediatamente, no Debate do Estado da Nação, desta quarta-feira.
Mais adiante, o sábio completa a constatação - “O ar do tempo, meus amigos, é isto. Que se pode fazer? Como podem os políticos contrariá-lo? É impossível! O ar do tempo é inelutável e sempre injusto, independentemente de que sítio sopra.” Nós podemos assobiar para o lado, o que também provoca deslocação de ar, podemos fingir que não reparámos, mas é irrecusável que o vento virou de direção. A questão é se virou de tal forma que será suficiente para “inchar”.
E, mais importante, assevera Marques de Correia: “Nós, que estamos no meio, tanto apanhamos do que vem da direita como do que vem da esquerda. É que não se pode parar o vento com as mãos…” Pois não, mas podemos ter consciência das direções da ventania para melhor nos protegermos dos seus efeitos.
Esta tarde, o Parlamento irá ouvir o primeiro-ministro a falar do Estado da Nação, veremos se irá com óculos cor-de-rosa ou cor de laranja, como disse André Ventura sobre o otimismo de Luís Montenegro no que toca à Saúde. Também veremos o comportamento do socialistas sob a liderança de José Luís Carneiro. E veremos mais, a atitude do Chega como maior partido fora do governo e da fragmentada oposição de esquerda. Mas, para lá do que será visto, há o papel do observador, que não tem de ser passivo, mas, sim, interventivo, na sua capacidade de compreensão e interpretação. E volto ao início desta conversa e ao papel do jornalismo.
Como o ar do tempo, que muda ciclicamente, também se diz que “a bruxa tem muitos humores”, tantos quanto as faces da Lua, como defendeu Kristen J. Sollee em “Witches, Sluts, Feminists”. A tese da autora, a quem fui buscar o título desta newsletter, é, de forma simples, que as mulheres da geração millenial (nascidas entre 1982 e 1996) estarão a encontrar nestas figuras controversas o vocabulário para uma nova forma de intervenção feminina, visível na arte, na tecnologia e até na política. E então?
Então, ele há coisas que nos surpreendem, se não estivermos atentos ao ar do tempo e aos humores das bruxas, como a notícia de que enquanto se arrastavam as negociações para um aparentemente utópico cessar fogo na guerra em Gaza, seis crianças palestinianas que iam buscar água foram mortas por um ataque aéreo israelita. Um ataque que foi definido pelo Exército de Israel como “um erro técnico". Passou na opinião pública, e mais, na opinião dos decisores políticos internacionais, como apenas mais um episódio de uma tragédia de dimensão bíblica e cujo relato está interdito aos jornalistas ocidentais.
Estranho? Talvez não, tendo em conta o ar do tempo. Estranha é a indiferença, seja em que tempo for. Estranha é, sobretudo, a irrelevância a que podemos votar aquilo de que temos conhecimento. E o jornalismo? Neste caso, até noticiou. E nós, o que fizemos?
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Fechada A coligação de esquerda que vai apoiar a candidatura liderada pela liderada pela ex-ministra e ex-líder parlamentar socialista, Alexandra Leitão. De fora, apenas o PCP. A apresentação será feita esta sexta-feira.
Apresentada A candidatura de Carlos Moedas, com o apoio do PSD, do CDS e da IL, à Câmara Municipal da capital, num evento que misturou políticos com figuras da cultura popular e sob o mote de “Lisboa precisa de moderados” e com a notícia da criação de um plano de segurança para a cidade, articulado com o governo.
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(Des)Protegidos Depois de dezenas de denúncias, a Comissão de Proteção de Dados avançou com um processo sobre o Chega na sequência da divulgação dos nomes de alunos menores para apurar se houve violação da legislação de proteção de dados pessoais.
Reconhecido O Tribunal Cível de Cascais reconheceu o diagnóstico de demência do ex-presidente do BES e decretou o estatuto de maior acompanhado para Ricardo Salgado. Os bens e a vida do arguido em vários processos e condenado a penas de prisão efetiva no processo EDP e num caso que sobrou da Operação Marquês passam a ser geridos pela mulher, Maria João Bastos Salgado.
Indesejados Quase um terço dos jovens europeus não querem ter filhos, de acordo com um estudo europeu que envolveu mais de 30.000 jovens em 12 países. A insegurança económica e as prioridades pessoais foram apontadas como as causas deste desinteresse. E 70% defendem que o acesso à preservação da fertilidade daria maior liberdade de escolha.
Chumbados A divulgação das notas do 9º ano começou a meio da tarde de ontem, mas não ocorreu na data prevista e o Ministério da Educação, Ciência e Inovação (MECI) invocou “dificuldades técnicas” para justificar o atraso. Os problemas foram maiores em 15 escolas, onde os encarregados de educação foram contatados pelo Júri Nacional de Exames para decidirem validar “prova realizada, sem conhecimento da classificação”, ou “anular a prova da 1ª fase e realizar a prova na 2ª fase como se da primeira fase se tratasse”. Analisadas, percebeu-se que metade dos alunos do 9º ano tiveram negativa no Exame de Matemática.
Desaditivados O consumo de álcool, tabaco e substâncias ilícitas entre jovens de 18 anos diminuiu em 2024, segundo o Instituto para os Comportamentos Aditivos e as Dependências, após um inquérito realizado com jovens no Dia da Defesa Nacional. Mas mantêm-se as queixas de mal-estar emocional e as preocupações com relações sexuais sem protecção.
Inacabado O Ministério Público não conseguiu cumprir a vontade do procurador-geral da República e a Averiguação Preventiva à empresa familiar do primeiro-ministro não está concluída. Nem há uma data previsível para acabar.
Investigadas Após a denúncia de Helena Roseta, autora da Lei de Bases da Habitação, que o Ministério Público decidiu abrir um inquérito às demolições ocorridas no bairro do Talude Militar. Ricardo Leão, o socialista que é presidente da Câmara de Loures, fez um vídeo a dizer que não vai recuar nas demolições e que a situação exige ação do Governo.
Encarecido O preço da habitação volta a acelerar no primeiro trimestre com aumentos em todas as regiões do país: mais 18,7% do que no mesmo período de 2024, segundo o Instituto Nacional de Estatística (INE).
Ouvido O diretor da RTP, António José Teixeira, foi esta quarta-feira à Assembleia da República. Disse aos deputados já ter sido ouvido pela Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) devido à sua exoneração e afirmar que a decisão do Conselho de Administração é legítima porque os "mandatos não são eternos”. O PS não ficou esclarecido e vai chamar o presidente do Conselho de Administração, Nicolau Santos.
Adiado Depois dos ataques israelitas na Síria, inclusive ao Ministério da Defesa em Damasco, a audiência do primeiro-ministro israelita no âmbito do julgamento de Benjamin Netanyahu por corrupção foi adiada. Nada nem ninguém parece interessado em parar a inexorável marcha da morte no Médio Oriente.
Frases
“Com o resultado eleitoral, Montenegro percebeu que o Chega nunca será punido. E o ‘não é não’ morreu”, Daniel Oliveira, colunista do Expresso.
“Ao contrário do que às vezes parece, eu sou muito cooperante com a comunicação social”, Luis Montenegro, em Évora, depois que o microfone falhou e Montenegro teve de fazer uma ligeira pausa, no discurso sobre a atuação do governo.
"Nós precisamos todos de fazer um esforço, todos, sem exceção, à direita, à esquerda, para sermos uma sociedade tolerante.”, Luís Marques Mendes, referindo-se aos debates e discussões sobre imigração.
Os nossos podcasts
Completar e preencher experiências é o tema da conversa no “Futuro do Futuro” sobre a apresentação de uma aplicação, com recurso a inteligência artificial, que descreve os ambientes que rodeiam o utilizador e que tenta substituir a visão. E que inclui ainda a audio-descrição dos concertos de música.
Em “O CEO é o limite”, o presidente executivo da da Riberalves sinaliza a importância da consciência social: “A empresa não é nossa, estamos a geri-la. Tem donos, mas tem sobretudo 500 famílias que dependem de nós”.
No “Antes Pelo Contrário” em podcast, Daniel Oliveira e José Eduardo Martins, debatem a estratégia de Luís Montenegro para a defesa, a continuidade ou não da garantia do líder do PSD do "não é não" ao Chega, e as demolições nos concelhos de Loures e Amadora.
O que eu ando a ler
Mais um artigo marcante da “New Yorker”. A história, como todas as que interessam, toca-nos de tão próxima. Lida num país como Portugal, marcado pela imensa ausência de médicos de família, e relatando o caso de um profissional de saúde num país onde o acesso àmesma é tudo menos fácil, a história de dedicação de Greg Gulbransen, um pediatra de Long Island, faz-nos pensar. E sentir. Sobretudo num dia em que a Saúde deverá ser debatida na Assembleia da República. Uma história sobre um assunto em que não há lentes de qualquer cor que consigam esbater as dores ali refletidas.
De forma muito resumida - incentivo-vos a todos a irem ler este artigo de Joshua Rothman -, relata-nos a história de Greg, que, procurou uma forma de se salvar, salvando aqueles de quem trata. Depois de uma situação inominável - acidentalmente há 23 anos matou o filho quase bebé ao fazer marcha atrás com o automóvel numa noite da qual nunca sairá -, o médico votou à vida ao ajudar os outros. E assim, a ajudar-se a ele próprio. Nas palavras de Rothman, tornou-se para muitas pessoas, “parte médico, parte assistente social, parte figura paterna, parte amigo”.
O texto, longo e convidativo, relata todos os que são ajudados por Greg Gulbransen, sem fugir, em nenhum detalhe, à tragédia, que não o definindo, o tatuou de forma visível. Também o jornalista, construtor da “história à queima-roupa”, posiciona-se, assume um ponto de vista. “Pessoas boas costumam ser um enigma para aqueles que gostariam de ser melhores. Tentamos entender o que fazem, como e porquê. Muitas baseiam a sua bondade em princípios, na fé ou nalguma visão de como o mundo deveria ser, e às vezes suspeitamos que, se pudéssemos adotar um de seus sistemas, também poderíamos fazer o bem. Mas a bondade de Gulbransen não fazia parte de nenhum sistema; era pessoal, até mesmo arbitrária.”
Quando temos de lidar com um ar do tempo gelado, mesmo que em pleno verão tórrido, sabe bem ler um texto caloroso. Sem pudor de falar da felicidade que pode nascer da mais profunda tristeza. E é tão bonita a despedida do texto: “Abrace as crianças.” E aí, penso nas de Gaza, porque também isso - fazer pensar - é fazer História. E é fazer jornalismo.
Amanhã, será dia de Expresso nas bancas, e teremos histórias de Saúde para contar. Teremos também o relato e a interpretação do Debate da Nação. E teremos muito mais. Mas será preciso ler. No papel e aqui. Porque não basta observar, é preciso conhecer para poder intervir. Bom dia e boas leituras.
Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: CAMartins@expresso.impresa.pt