Um dia, há muitos anos, um aluno perguntou à antropóloga Margaret Mead qual era, para ela, o primeiro vestígio de civilização humana. A antropóloga americana, autora de “Adolescência, sexo e cultura em Samoa”, respondeu: “Um fémur com 15 mil anos encontrado numa escavação arqueológica.”
O aluno esperava que a professora falasse de anzóis, ferramentas ou barro cozido, mas Mead continuou: “O fémur estava partido, mas tinha cicatrizado. É um dos maiores ossos do corpo humano (liga a anca ao joelho) e demora seis semanas a curar. Alguém tinha cuidado daquela pessoa. Abrigou-a e alimentou-a. Protegeu-a, ao invés de a abandonar à sua sorte”.
Na natureza, qualquer animal que parta uma perna está condenado. Se for um predador, não consegue caçar; se for uma presa, não consegue fugir. Está morto. Então, concluía Mead, que lutou pelos direitos das mulheres nos anos 50 e 60 e foi galardoada com a medalha da liberdade, o que nos distingue enquanto civilização é a empatia, a capacidade de nos preocuparmos com os outros.
Mead nunca enfrentou uma pandemia, mas fez a sua parte na II Guerra Mundial onde terá visto o pior e o melhor dos homens. Esta história, contada por um colunista da revista americana Forbes comovido com uma vizinha dos pais idosos e isolados pela covid que se disponibilizou para os ajudar no que fosse preciso, trouxe-me à cabeça uma imagem óbvia: partimos o fémur e vamos precisar de tomar conta uns dos outros. Durante bem mais de seis semanas. E cada um tem de fazer a sua parte. Para a maioria isso implica não fazer nada e ficar em casa.
Hoje, duas semanas depois de ter sido declarado o estado de emergência em Portugal – a primeira vez desde o 25 de abril – o Presidente da República vai decidir se o prologa durante mais 15 dias, até 17 de abril. Este “se” é retórico. É óbvio que vai, como deu a entender nas declarações que fez ontem depois de uma reunião com especialistas em saúde pública que foram unânimes sobre a necessidade da renovação das medidas de confinamento. "Impõem-se", frisou Marcelo, que puxou dos galões por ter decretado este estado de exceção mesmo contra a aparente falta de vontade do Governo e do primeiro-ministro António Costa, que via a medida como paralisadora da “vida” e da economia.
A decisão só será "revelada" amanhã, depois de o Presidente ouvir o Governo - que vai definir os termos exatos do confinamento - e da aprovação da Assembleia da República: Mas a única dúvida é saber se as medidas de contenção vão apertar ou se se mantêm na mesma.
Apesar de no mês que hoje começa se prever um continuo aumento do número de infetados e de mortos (a curva só vai começar a descer no final de maio, previsivelmente) o aparente sucesso das medidas tomadas durante o estado de emergência, pode levar a que o Governo se decida pela reabertura das escolas numa data próxima de 4 de maio. Seria o primeiro sinal de que o osso está a sarar.
A grande prova vai ter lugar na páscoa, que este ano se celebra a 12 de abril. O vírus não viaja sozinho e vamos mesmo ter de resistir a juntar a família e comer ovos de chocolate sozinhos. Para não ficarmos coxos.
OUTRAS NOTÍCIAS
Os três inspetores do SEF suspeitos de matarem à pancada um homem ucraniano no aeroporto de Lisboa mantiveram-se em silêncio durante o interrogatório judicial. Ficaram em prisão domiciliária, em parte porque a juíza quis evitar riscos de contágio de covid 19 nas cadeias. De acordo com o Expresso, Igor, a vítima, veio para Portugal com visto de turista porque estava em trânsito para a Bélgica. Mas os suspeitos barraram-lhe a passagem. O homem terá reagido mal e provocados distúrbios e, segundo a TVI, que revelou a história, foi espancado e deixado a morrer numa sala. Só seria encontrado no dia seguinte, já moribundo, por outros funcionários do SEF que chamaram por socorro.
Mesmo sem entrar em julgamentos precipitados, custa a perceber como é que uma coisa destas pode ter acontecido quando um cidadão está sob custódia das autoridades portuguesas.
Pode entregar a declaração do IRS de 2019 a partir de hoje. O prazo vai decorrer durante os próximos três meses e a declaração só pode ser feita pela internet. As Finanças desaconselham a deslocação aos serviços, sobretudo dos mais idosos que procuram ajuda dos funcionários, e uma corrida ao Portal, já nos primeiros dias de abril.
Um barco da Marinha venezuelana afundou-se esta madrugada depois de colidir com o cruzeiro de bandeira portuguesa "Resolute", a norte da ilha de La Tortuga, a 181 quilómetros de Caracas. As autoridades venezuelanas acusam a tripulação da embarcação portuguesa de não ter respondido ao pedido de resgate e de ter abandonado os mais de quarenta tripulantes do o barco da Guarda Costeira "Naiguatá" à sua sorte. Não há vítimas a lamentar.
COVID, parte II
Sem voos ou passageiros, a TAP vai avançar com lay-off para 90% dos trabalhadores que irão receber dois terços do salário. A medida começa a ser implementada amanhã e vai afetar 9 mil trabalhadores. Os dez por cento dos funcionários que continuam a trabalhar vão receber 80 por cento do salário.Em entrevista à TSF, o ministro das Finanças, Siza Vieira, admitiu a nacionalização da empresa.
O Governo anunciou que já recebeu pedidos de 1400 empresas para acesso ao lay-off de regime simplificado. As empresas que aderirem podem suspender o contrato de trabalho ou reduzir o horário dos trabalhadores que, por sua vez, têm direito a receber dois terços da remuneração normal ilíquida, sendo 70% suportada pela Segurança Social e 30% pela empresa.
Em Portugal, onde a curva de crescimento do número de infetados e mortos tem sido comparada a um planalto, mas é mais um colina, os últimos números dão conta de 7.443 casos de covid-19 estando 627 pessoas internadas (188 em unidades de cuidados intensivos). O número de vítimas mortais voltou a aumentar e está fixado nos 160 (135 foram pessoas com mais de 70 anos). Hoje, ao meio dia, na conferência de imprensa das autoridades de saúde, cumpre-se o ritual para se saber quantos mais foram infetados e morreram.
O número de recuperados tem-se mantido na mesma há vários dias: 43. Porquê? “É uma doença de convalescença lenta”, explicou António Lacerda Sales, secretário de Estado da Saúde, Mas há notícias sobre as enormes dificuldades que as pessoas curadas têm em conseguir fazer os dois testes que certifiquem que estão recuperados.
Depois de Graça Freitas, diretora-geral de Saúde, ter admitido, com base em números errados, a criação de uma cerca sanitária à volta do Porto, esta hipótese foi liminarmente afastada por Lacerda Sales: "Não faz qualquer sentido". Uma história escusada.
Espanha registou mais 849 mortes nas últimas 24 horas, superando assim as 8.000 mortes no total.Em Madrid, já foram construídas duas morgues improvisadas: uma numa sala de espetáculos e outra na cidade judiciária. Os cemitérios não conseguem dar vazão ao número de vítimas mortais.
Em Itália. houve 837 mortes nas últimas 24 horas, mas o ritmo de contágio desacelerou.Há mais de doze mil mortes e as autoridades acreditam ter chegado ao pico da montanha.
Os Estados Unidos ultrapassaram a China em mortes, aproximando-se das 3.400 vítimas mortais por covid-19. Barack Obama, criticou Donald Trump. “Devemos exigir mais dos nossos líderes. Todos nós, de uma maneira terrível, assistimos às consequências causadas por quem ignorou os avisos sobre uma pandemia”, escreveu o ex-presidente no Twitter.Trump admite finalmente que está a braços com um problema terrível.
Há um porta-aviões atracado no porto de Guam, na Micronésia, com mais de quatro mil militares a bordo. Três estão infetados e não há ordem para desembarcar ninguém. O comandante do USS Roosvelt já pediu para que parte da tripulação possa sair. "Não há razão para ninguém morrer".
Na Bélgica, uma criança de 12 anos morreu e é a mais jovem vítima da covid na Europa. Não são só os velhos que não resistem.
Este números vão ficar desatualizados a partir do momento em que os ler. Ao meio dia, a newsletter do Expresso sobre a covid atualiza-os. Por algum tempo.
FRASES
“Importa manter a pressão na mola para que a mola não suba”
Marcelo Rebelo de Sousa e mais do que óbvia necessidade de prolongar o estado de exceção em que vivemos.
“Não fomos empáticos o suficiente, deveríamos ter reagido melhor, inclusive eu"
Wopke Hoekstra, o ministro das Finanças holandês que sugeriu investigar Espanha por não ter fundos para combater a covid e que foi alvo da ira de António Costa, considerando estas declarações “R-E-P-U-G-N-A-N-T-E-S”
“Vamos perder milhares de pessoas”
Donald Trump, que começou por ignorar os avisos contra a pandemia e está agora a cair na real
“Temos de lutar contra o desemprego. A minha preocupação sempre foi salvar vidas, sem deixar para trás os empregos”
Jair Bolsonaro, que insiste em manter escolas e empresas abertas, apesar da pandemia
“Então onde é que vai?”
“Trabalhar”
“Trabalhar? Então força”
Interrogatório de um agente da PSP a um automobilista na 2ª circular durante uma operação de controlo das medidas do estado de emergência
“Tínhamos razão”
Rui Moreira, presidente da Câmara do Porto, sobre o cerco sanitário ao Porto que acabou antes de começar depois de a DGS ter admitido que se estava a basear em dados errados
“A liberdade é a possibilidade do isolamento”
Bernardo Soares, heterónimo de Fernando Pessoa, especialista em poemas e em estar sozinho
O que eu ando a ler
A verdade sobre o caso Harry Quebert
Joel Dicker
Não é que seja um livro especialmente bem escrito ou de um nível literário muito alto, mas a história agarrou-me desde a primeira página, como se já não pudesse continuar a viver sem saber a verdade sobre o caso que dá título ao livro. Marcus, o narrador que é escritor, mergulha de cabeça num mistério com mais de 40 anos e que envolve o seu antigo professor e uma adolescente de 15 anos desaparecida com numa floresta. O romance é um page killer, como diz um amigo muito estimável e de requintado gosto literário. Só vou na 98ª das 684 páginas mas sinto que estou condenado a lê-lo até ao fim. Nível 8 (de zero a dez) em termos de recomendação para quarentenas forçadas.
Aqui é mais ver e ouvir: Nicolau Santos, que já fez parte da direção do Expresso e dirige agora a Agência Lusa, é, para além de um excelente camarada, um ótimo declamador (ia dizer diseur, mas não quero parecer pomposo) de poesia. Se o seguir no instagram ou no facebook pode ouvi-lo dize Alberto Caeiro, Filipa Leal, Mário Henrique Leiria e outros poetas que eu não conhecia mas o Nicolau trata por tu e “querida”. Nível 9, se mantiver o ritmo diário.
Ouvir: há muitos artistas a brindarem-nos todos os dias com atuações em casa ou nos quintais para não deixar a arte morrer. Não quero ser exaustivo e mesmo correndo o risco de ser injusto, vou destacar o saxofonista Ricardo Toscano que calha ser vizinho do guitarrista Bruno Santos que é marido da cantora Rita Red Shoes. Os três, mais uma menina pequenina e um gato, têm dados concertos no quintal que são uma pérola e que se eu fosse editor gravava e editava já. Se bem que já ninguém compra discos. Nível 9. E continuem. Os Best Youth também têm um vídeo delicioso no youtube e há sempre festivais online a acontecer.
Faça a sua parte. Proteja. E siga a vida interrompida no Expresso, Tribuna, Blitz e SIC.
Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: RGustavo@expresso.impresa.pt