“É mais fácil introduzir do que retirar”: ferramenta eletrónica está a ser construída para melhorar a prescrição de medicamentos a idosos
Elva Etienne
O uso de vários medicamentos em simultâneo – a chamada polimedicação – é um problema que afeta os mais velhos e que acarreta diversos riscos. Uma nova ferramenta eletrónica em desenvolvimento pretende ajudar a identificar mais facilmente quais podem ser retirados, de que forma e porquê. O instrumento poderá vir a ser, no futuro, integrado na plataforma de prescrição eletrónica
Quando ainda era estudante de medicina na Universidade da Beira Interior, era recorrente para Luís Monteiro ver idosos que levavam para as consultas sacos de medicamentos, com muitas caixas – incluindo com “alguns medicamentos repetidos”. Sentiu que se tratava de um “problema para resolver” e, mais tarde, acabou por dar origem à tese de doutoramento: procurou perceber que estratégias e soluções podem melhorar a qualidade da prescrição que envolve os idosos.
Concluiu-se que ferramentas eletrónicas de apoio à decisão, já em uso noutros países, auxiliam o prescritor “no sentido de diminuir o número de medicamentos prescritos por idoso e diminuir medicamentos potencialmente inapropriados”, isto é, que “podem ser descontinuados ou reduzida a dose”, explica ao Expresso o médico de família e investigador do CINTESIS. Mas há mais efeitos benéficos: redução do número de quedas e de internamentos e aumento da qualidade de vida.
Foi assim que começou a nascer a ideia de construir uma ferramenta eletrónica para melhorar a prescrição de medicamentos a maiores de 65 anos em Portugal, um trabalho que está a ser desenvolvido por uma equipa liderada por Luís Monteiro no CINTESIS. A idade aumenta a probabilidade de mais doenças e, a par, sobe também o número de medicamentos prescritos, o que se revela um “problema crescente”.
“O que estamos a tentar construir é uma ferramenta que pretende auxiliar não só o médico, mas também os doentes e os cuidadores, no sentido de identificar os medicamentos que sejam potencialmente inapropriados, mas mais do que só identificar, também sugerir formas de descontinuar e explicar o racional. Queremos fazer algo intuitivo, com smiles e alertas, para explicar se faz sentido ou não”, indica Luís Monteiro, que coordena a Unidade de Saúde Familiar Esgueira +, em Aveiro.
O médico sente, através da experiência no dia a dia, que a plataforma eletrónica utilizada atualmente “foi evoluindo, mas ainda é muito estática” e “dá pouca informação”. “Em vez de o profissional estar em frente ao ecrã a pesquisar numa série de sites ou a refletir muito, a ideia é poupar tempo para que haja mais tempo entre o profissional de saúde e o cuidador e o idoso”, enquadra.
Antes de ficar disponível, médicos de família vão experimentar o novo instrumento este ano, para “testar a linguagem e pequenas questões de satisfação do utilizador”. “Vamos fazer um teste beta, em que os médicos vão usando a ferramenta e nós vamos fazendo algumas perguntas. Vamos testando e ouvindo a opinião deles para melhorar o programa.”
A médio prazo, o objetivo é que a ferramenta seja integrada na plataforma de prescrição eletrónica de medicamentos e que “os sistemas de informação comuniquem”. “O que acontece neste momento é que o idoso pode, por vários motivos, ter vários médicos a quem recorre, de vários locais, e não há uma comunicação entre todos. Isso aumenta a probabilidade de haver interações medicamentosas e até informação que falha”, retrata o também docente da Universidade de Aveiro. Além das interações, com um maior número de medicamentos – numa espécie de “cascata da prescrição” – existe também o risco de reações adversas.
Enquanto médico de família em Ovar, depois de ter sido farmacêutico, também Eurico Silva vê a questão com preocupação. “Cada vez mais há uma cultura de medicação”, aponta ao Expresso. Com o acesso a cuidados de saúde de diferentes especialidades, “há uma forma fácil de introduzir novos medicamentos”, além dos não sujeitos a receita médica e de produtos como suplementos.
“Isto leva, com frequência, a que os doentes possam ter esquemas terapêuticos corretos, mas também esquemas em que há duplicação de medicamentos ou medicamentos que não são, entre si, seguros”, destaca. Aqui, os médicos de família assumem “um papel muito importante” enquanto “cuidadores do regime terapêutico”.
“Temos muita polimedicação e temos doentes que precisam da medicação toda, mas também temos situações em que há medicamentos que deixam de ter espaço e necessidade. É sempre mais fácil introduzir um medicamento do que retirar. Mesmo do ponto de vista do paciente, regra geral, retirar um medicamento pode ser encarado, para ele, como um desinvestimento”, explica Eurico Silva.
Um doente faz diálise peritoneal no Hospital de Santo António
Por isso, é necessária uma “estratégia concreta”, seja para retirar, adaptar a dose ou alterar para outro fármaco, em que a pessoa é esclarecida sobre a mudança. E ferramentas como a que está a ser desenvolvida “dão segurança”, tanto ao médico como ao doente. “A ferramenta permite dar conhecimento ao profissional de saúde e também suportar as suas decisões quando faz a comunicação ao doente”, considera. O especialista exemplifica que, com frequência, utiliza uma plataforma que o informa sobre as interações medicamentosas. “Seria útil nas plataformas de prescrição gerar estes alertas, quer as interações medicamentosas, quer ajustes de doses.”
Tudo isto num contexto em que se verifica, em muitos casos, uma “desresponsabilização do doente”. “É frequente os doentes não trazerem a medicação crónica, não saberem ao certo o que tomam e dizerem ‘está tudo aí no computador’”, conta Eurico Silva. “Como há muitas vezes essa desresponsabilização e cada vez mais os doentes têm esta complexidade de medicação, acabamos por aumentar os níveis de risco porque temos mais medicamentos para gerir”, sintetiza.
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