Uma pátria que não é a língua portuguesa e a cabeça a leste: meses depois, como se adaptaram os alunos ucranianos às nossas escolas?
Há muitas diferenças entre os dois sistemas de ensino
Jonathan Kirn
Meses depois de começarem a chegar a Portugal, as crianças e jovens ucranianos foram “abraçados” pelas escolas que os receberam. Mas o que se seguiu foi uma história de desencontros, com a língua, a saudade e a incompreensão a criarem muros cada vez mais altos e difíceis de transpor. Os professores admitem as dificuldades, os pais agradecem o cuidado dos docentes, mas sabem que não chega
Quando, às vezes, os textos são sofrimento e dor lidos em voz alta, vinte e sete pares de olhos voltam-se para Anastasiia, à espera de qualquer inflexão no rosto. Depois, é ver todas as cabeças clamarem para que se pare por ali a incursão pelo terreno de mágoas e lamentos. É assim na Escola Secundária Almeida Garrett, em Vila Nova de Gaia, durante a aula de Elisa Penso. A professora de Português, de 53 anos, logo acede ao pedido: dobram-se páginas e até as esquinas das palavras, mas sem ir longe demais. “Não avanço mais”, reconhece a docente natural de Chaves, familiarizada que está com poemas armadilhados e seus efeitos possíveis.
Anastasiia, uma menina ucraniana de 14 anos que a guerra expulsou do seu país, encontrou abrigo em Portugal e tábua rasa no sétimo ano de escolaridade de um sistema de ensino desconhecido. Ensinar em tais circunstâncias é, por isso, para Elisa Penso, um exercício de sensibilidade. "Ela já chorou na minha aula, chorou imenso, e eu não consegui perceber porquê. Abracei-a e perguntei-lhe o que se passava, e ela, ou não me quis responder, ou não soube traduzir aquele sentimento por palavras."
Anastasiia chegou em abril de 2022, e, para a acolherem, os professores tiveram de inaugurar uma linguagem nova: nem o russo (que a adolescente domina) nem o inglês ou português perfeitos. “No início, para se comunicar, vai buscar-se gestos, vai buscar-se tudo”, descreve a professora Elisa Penso, a quem a memória rouba uma gargalhada. “Às vezes, caímos no ridículo e eu caí.”
“A língua é um grande problema para ele. É difícil aprender.”
Yan Yavornytskyi garante que todos foram bondosos com ele. Mas não quer estudar português porque sabe que vai voltar para a Ucrânia e entrar numa universidade do seu país, nem que seja para estudar online. Se falta motivação a Yan, o recomeço forçado imprimiu em Olga Orlova uma compreensão extraordinária. Mãe de dois meninos, um de 16 e outro de um ano e meio, a migrante natural de Zaporíjia chegou em março a Vila Nova de Gaia, com muitas dificuldades pela frente. A Yan Yavornytskyi, o filho mais velho, que ingressou no décimo ano, tenta não exigir muito. "Ele é adolescente, e é um período difícil da vida dele por causa das hormonas. Está a tentar transmitir que tudo está bem."
É, porém, difícil negar o óbvio. Há muitas diferenças entre os sistemas de ensino e entre os dois países; diferenças que, neste caso, têm servido para afastar. "A língua é um grande problema para ele. É difícil aprender. Mas uma coisa de que ele gosta muito é que, em Portugal, é possível chegar atrasado. Na Ucrânia, as crianças não se podem atrasar por um único minuto." Mas, na Ucrânia, Yan Yavornytskyi teria acesso a um extenso programa curricular, com “muitas mais” disciplinas, inclusive informática, para mais tarde ser programador.
Yan praticava boxe e hoje apenas consegue desenhar possibilidades no ar, depois de a vida lhe ter roubado possibilidades. É assim que Lurdes Vergueiro, sua professora de Inglês e diretora de turma, de 62 anos, se sensibiliza com o futuro “muito incerto” do adolescente. Yan Yavornytskyi já não frequenta as aulas portuguesas, a não ser a de Português Língua Não Materna, que um dia lhe servirá para justapor mundos. "Esteve temporariamente numa turma do décimo ano, de acordo com o regime de equivalências. Esteve a adaptar-se à escola, não teve avaliação. Em junho, foi colocado novamente numa turma do décimo ano, depois de optar por Humanidades… A língua é uma grande barreira e o domínio do Inglês não é muito bom, por isso é muito difícil comunicar. Vamos usando o Google Tradutor e outras ferramentas."
Ao saber-se incompreendido, o adolescente mergulha ainda mais no isolamento, revela a docente. “Passa muito tempo na internet, à procura de amigos, à conversa com colegas e a tentar perceber onde estão. Não gosta muito de falar sobre o que aconteceu. A vontade dele é voltar para a Ucrânia, a mãe é que não permitiu porque, como ele vai fazer 17 anos, fica numa situação em que pode ser mobilizado.”
“Sentir a pressão de aprender uma língua estrangeira num país completamente desconhecido faz com que a vontade de voltar seja ainda maior"
É necessária uma aldeia inteira para educar uma criança. Daryna - nome fictício para preservar a sua identidade -, 18 anos, voluntariou-se para ser mediadora junto dos jovens compatriotas. Estudou na escola secundária gaiense e ajuda os alunos ucranianos ali chegados após o início da guerra a fazerem trabalhos de casa e traduções. Até há tempo para conversas sobre hobbies e os contactos próximos de uma amizade. Daryna não conhece a dor dos que deixaram para trás terra, casa, paz, mas decidiu não ficar impassível perante o sofrimento dos ucranianos. “Não imagino o que eles passam todos os dias”, admite. “A adaptação tem sido muito difícil, porque a língua é uma barreira. Demoram a sentir-se integrados e só o conseguirão fazer quando tiverem laços enraizados aqui em Portugal.”
O inglês também não é uma grande aposta nas escolas ucranianas, o que estreita ainda mais as possibilidades de entendimento. “Eles tentam focar-se no ensino aqui, mas é muito difícil. Sentir a pressão de aprender uma língua estrangeira num país completamente desconhecido faz com que a vontade de voltar seja ainda maior”, descreve Daryna.
Uma mulher idosa espera o seu próximo transporte, para outras partes na Polónia ou na UE, na estação da cidade polaca de Przemysl, a primeira depois da fronteira principal ente a Polónia e a Ucrânia
Anastasiia já fala "um bocadinho de português" e até “lê bocadinhos de texto”. É a professora Elisa Penso que dá conta dos avanços da aluna que não é avaliada nem obrigada a ir às aulas de Português [língua materna], mas é sujeita a avaliação às restantes disciplinas, às quais “tira positivas”.
“No outro dia, pedi-lhe para fazer uma descrição do professor de Português Língua Não Materna e ela conseguiu. Disse que era simpático, que é bonito, ensina bem e que gosta dele.”
Nas aulas de Filipe Ferreiro, alunos ucranianos de diferentes níveis escolares aprendem a fazer a sua apresentação, descrições e diálogo sobre estados físicos, garante o professor de Português Língua Não Materna: “Se esta pessoa vai ao médico, ela tem de saber expressar o que sente. Tento sempre lembrar-me de situações no dia-a-dia em que eles possam precisar de comunicar, como os números de emergência, saber quem têm de contactar...”
“Encaram esta situação como temporária, e pode não ser assim tão relevante para a vida deles saber português”
Apesar de haver “alunos que faltam bastante, uma vez que estão a acompanhar as aulas na Ucrânia” e “não estão a ter a assiduidade desejada para evoluírem na língua”, Filipe Ferreiro nota alguns progressos, no nível A1, o inicial, e em que se encontram os menores ucranianos. Um dos alunos, contudo, tinha mais dificuldades de integração e também a aceitar que tinha de aprender português. “Havia uma certa relutância. Eles também encaram esta situação como temporária e pode não ser assim tão relevante para a vida deles saber português. Um deles foi para os Estados Unidos. Senti muita dificuldade, como se houvesse uma barreira que ele me estivesse a pôr à frente... Costumo estabelecer uma relação com os alunos muito facilmente e com esse aluno não consegui.”
"É difícil estar o dia todo entre pessoas com quem não se pode trocar pensamentos”
“Chegámos em abril do ano passado. Eu, a minha filha, Margarita, e a minha mãe. A minha filha tem sete anos, terminou o primeiro ano na Ucrânia e voltou para o primeiro ano novamente. Moralmente foi difícil vir para Portugal, porque fomos forçados a deixar a nossa casa.”
Margarita completou meio ano de escola na Ucrânia e logo a guerra eclodiu. É a mesma soma de meses que já conta na escola portuguesa. Depois de partirem de Kherson, onde os ataques são constantes e o sinal de rede e a eletricidade intermitentes, Margarita e a mãe enfrentam em Portugal dificuldades incomparáveis - de tão menores: o trajeto percorrido pelos transportes públicos para chegar à Escola de Montelongo, em Fafe, é, por vezes, demorado; o horário escolar prolonga-se até às 17h00, ao contrário do que acontecia no país de origem, onde as crianças estudam apenas até às 14h00 e depois vão para casa fazer os deveres. O pior de tudo é o tipo de solidão que só desponta entre estes refugiados. “A Margarita diz que é difícil para ela estar o dia todo entre pessoas com quem não pode trocar pensamentos”, descreve a mãe. “As crianças e a professora receberam-na maravilhosamente, são pessoas abertas e gentis. Tivemos sorte. Mas a Margarita teve ainda pouco tempo para aprender português, para saber traduzir palavras. E a professora compreende-a através do capricho; tudo através das lágrimas.”
"Para os pequeninos não é tão difícil, eles apanham muito rapidamente"
Iryna Schnayder, diretora de uma escola de sábado ucraniana, garante que é mesmo assim: os mais miúdos não tardam em integrar-se e o mais difícil fica para os mais velhos. "Temos casos mais difíceis, sobretudo para miúdos com 14 ou 15 anos. Para eles é mais difícil integrarem-se e a matéria é mais complicada. Mas para os pequeninos não é tão difícil, eles apanham muito rapidamente."
A docente, que também trabalha como professora de Inglês numa escola portuguesa, contabiliza 170 alunos até aos 17 anos que se apresentam nas aulas apenas ao sábado, das 9h00 às 17h20. Ao todo, têm dez aulas a cada sábado, apenas com intervalo para almoço. “Os alunos estudam na nossa escola de acordo com o programa atual do Ministério da Educação da Ucrânia. Ensinamos várias disciplinas e eles têm quase todas as aulas que os alunos têm na Ucrânia": Ucraniano, Literatura Ucraniana, Inglês, Matemática, Físico-Química e Biologia.
A maioria dos alunos concilia o ensino de português com o ucraniano. Durante a semana, esses estudantes frequentam a escola portuguesa. A eclosão da guerra na Ucrânia, em fevereiro de 2022, levou a uma procura exacerbada do externato, um projeto educativo que é um “renovar-se de esperanças” para o hoje que é sábado. "No ano passado, tivemos 240 alunos. Recebemos alunos que vieram já depois de 24 de fevereiro. Alguns passaram por tempos muito maus antes de chegarem cá e a viagem durou quase uma semana. Alguns já conseguiram voltar para a Ucrânia, porque viviam em zonas menos complicadas e os pais tomaram essa decisão."
Iryna Schnayder acredita que o sistema de ensino português está a dar a resposta possível e que os novos estudantes “já não manifestam ter tantas dificuldades na escola portuguesa”. Na maioria dos casos, detalha a professora, "os ucranianos são bem recebidos e bem tratados e os professores e alunos das escolas portuguesas ajudam bastante".
Em Portugal, os filhos de Olha Kolisnyk - Kolisnyk Arkhyp, de dez, e Platon Kolisnyk, de 13 anos - encontraram paz, mas não uma paz sem limites. A contabilista ucraniana, que vivia em Dnipro, chegou de carro a Portugal a 21 de março. “Os meus filhos começaram a estudar na escola portuguesa no final desse mês.” Não era ainda a Escola Infanta D. Mafalda, em Rio Tinto, onde viriam a estudar, mas a Escola de Monte Burra.
Kolisnyk Arkhyp e Platon Kolisnyk frequentam um ATL e adoram jogar futebol. Preferem, aliás, Educação Física a todas as outras disciplinas, mas por vezes têm dificuldade em encontrar companhia para essas aventuras. "Inicialmente, os meus filhos estudavam noutra escola, a Escola de Monte Burra. Esta não é tão agradável, não querem brincar com o meu filho. Já tentei mudá-lo de turma."
“Os meus filhos não querem viver noutro país"
Olha Kolisnyk não tem dúvidas de que os filhos "não querem aprender português, mas tentam". Há uma complacência que encontraram nos professores e que ajuda a atenuar tudo o que nas suas vidas se reveste de crueldade, sublinha a mãe. "Se os miúdos têm alguma dúvida ou não sabem alguma coisa, ninguém os insulta. Dizem-lhes para estudar certo assunto." Mas os planos - que impedem os dois de conferir relevância ao estudo da língua portuguesa - continuam claros, cristalinos: “Os meus filhos não querem viver noutro país. Na Ucrânia, eles estavam felizes e nós tínhamos o nosso apartamento, o nosso carro, os amigos... Quando a guerra começou, não queríamos vir embora, mas teve de ser.”
Olha Kolisnyk, Kolisnyk Arkhyp e Platon Kolisnyk
“Estão fisicamente aqui e psicologicamente longe”, vaticina Paulo Mota, diretor da Escola Secundária Almeida Garrett, que recebeu, depois da invasão russa, cinco alunos originários da Ucrânia. Dados fornecidos ao Expresso pelo Ministério da Educação mostram que, ao longo de 2022 e até 31 de janeiro de 2023, tinham sido integrados nos estabelecimentos de pré-escolar portugueses 743 menores ucranianos, 2998 crianças da Ucrânia no ensino básico, e 720 no secundário. Lisboa foi o município que mais jovens e crianças ucranianas recebeu (319), seguido de Cascais (291), Sintra (173), Albufeira (153) e Portimão (149). "A maioria destes jovens não fala inglês", diz Paulo Mota, referindo-se à amostra da sua escola e às dificuldades que os cinco alunos têm apresentado. "Precisávamos de uma ajuda suplementar, e precisávamos de intérpretes", advoga o representante da escola.
Elisabete Bárbara, diretora do Agrupamento de Escolas Padre José Augusto da Fonseca, em Aguiar da Beira, tem uma história muito diferente para contar. É a história de Karolina e Kristina, duas irmãs que não falam inglês, mas que ultrapassaram a sua “timidez e dificuldade em comunicar” com doses generosas de motivação. "Foi complicado o início, mas depois nós conseguimos, através de um tradutor no telemóvel, tornar a situação mais fácil. Elas são muito dedicadas e muito atentas. Como vinham de um contexto difícil, nota-se que querem aproveitar esta oportunidade ao máximo."
“Recebemos orientações e normativas da tutela. Recebemos sempre orientações relativamente ao acolhimento dos alunos ucranianos. Não havia total liberdade, havia algumas hipóteses e fomos escolhendo o que mais se adequava.”
“Todos os miúdos dizem que querem voltar, e isso faz com que o investimento não seja muito grande”
A ideia das duas é a de permanecer, pelo menos até concluírem o ensino secundário. Karolina vai à frente, está no décimo ano. A irmã, dois anos atrás. As irmãs que “aprendem depressa” viram o seu modelo de ensino flexibilizado, tal como o Ministério da Educação previra. "Tivemos a preocupação, enquanto Conselho Pedagógico, de, terminado o terceiro período, dividir o décimo ano em dois anos. A Karolina está a fazer neste ano algumas disciplinas, as mais práticas, que não exigem tanto conhecimento linguístico, e, para o ano, uma vez que ela está a progredir imenso, fará as outras disciplinas." Elisabete Bárbara conta que “se aprende muito falando com elas”: falam dos clássicos da literatura e partilham experiências diferentes.
O diretor da Escola Secundária Almeida Garrett defende que os esforços de integração de jovens removidos do seu país por força das armas têm de passar por "tentar dar-lhes aquilo de que precisam", para "que se sintam inteiramente confortáveis". Entre as necessidades em causa está a disponibilização de meios para que os alunos possam ouvir as aulas da escola ucraniana. Mas há muitos entraves neste processo, que decorre há meses. “A comunicação com as famílias de alguns destes jovens é muitíssimo difícil”, destaca Paulo Mota. E há ainda a saudade, uma palavra - e sentimento - bem portuguesa, que as crianças ucranianas já cuidam que exista. “Todos os miúdos dizem que querem voltar e isso faz com que o investimento, mesmo na nossa cultura, não seja muito grande.”