Exclusivo

Guerra na Ucrânia

Decisão sobre Kherson revela “postura defensiva” da Rússia, enquanto recuperação ucraniana representará “ponto alto” da contraofensiva

Decisão sobre Kherson revela “postura defensiva” da Rússia, enquanto recuperação ucraniana representará “ponto alto” da contraofensiva
STRINGER

Após a saída de civis e material militar ao longo das últimas semanas, a Rússia anunciou a retirada das forças em Kherson. Duas especialistas explicam ao Expresso que estará em causa uma tentativa de “ganhar tempo” na guerra na Ucrânia, numa movimentação que tem em vista o inverno

O anúncio da retirada das tropas russas de Kherson, divulgado na quarta-feira, é um dos acontecimentos recentes mais significativos no decurso da guerra na Ucrânia, que se prolonga desde 24 de fevereiro. A importância estratégica e simbólica define aquela que é a única capital regional conquistada pela Rússia desde o princípio do conflito – onde, entretanto, a Ucrânia já terá entrado sem resistência.

Para Diana Soller, uma das especialistas ouvidas pelo Expresso, a tomada de Kherson pelas forças ucranianas é “um cenário que já não oferece muitas dúvidas”. Estando “iminente” há algumas semanas, deu tempo à Rússia para “repensar os seus planos”, refere a investigadora do Instituto Português de Relações Internacionais da Universidade Nova de Lisboa.

A cidade já não terá a mesma “utilidade” para a Rússia porque “as entradas logísticas já estão comprometidas”. “As pontes que faziam de Kherson uma zona estratégica até aqui já estão destruídas”, salienta. Ainda assim, para a Ucrânia, a recuperação de Kherson “será muito importante no sentido da moralização”, tratando-se de uma “vitória da contraofensiva ucraniana”. “Será o ponto alto nessa contraofensiva. Do ponto de vista da Rússia, parece-me que há uma adaptação a esse novo cenário.”

A professora da Universidade do Minho, Sandra Fernandes, recorda que recuperar Kherson significa “impedir aos russos um corredor importante de acesso a sul para a Crimeia”, incluindo ao nível do fornecimento de água. Em termos simbólicos, representa “um grande revés” para a Rússia por ser “a única cidade que, verdadeiramente, ganhou” no início da guerra.

Preparação russa

Do ponto de vista operacional, esta “terceira medida” russa na região, depois da retirada de civis e de “muito material pesado” nas últimas semanas, traduz-se numa movimentação “mais para sul, do outro lado do rio Dnipro”, explica Sandra Fernandes, que é também doutorada em Ciência Política e Relações Internacionais.

O general Sergei Surovikin, líder das forças russas na Ucrânia, classificou a decisão de retirada como “muito difícil”, mas que preserva “o mais importante” – a vida dos militares e a “eficácia de combate do grupo de tropas, que é inútil manter na margem direita [do rio] numa área limitada”, explicou num discurso televisivo.

As autoridades ucranianas reagiram com cautela ao anúncio russo, com receios de uma possível armadilha ou encenação. Diana Soller encara a hipótese de a Rússia ter concluído que “não tem capacidade para conter a contraofensiva ucraniana em Kherson” e, por isso, ter decidido “durante o inverno, pelo menos, retirar-se para a margem esquerda do Dnipro”, para criar “uma linha de defesa que torne mais difícil o avanço da Ucrânia para lá de Kherson”, como “a mais viável”.

Mas há outra possibilidade em cima da mesa: os Estados Unidos estarem a “negociar secretamente” com a Rússia. “Esta hipótese ganha força no sentido em que as eleições intercalares nos Estados Unidos mostraram que, de ambos os partidos, começa a haver algum cansaço entre as elites políticas relativamente à guerra na Ucrânia”, afirma Diana Soller.

A administração do Presidente norte-americano, Joe Biden, terá pedido à Ucrânia “em privado” para demonstrar abertura a negociações com a Rússia, escrevia o “The Washington Post” no sábado. O procurador-geral ucraniano, Andriy Kostin, garantiu já nesta sexta-feira não considerar essa opção. “É possível que esteja a acontecer alguma coisa nos bastidores, de forma a que haja uma pré-negociação de que Kherson anexada passará para as mãos da Ucrânia”, diz Diana Soller.

Kherson foi uma das regiões ucranianas – além de Zaporíjia, Luhansk e Donetsk – anexadas pela Rússia no final de setembro, após a realização de supostos referendos, numa decisão não reconhecida pela comunidade internacional, mas as forças russas não controlam totalmente nenhuma delas.

“A ideia que transparece e que os ucranianos veiculam é que isto corresponde a uma retirada para o inverno para [os russos] se prepararem melhor para a primavera”, afirma Sandra Fernandes. Numa “postura altamente defensiva”, o objetivo será “manter as posições que controlam, para ver se as conseguem aguentar durante o inverno, de modo a que na primavera possam regressar à ofensiva”. Neste contexto, a especialista sublinha a construção de trincheiras pelas forças russas na região: duas linhas, com “cerca de 200 quilómetros”, já estão construídas, e uma terceira está a ser criada na zona de Mariupol.

“A ideia que transparece e que os ucranianos veiculam é que isto corresponde a uma retirada para o inverno para [os russos] se prepararem melhor para a primavera”

O que esperar do inverno?

O inverno é precisamente o que Diana Soller considera que “vai mudar a forma como a guerra se vai fazer”. “As forças terrestres vão ficar limitadas pela neve e lamas. Provavelmente, vai ser uma guerra muito mais aérea e muito menos terrestre, também dependendo da quantidade de mísseis e drones que a Rússia possa ter, que é relativamente desconhecida”, indica a investigadora.

Esta “nova fase” não significa que a guerra “termine ou sequer amaine” e tudo depende da forma como a Rússia “quererá usar o inverno para combater”. “Já percebemos que uma das ideias russas está relacionada com a destruição das infraestruturas críticas da Ucrânia, principalmente elétricas, mas também de gás e água, para dificultar muito o inverno aos ucranianos e até para fazer vítimas por frio”, realça Diana Soller.

Certo é que a retirada de Kherson e a construção de trincheiras “podem ser vistas como uma espécie de corrida contra o relógio”, numa necessidade de “ganhar tempo”, aponta Sandra Fernandes. Não é de esperar “neste período próximo, do mês de novembro e do inverno”, uma “ofensiva da Rússia”, mas sim “esforços para aguentar as posições”, em simultâneo com um avanço ucraniano no terreno, se se mantiver “o nível de ajuda militar que têm recebido, sobretudo dos Estados Unidos”.

Para Sandra Fernandes, “a leitura da fragilidade da Rússia colhe”. “Taticamente os russos estão a perder, mas não devemos com isso tirar conclusões para uma leitura mais estratégica de os russos estarem a perder esta guerra. Ainda não estamos nesse momento”, ressalva.

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: scbaptista@impresa.pt

Comentários

Assine e junte-se ao novo fórum de comentários

Conheça a opinião de outros assinantes do Expresso e as respostas dos nossos jornalistas. Exclusivo para assinantes

Já é Assinante?
Comprou o Expresso?Insira o código presente na Revista E para se juntar ao debate
+ Vistas