
À medida que se conhecem atrocidades nas zonas libertadas pelas forças armadas ucranianas, a propaganda de Moscovo assume um tom mais agressivo. A exclusão da Rússia das exéquias da rainha motiva críticas a Londres
À medida que se conhecem atrocidades nas zonas libertadas pelas forças armadas ucranianas, a propaganda de Moscovo assume um tom mais agressivo. A exclusão da Rússia das exéquias da rainha motiva críticas a Londres
Esta sexta-feira, 16 de setembro, começou com relatos cada vez mais horríveis de pelo menos 440 campas não-identificadas detetadas em Izium, cidade da região de Kharkiv, no leste da Ucrânia, libertada da ocupação russa no passado dia 10. Ao fim do dia, o governador da região anunciava terem sido encontrados os corpos de 450 civis, com “marcas de morte violenta”. O Presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, que visitara Izium na quarta-feira, falou sobre os sinais de tortura nos cadáveres.
As notícias apareceram em sites russos independentes, a maioria dos quais Moscovo classifica hoje como “agentes estrangeiros”, bem como aos seus editores e redatores. Um dos mais audazes é o Mediazona, fundado por Nadya Tolokonnikova e Masha Alekhina, do grupo ativista Pussy Riot, após a sua saída da prisão em 2013. O site detalha o que foi o massacre de Izium e cita funcionários ucranianos que contam como as tropas russas aterrorizaram a população.
A agência oficial russa Tass não ignora Izium. Prefere reproduzir as palavras de Vitaly Ganchev, chefe da administração civil e militar ocupante na região de Kharkiv. Afirma ele que Izium foi uma encenação ucraniana. A Rússia afirmara o mesmo nas primeiras semanas da guerra, aquando do massacre de Bucha.
“Agora compreendemos por que motivo as forças armadas da Ucrânia aterrorizou o povo”, afirmou Ganchev à Tass. “O quadro torna-se claro. A Ucrânia simplesmente sacrifica a população civil para satisfazer os seus fins egoístas. Criou uma imagem para os jornalistas ocidentais que lá filmam hoje, para que amanhã o regime de Kiev possa receber ainda mais armas. Não é uma luta contra exércitos, é uma luta contra o povo, que há muito deixou de considerar como seu.”
Sexta-feira é o dia em que o Ministério da Justiça russo costuma acrescentar nomes à lista de “agentes estrangeiros”. O último é uma celebridade que se tornou, inesperadamente, crítica do regime de Vladimir Putin e da invasão da Ucrânia. Maxim Galkin, comediante de 46 anos, é casado com Alla Pugacheva, a cantora mais famosa da Rússia desde os tempos da União Soviética.
O casal saiu da Rússia após a invasão. A sua posição contra a guerra ganhou força ao atuar para plateias de emigrantes. Acabou por ser denunciado pelos cineastas Nikita Mikhalkov (cujo “Sol Enganador, de 1994, ganhou o Óscar de melhor filme estrangeiro), que apoia Putin e a guerra, e Tigran Keosayan, convertido em comentador televisivo e casado com Margarita Simonyan, diretora do canal pró-Kremlin RT.
Pugacheva retorquiu a Mikhalkov com uma publicação no Instagram, este mês. Esta incluía um excerto de um dos filmes mais célebres do realizador, “Escravo do amor”, sobre a produção de um filme mudo na Crimeia no tempo da guerra civil russa de 1918. Comentário da cantora: “Um filme maravilhoso. Um realizador maravilhoso. Para onde desapareceu a pessoa maravilhosa que era Nikita Sergeevich Mikhalkov?”.
Os comentários de Galkin foram questionados pelo porta-voz de Putin, Dmitry Peskov. O jornal “Komsomolskaya Pravda”, tabloide pró-Kremlin, noticiou que Galkin era agora um agente estrangeiro e que o Ministério da Justiça assim o designara por o comediante receber financiamento ucraniano.
Nas redes sociais surgiram, também este mês, imagens de um programa de ano novo da televisão russa, em 2013, em que Galkin e Zelensky, que na altura também era humorista, juntos em palco. A documentarista Vera Krichevskaya referiu “outro milénio”, em que Galkin e Zelensky “cantam e dançam em palco”, aplaudidos por famosos russos e ucranianos. “Passaram oito anos. Foi o último ano novo antes da Crimeia”, escreve, referindo-se à anexação da península ucraniana pela Rússia em 2014. As imagens geraram especulação sobre uma candidatura presidencial de Galkin se o regime de Putin ruir.
Os comentadores ainda estão a processar um vídeo muito divulgado, surgido de início em canais do Telegram. Nele, Yevgeny Prigozhin, conhecido como “o cozinheiro de Putin” — e cujo exército privado, Wagner, combate na Ucrânia — a recrutar prisioneiros de guerra como soldados. No site Bellingcat, Christo Grozev reproduz notícias cada vez mais alarmantes vistas nas redes sociais russas desde a visita de Prigozhin à prisão: veículos penitenciários em direção à Ucrânia e condenados recrutados que promovem, num vídeo, a “boa comida, armas e estilo de vida saudável” assegurados a quem luta na Ucrânia. Também explica o dilema dos órgãos de comunicação estatais russos, com a Ucrânia a intensificar ataques contra alvos colaboracionistas nas zonas ocupadas por Moscovo.
O site independente Medusa, instalado em Riga, na Letónia, publicou na quinta-feira a tradução em inglês de um artigo sobre pobres de Tuva — região remota onde nasceu o ministro da Defesa russa, Sergei Shoigu — que combatem e morrem na Ucrânia. Estas perdas suscitam cada vez mais descontentamento.
As publicações controladas pelo Kremlin preferiram destacar a viagem de Putin à cimeira da Organização de Cooperação de Xangai (SCO, na sigla inglesa), em Samarcanda, dias 15 e 16. “A Rússia e a China estão dispostas a garantir estabilidade ao mundo: resultados do discurso de Vladimir Putin e das reuniões da cimeira da SCO”, titulava o “Komsomolskaya Pravda”. A cobertura internacional mostrou bem que o Presidente chinês, Xi Jinping, não está satisfeito com Putin e com a guerra na Ucrânia. Sexta à noite o jornal não mencionava o desagrado evidente do primeiro-ministro Narendra Modi com Putin.
Um dos memes favoritos dos jornalistas, incluindo o repórter de investigação Andrei Zakharov, da BBC Russian (considerado “agente estrangeiro” desde 2021), combinava fotos do Kremlin da agência RIA Novosti. Nelas vê-se Putin desajeitadamente à espera de reuniões com os seus colegas da SCO. No passado era ele quem deixava dirigentes mundiais à espera.
O regime e os seus apoiantes ficaram furiosos, entretanto, por o Reino Unido não ter convidado a Rússia para o funeral de Isabel II. A porta-voz do Ministério dos Negócios Estrangeiros, Maria Zakharova, afirmou que o Governo de Londres trai a memória da rainha na II Guerra Mundial ao apoiar a Ucrânia.
“Consideramos profundamente imoral esta tentativa de utilizar uma tragédia nacional, que afetou os corações de milhões de pessoas em todo o mundo, para fins geopolíticos e para acertar contas com o nosso país”, afirmou na quinta-feira. “Desonra especialmente a memória de Isabel II, que fez parte do Serviço who Territorial Auxiliar do exército britânico, que combateu os nazis e os seus cúmplices ucranianos Stepan Bandera e Roman Shukhevich. Hoje as elites britânicas tomam o partido deles, mas Moscovo recorda e continua a homenagear todos os veteranos que contribuíram para a Grande Vitória.”
Prossegue Zakharova: “Há que dizer que o exemplo de Isabel II, que foi uma força muito unificadora e não interferiu na política durante o seu reinado, por uma questão de princípio, não impediu Londres de fazer afirmações para dividir e servir o seu oportunismo.”
A apresentadora televisiva Olga Skabeeva, cujo programa é violentamente antiocidental, foi gozada por ter recorrido a imagens que não só eram anteriores ao reinado da monarca falecida, como mesmo do nascimento dela, para acusar Isabel II de colonialismo e violação dos direitos humanos. Foi desmascarada pelo comentador Rustem Adagamov no Twitter. Este divulgou um vídeo do TikTok a explicar tudo e escreveu: “Quando Skabeeva abre a boca, é porque vai dizer uma mentira.”
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