Rússia, Europa Ocidental e Médio Oriente: risco nuclear em Zaporíjia é "grave o suficiente para que todos nos preocupemos"
Zaporíjia possui uma capacidade total de 5,7 gigawatts, o suficiente para abastecer mais de quatro milhões de casas
ANDREY BORODULIN
As grandes instalações de reatores na Ucrânia foram danificadas por bombardeamentos russos e a ONU pediu para ter acesso aos locais. A Agência Internacional de Energia Atómica afirmou que a situação está "fora de controlo" e que ataques às infraestruturas seriam "suicidas". Os especialistas ouvidos pelo Expresso confirmam que o risco nuclear foi elevado até ao seu nível mais alto desde o início da guerra
"Colocar uma central nuclear na linha de fogo é altamente irresponsável." Se os avisos dos responsáveis da Agência Internacional de Energia Atómica não eram suficientes, John Erath, do Centro de Controlo de Armas e Não-Proliferação, vem subir o tom da retórica. Ao Expresso, também Edwin Lyman, especialista em proliferação e terrorismo nuclear e investigador do Institute of Nuclear Materials Management que testemunhou muitas vezes perante o Congresso dos EUA, Shaun Burnie, especialista em nuclear da Greenpeace, e Tony Roulstone, professor de Energia Nuclear da Universidade de Cambridge, explicam os riscos desta incursão por Zaporíjia, e por que é que desta vez a situação é mais preocupante.
A ONU, "extremamente preocupada", pediu que inspetores internacionais tivessem acesso à central nuclear de Zaporíjia, depois de as instalações terem sido bombardeadas durante o fim de semana. Mas haverá realmente risco de uma "catástrofe nuclear", como defendeu a Agência Internacional de Energia Atómica, órgão das Nações Unidas? Quão perigosa é a situação e o que pode acontecer a seguir?
A estratégica central nuclear de Zaporíjia
Construída na era soviética, Zaporíjia é o maior reator nuclear da Europa. No seu conjunto de seis reatores, a central mais potente da Europa “é uma coisa notável”, chegando a poder fornecer um quarto da energia da Ucrânia, um país que, além disso, “é, depois de França e da Eslováquia, o terceiro na Europa que mais usa energia nuclear para produzir eletricidade”. Carlos Fiolhais, antigo professor da Universidade de Coimbra, explicava-o ao Expresso em março, com a ocupação e a interrupção das comunicações das instalações com o exterior. O interesse das tropas russas nas centrais nucleares ucranianas tornou-se evidente logo nos primeiros dias de guerra. Na central de Zaporíjia, os bombardeamentos do exército russo chegaram a provocar um incêndio.
Pelo menos dois dos reatores de água pressurizada, construídos nos anos 1980, estão em funcionamento. Essas estruturas são importantes para Kiev, já que são capazes de produzir energia para até quatro milhões de residências.
Situada na margem sul do rio Dnieper, em Enerhodar, a sudoeste da cidade de Zaporíjia, a central ocupa uma posição estratégica relevante, tanto para as forças russas, quanto para os ucranianos, que reivindicam o controlo do local desde o início da guerra.
A presença dos reatores refrigerados a água e de instalações de armazenamento de combustível levou a Rússia a usar o espaço como uma espécie de parque de artilharia “protegido”, recorrendo a ele para disparar contra posições ucranianas, já que dificilmente a Ucrânia reagiria e arriscaria um acidente nuclear. O secretário de Estado dos EUA, Antony Blinken, acusou os russos de usarem as infraestruturas como um “escudo nuclear”.
"É claro que os ucranianos não podem responder, para que não haja um terrível acidente envolvendo a central", declarou Blinken. A posição estratégica permitiu à Rússia atingir zonas como a cidade de Nikopol, do outro lado do rio, que sofreu fortes bombardeamentos nas últimas semanas.
Há duas preocupações que assaltam os especialistas. "Em primeiro lugar, a central está atualmente fora da supervisão internacional e impossibilitada de realizar a sua manutenção normal", explica ao Expresso John Erath, diretor das políticas do Centro de Controlo de Armas e Não-Proliferação, que supervisiona equipas norte-americanas envolvidas nas questões do Irão, da Rússia, da Coreia do Norte e da China. "Isso aumenta a possibilidade de que algo possa partir-se, exigindo o encerramento da atividade da central."
Uma grande ameaça, de acordo com Shaun Burnie, da Greenpeace, é "a perda de energia elétrica, a chamada estação blackout". As principais linhas de rede seriam perdidas devido à atividade militar, e a central nuclear dependeria então de geradores a diesel de emergência "que não são confiáveis, porque dependem de baterias de emergência que têm capacidade muito limitada". Faltaria a energia necessária para que as bombas arrefecessem os reatores e os tanques de combustível. "O pior cenário é a perda da função de arrefecimento que leva à ebulição da água do núcleo do reator e à secagem do tanque de combustível usado, o que leva a uma reação exotérmica no núcleo e no combustível: a libertação maciça de radioatividade, potencialmente muito pior do que Fukushima e até Chernobyl."
"Embora haja stock de combustível no local, vimos, em Chernobyl, no início deste ano, que o reabastecimento de combustíveis pode tornar-se um problema", analisa Tony Roulstone, professor de Energia Nuclear na Universidade de Cambridge. "A segurança das centrais depende de um bom entendimento entre os operadores ucranianos e as tropas russas lá fixadas. Embora a Rússia tenha engenheiros muito experientes e capazes, não é claro se eles estarão no local e, portanto, há espaço para mal-entendidos entre as tropas e os operadores, o que é preocupante."
John Erath também admite que muita coisa pode correr mal. "Se os combates ocorrerem perto da central, poderá haver danos que levem à libertação de radiação." É uma perspetiva "improvável", mas as consequências "são graves o suficiente para que todos nos preocupemos", alerta o especialista que já trabalhou em cooperação com a União Europeia e a NATO.
Edwin Lyman, diretor de segurança nuclear da ONG norte-americana Union of Concerned Scientists, imagina que possa ocorrer esse "envolvimento militar total, que submeta a central a bombardeamentos repetidos que possam ferir ou matar pessoal e desativar vários sistemas de segurança nuclear, em resultado de explosões e incêndios". Nesse caso, até as próprias contenções poderão ser danificadas, possibilitando a libertação de radiação na área circundante. "É improvável, mas não impossível, que uma contaminação significativa possa espalhar-se para fora da Ucrânia: para a Europa Ocidental, Rússia e Médio Oriente.
Por que é que a situação é mais preocupante agora do que em março?
Estacionar tropas e equipamentos militares perto da central de Zaporíjia, sabendo que a Ucrânia não arriscaria um acidente nuclear em nome da ofensiva, é, na ótica de John Erath, uma "tática cínica e altamente perigosa que coloca milhares de vidas civis em risco". Entre março e agosto, há quase um abismo, defendem os analistas.
Nos primeiros dias da guerra, "os russos tomaram o controlo com violência mínima", diz o alto responsável do Centro de Controlo de Armas e Não-Proliferação. "Agora, estão a colocar equipamentos militares nas proximidades, possivelmente em preparação para combates pesados." John Erath considera "particularmente preocupante que haja relatos - não verificados - de que a Rússia está a preparar-se para destruir a central, em vez de deixar a Ucrânia recuperá-la". Embora se deva tratar de propaganda, não deixa de ser uma possibilidade "impensável", porque prepararia terreno para "um dos piores desastres ambientais da História".
Como lembra Tony Roulstone, em março, o local operava "normalmente e sob supervisão da Agência Internacional de Energia Atómica". As margens de segurança da central estão a ser abatidas, em plena ocupação russa e sem a vigilância da agência das Nações Unidas.
Acresce a isso "o nível de 'stress' dos trabalhadores, após seis meses de ocupação militar russa e atividade militar na zona", alarma-se Shaun Burnie, notando que as probabilidades favorecem a ocorrência de um acidente.
Um ataque às instalações seria "suicida" para qualquer uma das partes?
"Nenhuma central nuclear foi construída para resistir a um ataque militar, e, mesmo sem um ataque militar direto, é muito vulnerável, pela questão de perda de energia", observa Shaun Burnie. O especialista que integra a Greenpeace acredita que a "escala das atividades militares só deverá piorar", pelo que há apenas uma solução: a retirada das forças de ocupação russas.
Embora as centrais nucleares sejam estruturas muito robustas, protegidas por betão, não foram projetadas para resistir a um míssil ou projétil de artilharia. Tony Roulstone sustenta, por isso, que "energia nuclear e guerra não se misturam". Não é por acaso que, no Ocidente, as centrais nucleares "não possam ser instaladas perto de complexos militares ou aeródromos".
"O ataque direto dos militares aos reatores poderia causar muitos danos incalculáveis e talvez levar a uma libertação descontrolada, como aconteceu em Fukushima", refere o académico.
Edwin Lyman pesa vários tipos de ameaças. Apesar de não considerar que um ataque fosse "necessariamente suicida", as suas implicações seriam "sérias" para "militares ou civis nas proximidades, em caso de colapso, potencialmente provocando a necessidade de retiradas e causando contaminação de produtos agrícolas e cursos de água". A longo prazo, a contaminação do solo pode ainda aumentar os custos e a dificuldade dos esforços de recuperação.
Alguns projéteis podem ainda causar "incêndios descontrolados que se espalhem e desativem os sistemas de segurança", lembra o especialista em segurança nuclear.
Também não é improvável, de acordo com os investigadores, que a Rússia esteja apenas a usar a narrativa do risco nuclear para chantagear a Ucrânia e o Ocidente, até porque combater em torno de Zaporíjia seria "altamente arriscado", avalia John Erath. "Ambos os lados sabem disso. A Rússia está cinicamente a jogar com vidas ucranianas, sabendo que a Ucrânia não correrá o risco de uma contaminação generalizada. É difícil acreditar que Putin prosseguiria com algo tão imprudente. No entanto, a história russa celebra 'heróis' que queimaram cidades e vilas russas, em vez de permitir que caíssem nas mãos de invasores, em 1812 [invasão francesa da Rússia] e 1941 [ocupação nazi, durante a Segunda Guerra Mundial]."
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