Guerra na Ucrânia

Ocupação de centrais nucleares é estratégica e inédita durante uma guerra. “A população tem medo da palavra ‘nuclear’. E se deixa de haver eletricidade e água, a situação torna-se impossível”

Ocupação de centrais nucleares é estratégica e inédita durante uma guerra. “A população tem medo da palavra ‘nuclear’. E se deixa de haver eletricidade e água, a situação torna-se impossível”

Foi um exagero afirmar que um acidente nuclear na central ucraniana de Zaporizhzhia seria o fim da Europa. Esta guerra inaugurou, sim, uma nova era, mas, no que diz respeito ao recurso à energia nuclear, para amedrontar e controlar as populações

O interesse das tropas russas nas centrais nucleares ucranianas tornou-se evidente nos primeiros dias de guerra. Na central de Zaporizhzhia, a maior da Europa, os bombardeamentos do exército russo chegaram a provocar um incêndio. Agora, com o avanço das tropas em direção à central Ucrânia do Sul, o físico Carlos Fiolhais acredita que a Rússia não se atreveria a “brincar com o fogo, que não é um fogo qualquer, é um fogo que pode queimar toda a gente”.

A Rússia tem dado sinais contraditórios. Nesta segunda-feira, a Agência Internacional de Energia Atómica manifestou consternação em relação ao facto de ter sido interrompida a comunicação pela internet. O general Rafael Mariano Grossi proferiu estas palavras: “As forças russas agora controlam a gestão da central, bem como a aprovação das decisões técnicas tomadas pelos operadores ucranianos. Esta não é uma maneira segura de operar uma central nuclear. Também não é seguro ou sustentável que as comunicações internas e externas tenham sido interrompidas e cortadas, como nos foi relatado pelo operador e regulador ucraniano. Estou profundamente preocupado com esta reviravolta.”

Carlos Fiolhais, que tem seguido com atenção este tema, confirma, em declarações ao Expresso: “As  comunicações estão, de facto, reduzidas, porque é um cenário de guerra. Eu próprio tentei entrar no site da central – o que seria uma coisa normal em tempo de paz, porque se trata de um equipamento de fornecimento de energia pacífico -, e não consegui.” É uma ideia que o antigo professor da Universidade de Coimbra reforça. “Trata-se da utilização de átomos para a paz, para fornecimento de energia à sociedade.” Então como está uma estrutura pensada para a paz e para o bem-estar a ser manuseada como arma de guerra? “Não se conhece em todo o mundo uma situação como esta: ter havido um cenário de guerra com a ocupação de uma central nuclear; é inédito”, constata o investigador.

“Há um intuito estratégico de controlo dos sistemas de energia”

No seu conjunto de seis reatores de potência equivalente, a central mais potente da Europa “é uma coisa notável”, chegando a poder fornecer um quarto da energia da Ucrânia, um país que, além disso, “é, depois de França e da Eslováquia, o terceiro na Europa que mais usa energia nuclear para produzir eletricidade”.

“Avançaram com o intuito de tomar a central; com certeza há um intuito estratégico de controlo dos sistemas de energia”, analisa o físico. Mas há mais três centrais na Ucrânia, além de Zaporizhzhia, uma das quais perto da fronteira com a Polónia (não é, para já, uma frente da guerra) e outra na linha fronteiriça da Ucrânia com a Bielorrússia (a partir de onde as tropas russas têm avançado para solo ucraniano).

Forte tática de guerra, fraca estratégia de marketing

Carlos Fiolhais afasta a ideia de que Chernobyl possa vir a repetir-se. “Estas centrais são feitas para resistirem a este tipo de ataques, aliás até a ataques maiores. Mesmo que houvesse um bombardeamento, em princípio, o betão e a camada metálica na sua construção aguentam perfeitamente isso.” São reatores que, segundo explica o professor, estão presentes em vários países do mundo. “Curiosamente, é tecnologia russa”, refere o investigador, que aponta a ironia. “O equipamento é russo, o fornecimento é russo, os russos fabricam centrais para si e para venda. São fabricantes mundiais de centrais nucleares. É algo muito estranho porque é como se vendessem um carro a alguém e depois ocupassem o carro que venderam. Isso não é bom para quem está na montra de vendedor de energia nuclear.”

A estratégia pode, afinal, ter razão de ser quando se compreende que, com a tomada da segunda central, mais a Sul, um terço da energia ucraniana cai nas mãos dos russos. “Para os russos é um interesse estratégico poder controlar a energia, e a energia é essencial para a vida normal. Em Mariupol, que é uma cidade sitiada, e Kiev, que de algum modo também está sitiada, se deixa de haver eletricidade, se deixa de haver água, a situação torna-se impossível.”

Por outro lado, estas ações podem servir o único propósito de assustar. “A população em geral, ao dizer a palavra ‘nuclear’, tem medo, e a Ucrânia está particularmente associada a Chernobyl. A palavra foi usada.” Foi, aliás, Volodymyr Zelensky que acordou o fantasma. “Exagerou, porque disse que seria o fim da Europa e que seria necessária a evacuação da Europa. Nem é semelhante a Chernobyl, nem ao fim da Europa. O acidente de Chernobyl foi lamentável, morreram 50 pessoas, sobretudo bombeiros, no tratamento imediato do acidente. Deverão ter morrido muitas outras, mas nós não sabemos quantas. Os cálculos são imprecisos, porque se trata do aumento do cancro da tiróide e nós temos de projetar quantos casos haveria numa situação normal. Tudo indica que a situação pós-Chernobyl não é tão grave como se anunciou na altura.”

Zelensky quis chamar a atenção para a situação “aflitiva” em que se encontra

“Se, por acaso – era muito difícil que isso acontecesse -, houvesse um mau manejo da central, ou até, eventualmente – apesar das garantias de segurança da estrutura -, um comprometimento da barreira de proteção, poderia haver um sobreaquecimento ou colapso do reator”, sustenta Carlos Fiolhais, rejeitando um perigo dez vezes maior do que o que estava em causa em Chernobyl. “É muito pouco provável que possa acontecer isso; houve uma tentativa de assustar toda a gente, há uma retórica de guerra”, sublinha ainda.

O modelo dos reatores de Chernobyl é mais antigo, está morto e enterrado. Os que hoje existem na Ucrânia garantem uma proteção bastante superior, como o Expresso já esclareceu. Este é um dos motivos pelos quais Carlos Fiolhais diz não recear um acidente nuclear como o de há 35 anos. Mas não é o único. O vento é que determina para onde vai a nuvem radioativa, em caso de acidente nuclear, visto que a atmosfera é um “sistema caótico”. Nem durante a guerra há loucura bastante para estas e semelhantes aventuras. “Em princípio, [os soldados russos] não são loucos a ponto de prenderem ou matarem os técnicos que estão a tratar das instalações nucleares. Podem, uma vez que têm o controlo da situação, diminuir a potência dessas centrais, causando apagões, problemas energéticos, que, aliás, até já estão a acontecer.”

Só que também o problema da energia se vira para os dois lados, lembra o investigador. Em Zaporizhzhia, “perante a invasão, os técnicos da central acharam por bem diminuir a operação”, e os ocupantes russos passaram a “permitir” que as centenas de pessoas que ali trabalham continuassem as suas funções. Mas três dos reatores estão desligados -“até já estavam antes” -, e a outra metade está a funcionar em níveis muito baixos. Ironias à parte: “A central está a dar muito menos energia do que poderia dar, o que é compensado por outra central termoelétrica, que funciona com gás, nas proximidades. Curiosamente, o gás vem da Rússia.”

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