EUA

Há 20 anos, Kristi Noem matou a sua cadela: revelá-lo na sua autobiografia arruinou a hipótese de ser vice de Trump

Kristi Noem com Donald Trump, em setembro de 2023, num evento no Dakota do Sul
Kristi Noem com Donald Trump, em setembro de 2023, num evento no Dakota do Sul
Scott Olson/Getty Images

Num livro recentemente publicado, a governadora do Dakota do Sul conta como matou a sua “feliz” cachorra, por esta não estar “treinada”. A história tem feito manchetes nas principais publicações norte-americanas, com Noem a esforçar-se por se defender das muitas críticas que atraíu. Mas o processo acabou por lhe dar cabo das pretensões políticas junto de Donald Trump e de muitos outros republicanos. No meio do escândalo, ainda teve de retirar menções a um encontro falso com Kim Jong-un

Há 20 anos, Kristi Noem matou a sua cadela: revelá-lo na sua autobiografia arruinou a hipótese de ser vice de Trump

Hélio Carvalho

Jornalista

Vários políticos aspirantes norte-americanos começaram por lançar um livro de memórias ou uma autobiografia antes de darem o pretendido salto. Alguns com sucesso: em 2008, o então senador Barack Obama lançou um aclamado ensaio, que mostrou a sua mensagem vencedora de “esperança”; em 1956, um jovem John F. Kennedy publicou o modelo dos livros de campanha, com o seu autor a receber um Pulitzer.

Mas a outros as obras não ajudaram. Em 2023, o governador republicano Ron DeSantis - que na altura era visto como sucessor de Donald Trump à frente dos conservadores - lançou uma esquecível biografia, um reflexo de como a sua campanha se acabou por despenhar no início do ano.

A governadora republicana do estado rural do Dakota do Sul, a ultraconservadora Kristi Noem, tornou-se a ‘vítima’ mais recente, depois de seguir a receita e lançar a sua candidatura informal para ser a escolhida de Donald Trump para sua vice-presidente. Isto, claro, se ele vencer as eleições presidenciais de novembro frente a Joe Biden (que também escreveu uma biografia antes da sua campanha, em 2007).

O livro de Kristi Noem, “No Going Back: The Truth on What’s Wrong with Politics and How We Move America Forward”, publicado este mês e cujos detalhes foram dados a conhecer em abril pelo The Guardian, ficará para a história das biografias políticas norte-americanas. Mas devido a razões muito pouco políticas.

No livro, Noem conta - detalhadamente - como decidiu matar o seu braco alemão de pêlo duro de 14 meses, Cricket, porque a cachorra não aceitava ordens, estragou uma caça e era “a imagem da pura felicidade”.

Scott Olson/Getty Images

Tentar resumir os macabros detalhes com que Noem descreve a morte de Cricket torna-se uma tarefa árdua, já que a governadora ocupa várias páginas a insultar o animal, que, segundo ela, “tinha uma personalidade agressiva”. Num incidente, a cadela “perdeu a cabeça de excitação, perseguindo os pássaros e a viver o momento da vida dela”. “Eu odiava aquele cão”, escreve.

Noem revela como, há cerca de 20 anos, matou Cricket após uma caçada em que ela se revelou “mal treinada”, e como depois a enterrou numa cova, para, mais tarde, matar da mesma forma uma cabra que era “mal cheirosa”, “nojenta”, “má” e que “adorava perseguir” os filhos da governadora. O objetivo do relato era demonstrar a força de caráter da aspirante a vice-presidente, uma imagem da realidade dura do Dakota do Sul e da necessidade de fazer tudo o que é “difícil, sujo e feio” para resolver algo.

Mas há mais. Noutro excerto, critica o atual Presidente, Joe Biden, por não mandar abater o seu próprio cão, Commander, um pastor alemão que ganhou notoriedade por morder agentes dos serviços secretos, garantindo que mataria o cão caso chegasse à Casa Branca. “Commander, diz olá ao Cricket”, agoirou.

A polémica já terá feito a governadora perceber que há várias formas de afastar um eleitorado, e matar um cão que aparentava ser feliz é certamente uma delas. As reações ao livro valeram-lhe várias condenações: nas redes sociais, no Congresso, nos órgãos de comunicação, de organizações não governamentais e, até, do seu ídolo político.

Segundo a revista Rolling Stone, Donald Trump terá insultado em privado a governadora do Dakota do Sul, por matar a sua cadela e questionando os seus atributos políticos como possível vice-presidente. Publicamente, o antigo Presidente e candidato pelo Partido Republicano a voltar à Casa Branca admitiu que Noem passou “por uns dias difíceis”.

Curiosamente, após finalizar a história sobre a morte da cadela, a própria Kristi Noem remata com uma frase fatídica: “Se eu fosse uma política melhor, não teria contado a história aqui.”

Pressão das críticas começa a apertar

Desde a confissão, a figura republicana tem tentado desdobrar-se para atender à quantidade de entrevistas pedidas, nas quais tem sido questionada pelo canicídio de Cricket e por possíveis abusos de animais - e não, como esperava, para falar das suas posições políticas.

Noem justificou em várias entrevistas que matou Cricket porque esta representava um risco para a sua família. E, no programa “Face The Nation”, da CBS News, reiterou que tem uma querela com o cão de Biden. “Ele atacou 24 agentes. Quantas pessoas têm de ser atacadas e ficar gravemente feridas até se tomar uma decisão sobre o cão e o que fazer com ele?”, questionou, sugerindo mais uma vez que o Presidente devia abater o animal.

Contudo, numa recente entrevista para a Fox Business - um canal conhecido pelo seu declarado apoio a políticos republicanos -, Noem pareceu perder a paciência com a imprensa. Na passada terça-feira, depois de o jornalista insistir em perguntar-lhe sobre as suas chances de ser escolhida por Trump para ser sua hipotética vice-presidente, a governadora disse que a entrevista era “ridícula” e exigiu que fosse mudado o assunto.

Do lado democrata, as críticas não são surpreendentes, ainda para mais considerando que a grande maioria das associações de direitos animais se opõe em muitas matérias às posições dos republicanos. Mas nem os conservadores se contiveram em atirar farpas à governadora.

Nicole Malliotakis, congressista por Nova Iorque, conhecida por levar o cão para o edifício do Capitólio, disse que o caso não abona a favor de Noem. “A pior parte é que não foi um ataque externo. Ela voluntariou essa informação”, respondeu ao Politico. E Meghan McCain, uma comentadora e filha do antigo senador John McCain, escreveu na rede social X (antigo Twitter) que “pode recuperar-se muita coisa na política, mas não de matar um cão”.

“Boa sorte com essa escolha de VP [vice-presidente], senhora”, disse.

O encontro de Schrödinger com Kim Jong-un

Mas não há apenas histórias chocantes no livro de Noem. Há também histórias falsas.

Uns capítulos mais à frente e saltamos para o tempo da governadora como congressista única do estado do Dakota do Sul, cargo que ocupou entre 2011 e 2019, antes de regressar de Washington D.C. para o seu estado. Noem escreve que, quando era membro do comité da Câmara dos Representantes para os Serviços Armados, teve oportunidade de “viajar para vários países e conhecer líderes mundiais”.

“Lembro-me de conhecer o ditador norte-coreano, Kim Jong-un. Estou certa que ele me subestimou, não tendo a mínima ideia sobre a minha experiência com pequenos tiranos (afinal, eu tinha sido catequista). Lidar com líderes estrangeiros exige resiliência, preparação e determinação”, recorda.

Não existem quaisquer provas que o encontro tenha acontecido. Tanto o Congresso como Pyongyang desmentiram. Noem fez uma viagem à China em 2014 pelo comité, mas Kim Jong-un apenas saiu da Coreia do Norte pela primeira vez em 2018.

Mais uma vez questionada sobre os conteúdos da história, já depois de vários órgãos de comunicação terem feito o ‘fact-checking’ à viagem e ao suposto encontro, Noem esquivou-se à resposta, disse que era uma “anedota” e não respondeu diretamente se tinha ou não conversado com Kim Jong-un.

Mas a falsidade da história pareceu ter sido admitida pela própria editora e por Noem. A Center Street Publishing, que se especializa em publicar livros de ideologia de extrema-direita e ultraconservadora, confirmou, em comunicado, que “a pedido da governadora Noem, vai remover a passagem sobre Kim Jong-un do seu livro, após a reimpressão da versão impressa e assim que for tecnicamente possível nas edições de áudio e ebook”.

E a política esclareceu, à CBS News, que houve um lapso em algumas passagens e algumas foram editadas, mas recusou que isso significasse uma retração.

Kim Jong-un não é o único líder a ser colocado - e possivelmente inventado - nas travessias da governadora. Kristi Noem também conta como chegou a cancelar uma reunião com o presidente Emmanuel Macron, devido a comentários que o líder francês fez sobre a ofensiva israelita na Faixa de Gaza, mas o Eliseu negou que tenha existido qualquer convite à então congressista no âmbito de alguma atividade diplomática.

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: hcarvalho@expresso.impresa.pt

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