As direitas radicais já não são contra a União Europeia? São, mas falam muito menos disso e sabem que podem mudá-la por dentro
A atual primeira-ministra de Itália, Giorgia Meloni, numa reunião de juventudes partidárias, na companhia de Viktor Orbán, primeiro-ministro da Hungria. Na altura Meloni ainda não liderava Itália
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Sair da União Europeia deixou de ser assunto entre as direitas radicais. Pode aflorar em discursos políticos de segunda linha, mas o foco está em tentar mudar a própria UE, o que não é necessariamente uma notícia melhor. Políticos como Viktor Orbán ou Giorgia Meloni já perceberam que têm muito mais poder dentro da União do que fora dela, exigindo contrapartidas pelo seu voto e usando a máquina para os seus propósitos. A vaga populista que se espera nas eleições europeias de junho pode modificar um projeto que nasceu precisamente para manter os nacionalismos sob controlo
No dia 22 de novembro de 2023, Geert Wilders, um dos políticos populistas com mais antiguidade nos palcos europeus, venceu as eleições legislativas nos Países Baixos. O programa do seu Partido da Liberdade (PVV, extrema-direita) pede um referendo ao ‘Nexit’, junção das primeiras letras de Nederland com exit (saída), à imagem do ‘Brexit’ (Britain + exit). Tal intenção nunca foi, contudo, verbalizada em campanha por Wilders (que, entretanto, desistiu da batalha pelo lugar de primeiro-ministro, mas deve ser o principal parafuso de uma aliança de direita), porque os neerlandeses estão longe de considerar a saída da União Europeia (UE) uma boa ideia.
Acresce que o apoio à saída da UE diminuiu significativamente nos Estados-membros, segundo um grande estudo pan-europeu, o Inquérito Social Europeu (ESS), conduzido pela City University of London, realizado em 30 países desde 2001. Na última sondagem (2022), o maior declínio no apoio à saída registou-se na Finlândia, onde 28,6% dos inquiridos eram favoráveis a um Finexit na anterior sondagem. Agora são apenas 15,4%.
Houve quedas igualmente acentuadas entre 2016 e 2022 nos Países Baixos (de 23% para 13,5%), Portugal (15,7% para 6,6%), Áustria (26% para 16,1%) e França (24,3% para 16%), e outras menores, mas ainda estatisticamente significativas, na Hungria (16% para 10,2%), Espanha (9,3% para 4,7%) Suécia (23,9% para 19,3%) e Alemanha (13,6% para 11%).
Na República Checa (29,2%), Itália (20,1%) e Suécia (19,3%) há uma percentagem maior de apoiantes da saída, mas mesmo aí o número caiu: 4,5 pontos percentuais, 9,1 pontos e 4,6 pontos, respetivamente, desde 2016-17. De todos os países sondados, é aos espanhóis que a ideia mais repele: apenas 4,7% dos inquiridos apoia uma saída.
O efeito dissuasor dos maus resultados Brexit está intimamente ligado a esta relutância dos partidos populistas, de direita radical e de extrema-direita, em fazer dos exits as grandes bandeiras das suas campanhas para as europeias de junho.
Fazer como Meloni e Orbán
Lembremos que a redução da imigração foi o principal tema da campanha do campo pró-Brexit, mas nunca o Reino Unido teve tantos imigrantes como desde que saiu da UE. Privados da entrada livre de trabalhadores europeus, o país está constantemente a abrir campanhas de captação de imigrantes de dentro e fora da UE para colmatar as falhas nos serviços de saúde, cuidados com idosos, hotelaria, etc.
“À medida que os partidos de nicho se tornam partidos maiores, abandonam algumas das bandeiras mais radicais. Mesmo os que ideologicamente eram mais contra a integração europeia já não fazem um discurso tão extremista, porque isso não se reflete em grandes ganhos do ponto de vista eleitoral”, diz ao Expresso o académico Marco Lisi, da Universidade Nova de Lisboa, que tem centrado a sua pesquisa nestes fenómenos a nível europeu.
“A grande maioria dos eleitores tem atitudes favoráveis à integração europeia e, neste clima internacional, a guerra da Ucrânia tem ajudado a consolidar a UE como âncora importante do ponto de vista da democracia, da segurança, e também com a questão da energia, da subida de preços, da inflação. As medidas europeias para tentar ajudar nestas questões tiveram, no geral, avaliações positivas”, prossegue Lisi.
Não, o euroceticismo não desapareceu nem é provável que desapareça, muito menos com novo alargamento da UE à porta e todas as mudanças que isso vai trazer, nomeadamente à agricultura. Esta corrente anti-UE têm-se adaptado, transformou-se, e está a evoluir no sentido de tentar emular o papel que tem tido o primeiro-ministro da Hungria, Viktor Orbán, que lutou e conseguiu cedências da Comissão Europeia em troca do seu apoio às “causas” que a UE tomou como suas, como o apoio à Ucrânia.
“É o mesmo que se vê com Giorgia Meloni, em Itália. De repente está a colaborar com outros dirigentes europeus e a promover políticas conjuntas, por exemplo, contra a imigração. Alguns dos partidos populistas criticam a UE e, ao mesmo tempo, reconhecem que a UE é a única forma de impedir a entrada de imigrantes”, afirma ao Expresso Stijn van Kessel, professor de Política Europeia na Queen Mary University e especialista em populismos, direita radical e integração europeia.
Em teoria, continua o investigador, “faria sentido assumir que odeiam a UE, dado que esta pode ser facilmente retratada como organização elitista muito distante das pessoas comuns. É um saco de pancada fácil para estes partidos”. Retoricamente, “opõem-se muito à UE, mas, na prática, sobretudo quando chegam ao poder, podem atenuar a sua oposição”.
O mesmo está a acontecer na Áustria, onde o Partido da Liberdade (FPÖ, extrema-direita), ultrapassou o Partido Popular (ÖVP, centro-direita) como força mais apoiada, havendo legislativas marcadas para o outono. Na Bélgica, que vai a votos em junho, poderá verificar-se dinâmica semelhante. Em França, os Republicanos (centro-direita) apresentam medidas que à direita das de Marine Le Pen, líder do Reagrupamento Nacional, que durante anos foi uma espécie de fantasma do fascismo passado (quando se chamava Frente Nacional), mas tem feito um esforço de normalização desde que sucedeu ao pai, Jean-Marie. Enquanto este texto era escrito, Le Pen apresentava uma descendente de argelinos, Malika Sorel-Sutter, como número dois da lista para as europeias.
No Parlamento Europeu, há um processo similar em curso. A família do centro-direita — conservadores clássicos, democratas-cristãos — votou contra alíneas do Acordo Verde que anteriormente apoiava. Defende pactos migratórios que pressupõem a externalização das fronteiras e os apoios a grupos violentos na Líbia desde que parem os barcos, e defendem com mais frequência uma Europa das nações, em vez de uma Europa política.
“Sim, essa estratégia tem funcionado. Estes partidos têm conseguido, pelo menos, não digo contrariar políticas favoráveis, mas bloquear algumas das políticas que poderiam ser mais prejudiciais a esta agenda mais nacionalista. E, portanto, isto já é uma vitória, mesmo a nível da agenda. A grande luta destes partidos nas próximas europeias é tentar influenciar a agenda política, mesmo que os seus temas de eleição, a imigração, o negacionismo climático, a corrupção, não tenham eco nas políticas adotadas”, diz o investigador da Universidade Nova.
Temas de campanha sem surpresas
A maioria dos analistas concorda que as europeias de junho poderão ser um pouco menos dominadas por questões nacionais do que é normal, uma vez que há uma guerra à porta da UE, houve uma pandemia que desencadeou um volume gigantesco de ajuda monetária aos Estados-membros e o alargamento à Ucrânia e aos Balcãs é assunto que parece ser, por fim, levado a sério, o que vai transfigurar por completo o funcionamento hoje vigente entre os 27.
Não quer isto dizer que os partidos da direita radical tenham abdicado dos assuntos de sempre em prol de grandes discussões sobre o funcionamento das instituições. “A integração europeia envolve aspetos técnicos, como a política monetária e as regulamentações comerciais, que não são diretamente muito importantes para a maioria dos cidadãos da Europa. As campanhas eleitorais para o Parlamento Europeu tendem a centrar-se em questões internas ou a discutir a integração europeia de forma superficial, simplificando o debate em ‘a favor ou contra’, ‘mais Europa ou Europa’. Os partidos de direita radical tendem, é claro, a associar a UE a temas salientes para eles e para os seus eleitores, como a imigração e a soberania nacional”, diz van Kessel.
Num cenário em que estas forças tenham de encontrar uma frente unida entre o muito que os separa, o nacionalismo pode vir a ser o que os une. “Muitos dos partidos radicais, antissistema, extremistas estão a tentar impor uma agenda claramente nacionalista, estão a pedir mais poder e mais exceções para cada Estado-membro, defendem o controlo nacional sobre cada vez mais matérias. É por aí que podem nascer alianças transversais entre as várias famílias ideológicas no Parlamento Europeu”, prediz Lisi.
Nativismo + etnorregionalismo = euroceticismo
Uma das principais fontes do euroceticismo é a assimetria que os europeus sentem no desenvolvimento das suas regiões. O fenómeno está estudado e chama-se “a armadilha do desenvolvimento”, que acontece quando uma região previamente próspera ou de nível de vida médio, começa a perder fulgor e entra em declínio. É na incompreensão sobre a mudança que se alojam sentimentos de abandono que fazem engrossar os votos nos partidos que prometem “país primeiro” ou “o nosso povo primeiro”.
As razões para são de origem diversa e têm sido discutidas em centenas de artigos nos últimos oito anos, desde o referendo ao Brexit, que coincidiu com a eleição de Donald Trump nos Estados Unidos e a defesa que o ex-Presidente americano sempre fez do isolacionismo e do protecionismo. Como faz na recandidatura este ano, aliás.
Hans Kundnani, analista da Chatham House que foi dos primeiros a desenvolver trabalho académico sobre o etnorregionalismo, alerta, num artigo recente, que a EU pode tornar-se um organismo gerido pela extrema-direita, por muito antitético que isso possa parecer a um cidadão europeu mais moderado.
“Tendemos a idealizar a UE como projeto inerentemente progressista ou mesmo cosmopolita, o que a torna aparentemente incompatível com o pensamento de extrema-direita. No meu livro “Eurowhiteness”(algo como “Brancura Europeia”, em tradução literal), defendo que a tendência ‘pró-europeia’ para pensar na UE como expressão de cosmopolitismo criou uma espécie de ângulo morto em torno da possibilidade do que se pode designar por etnorregionalismo, versão étnica/cultural da identidade europeia análoga ao etnonacionalismo, que está intimamente ligada à ideia de se ser branco. Por outras palavras, uma UE de extrema-direita é possível, pelo menos em teoria”, escreve Kundnani.
Hoje as formações de extrema-direita já não são monólitos fechados nas suas sedes nacionais, incapazes de comunicar e de encontrar consensos fora de portas. A direita radical não se limita a falar do perigo para a nação, fala já do perigo para a civilização europeia.