Internacional

Europa e América Latina procuram aproximação, mas Ucrânia e défice democrático são espinhos na relação

O Presidente do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, em Bruxelas com a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen
O Presidente do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, em Bruxelas com a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen
JEAN-CHRISTOPHE VERHAEGEN/AFP/Getty Images

Diferenças de visão entre os 60 países limitam mais proximidade entre as duas regiões, mas convergências permitem tímidos avanços na reunião desta segunda e terça-feira em Bruxelas

Europa e América Latina procuram aproximação, mas Ucrânia e défice democrático são espinhos na relação

Márcio Resende

Correspondente na Argentina

Europa e América Latina procuram aproximação, mas Ucrânia e défice democrático são espinhos na relação

Susana Frexes

Correspondente em Bruxelas

Os 33 países da Comunidade de Estados da América Latina e Caraíbas (CELAC) e os 27 da União Europeia (UE) retomam uma relação paralisada durante oito anos. A terceira reunião birregional (depois das de 2013 e 2015) pode terminar com uma declaração superficial de boas intenções, sem apoio à Ucrânia. À falta resultados concretos, pode só ficar estabelecido o compromisso de retomar a reunião a cada dois anos.

“Sou bastante cética quanto ao resultado desta cimeira. Temos muitos interesses comuns e complementares, mas temo que prevaleçam os contraditórios”, adverte ao Expresso a diretora do Centro de Estudos Europeus da Universidade chilena de Concepción, Paulina Astroza.

A invasão da Ucrânia revelou a vulnerável dependência da Europa em relação à Rússia, levando a UE a acelerar processos de inserção internacional em regiões onde perdera terreno, e a renovar o interesse em estabelecer uma nova agenda com a América Latina, baseada na transição ecológica, energética e digital no contexto das alterações climáticas.

Os 27 desejam diversificar cadeias de valor e reduzir dependências, a partir de parceiros fiáveis, com os quais tenham relação tradicional e histórica. Entre eles estão os países latino-americanos, aos quais a UE oferece o “Global Gateway”, um plano de investimentos verdes (energias renováveis, hidrogénio verde, lítio para novas tecnologias).

“A guerra trouxe a preocupação por novos fornecedores de energia e alimentos, como são os países da América Latina, fora da prioridade europeia nos últimos anos. Os espaços de influência que a Europa abandonou foram aproveitados por outros atores, sobretudo a China. A Europa perdeu peso relativo e passou a terceiro plano, depois da China e dos Estados Unidos”, explica ao Expresso o analista internacional argentino Sergio Berensztein, referência na região.

Do ponto de vista latino-americano, a Europa pode ser um parceiro estratégico para a industrialização de matérias primas, acrescendo valor às exportações e gerando empregos. Para isso, os principais países da região querem investimentos com transferência de tecnologia. Seria a integração perfeita de complementaridades, mas o casamento não parece tão simples. A III Cimeira CELAC-UE pode não satisfazer toda a expectativa que cada lado tem. “Os europeus estão dispostos a investir se houver reciprocidade de outras áreas, como Defesa. Ou seja: investem em energias verdes, mas querem contratos relevantes”, acrescenta Berensztein.

Em entrevista ao Expresso, o cientista político argentino Andrés Malamud, frequentemente consultado pelas diplomacias das duas regiões, indica que quando a Europa se refere à segurança alimentar e à segurança energética, não quer trocar de dependência. “Falei com membros da Comissão Europeia. Quando dizem que não querem depender da Rússia, significa que querem produzir na Europa; não passar a depender de outro país ou de outra região”, sublinha o docente do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa.

Divergências dificultam declaração comum

Com uma declaração mais simples e menos detalhada do que seria expectável, o mais relevante da Cimeira UE-CELAC poderá ser o facto de se realizar. Fonte diplomática diz ao Expresso que, politicamente, é já significativo ter os 27 líderes europeus sentados à mesma mesa com 23 dos 33 líderes dos países da América Latina e Caraíbas. Não estarão presentes os presidentes da Venezuela, Nicolas Maduro, e do México, Andrés Manuel López Obrador, mas são muitos mais os que viajam até Bruxelas, a começar pelo brasileiro Lula da Silva.

Apesar das divergências, não só entre os dois lados do Atlântico como dentro de cada um dos blocos, a Cimeira tenta relançar as relações políticas e económicas. Se correr bem, é para repetir a cada dois anos, sendo o próximo encontro em 2025, na Colômbia.

Ao mesmo tempo, as negociações dos últimos meses acabaram, inevitavelmente, por expor as divergências. Para os europeus é fundamental que a declaração final tenha uma referência à guerra infligida por Vladimir Putin à Ucrânia, mas ainda era ponto aberto na tarde de domingo. A CELAC a prefere evitar qualquer condenação da Rússia, afirmando apenas o respeito “pela integridade territorial” em geral e remetendo para o que cada um tem afirmado nas Nações Unidas.

Os países da América Latina e Caraíbas mostram-se “preocupados com a guerra” e as consequências “para a economia global” e “apoiam as iniciativas a favor do fim das hostilidades”. A UE quer ir um pouco mais longe.

Outro ponto polémico é a referência à Venezuela. A proposta da UE visava deixar no papel que todos “encorajam o diálogo construtivo entre as partes nas negociações conduzidas pela Venezuela na Cidade do México, com vista a assegurar eleições presidenciais inclusivas e transparentes em 2024”. Porém, a CELAC não quer menções ao país de Maduro na declaração final.

Europeus discordam quanto ao Mercosul

Outra diferença diz respeito ao acordo como Mercosul. O problema não é com a CELAC, é mesmo entre os 27. França e Áustria continuam a ser contra o acordo. Depois de muita insistência poderá ficar uma referência insípida. “Tomamos nota dos trabalhos em curso com o Mercosul”, diz o último esboço a que o Expresso teve acesso. Já em relação aos acordos com o Chile e o México, há mais ambição: “Congratulamo-nos com os processos em curso com vista à assinatura [...] nos próximos meses”.

Em paralelo à cimeira, Lula, como presidente temporário do Mercosul (Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai), terá uma reunião com a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen. O acordo UE-Mercosul (maior economia da região) é estratégico para as duas partes, mas os europeus acrescentaram exigências ambientais que os sul-americanos rejeitam. O Brasil ficou de coordenar com os parceiros do Mercosul uma contraproposta. Existe a expectativa de que essa resposta seja entregue durante a reunião que começa esta segunda-feira.

“As chances de que o Brasil aceite são muito baixas ou mesmo nulas. O acordo não convém ao Brasil tal como está nem convém aos sectores relevantes da França capazes de influir na decisão. Também não convém aos sectores protecionistas da Argentina, mas esta, como economia menor, pode ser compensada pelas perdas. Se não quiser o acordo, pode ser convencida a aceitar. No caso do Brasil e da França, não”, avalia Malamud.

A declaração deverá servir para as partes reconhecerem a “importância de um comércio aberto e justo baseado em regras acordadas internacionalmente”, tendo em conta não só as componentes económica e social, mas também ambiental. A preocupação com o clima surge noutros pontos. Os países reconhecem “o impacto das alterações climáticas”, que afetam todos e “em particular os países em desenvolvimento e os mais vulneráveis, incluindo os pequenos Estados insulares em desenvolvimento, nas Caraíbas, as regiões ultraperiféricas da UE.”

“Deveríamos procurar pontos de encontro básicos para um plano de ação concreto em matéria de alterações climáticas, transição energética (hidrogénio e lítio) e segurança. Sobre lítio, por exemplo, 60% da produção mundial está na Argentina, no Chile e na Bolívia. Quanto à segurança, a América Latina tem vivido uma realidade de violência, tráfico de pessoas, crime organizado, tráfico de drogas, a somar às pressões migratórias. Essa insegurança tem alimentado populismos de extrema-direita”, observa Astroza, para quem “a Europa deveria pensar que a estabilidade da América Latina é a sua própria estabilidade”.

Outra novidade é o mea culpa em relação à escravatura. “Reconhecemos e lamentamos profundamente o sofrimento indescritível infligido a milhões de homens, mulheres e crianças em resultado do tráfico transatlântico de escravos”, pode ler-se no esboço de declaração.

Assegurar reuniões frequentes

A conclusão da reunião pode ser apenas estabelecer um roteiro para a institucionalização da relação entre as duas regiões e o compromisso de reuniões a cada dois anos. Por enquanto, os avanços concretos devem passar pelas reuniões bilaterais. Um exemplo é a modernização do Acordo de Associação UE-Chile e o Acordo Global UE-México, prestes a serem assinados. Também pode haver um memorando de entendimento UE-Argentina em matéria de energia.

“A CELAC não tem entidade jurídica para assinar nenhum acordo”, ressalta Andrés Malamud. Não é um bloco económico, não é um organismo nem mesmo um processo de integração em curso. É um fórum político que esboça a pretensão de uma agenda de cooperação, sem ações concretas. “A CELAC é mesmo uma casca de ovo. Não há um grupo homogéneo com interesses comuns. Pelo contrário, há interesses contraditórios entre nós mesmos”, lamenta Astroza.

Na CELAC convivem países com instituições fortes com países institucionalmente falidos. Democracias e países governados por regimes autoritários sem alternância política. Como funciona por unanimidade, basta que um desses se oponha para que um ponto não seja incluído numa declaração.

“São valores comuns o que defendemos? Na América Latina, temos a mesma ideia ou a mesma interpretação do que é democracia, Estado de Direito e direitos humanos”, questiona Paulina Astroza, lembrando que a UE também tem membros cujas normas atentam contra o direito europeu de independência e de separação de poderes, especificamente Polónia e Hungria.

América Latina difusa

O conceito de América Latina é difuso. A região não é um bloco coeso nem tem um mecanismo único de integração abrangente. São realidades diferentes a da América Central (importadora de matérias-primas) e a da América do Sul (exportadora). Por outro lado, as Caraíbas formam outra região com um conceito particular, que nesta cimeira está a exigir que os europeus paguem compensações pelo período colonial de escravidão.

“Existem duas Américas Latinas. A do Norte engloba o México, a América Central e dois países da América do Sul: Colômbia e Venezuela. Todos esses estão mais próximos da órbita dos Estados Unidos. O resto da América do Sul, do ponto de vista comercial, está mais próximo da China. O principal sócio do Brasil é a China. O principal sócio do México são os Estados Unidos. Brasil e México são os representantes dessas duas sub-regiões”, interpreta Malamud.

O Presidente da Colômbia, Gustavo Petro, foi recebido por Joe Biden na Casa Branca em abril
Anadolu/Getty Images

A única coisa comum a todos os latino-americanos é a desigualdade social. “Sem denominador nem horizonte comum, é difícil que possa haver uma negociação entre América Latina e Europa”, conclui Berensztein.

Autoritarismos com projeção mundial

A América Latina convive com um défice em matéria de democracia e de direitos humanos, gerando tensa convivência entre países com bases republicanas e países disfarçados de democracias. É na CELAC que os regimes autoritários da América Latina encontram a sua vitrina internacional. A comunidade foi criada em 2010 por impulso da Venezuela e de Cuba, em oposição à Organização dos Estados Americanos (OEA), em que Cuba não participa e onde Washington exerce forte influência.

Nesse aspeto, todos os olhos se voltam para Cuba, Nicarágua e Venezuela, mas é preciso prestar atenção a estados semifalidos da América Central, como Guatemala, El Salvador e Honduras, os países do chamado Triângulo do Norte, onde os opositores também têm sido banidos da disputa eleitoral. “Venezuela, Nicarágua e Cuba não são democracias. El Salvador e Guatemala estão a deixar de ser. Mas se a Europa fizesse a seleção que os Estados Unidos fizeram na última Cimeira das Américas, faltariam vários presidentes, incluindo o do México”, avalia Malamud.

Se dúvida houvesse sobre a ausência de condenações à Venezuela, mesmo depois da exclusão da candidata opositora María Corina Machado das presidenciais de 2024, a liderança da CELAC está nas mãos do primeiro-ministro da pequena ilha de São Vicente e Granadinas, Ralph Gonsalves, aliado do venezuelano Maduro. “O objetivo da UE é usar a integração como instrumento de negociação com esses regimes. Ao manter o vínculo diplomático, pressiona-se através da integração, sentando os rebeldes à mesa de negociação”, aponta Berensztein.

Zelensky não mora aqui

A reunião em Bruxelas acontece após anos de forte presença da China na América Latina, mas também da sua associada Rússia em países como Cuba, Venezuela, Nicarágua e Bolívia, em maior medida, mas também em Brasil, México e Argentina, as três maiores economias.

Isso explica, em parte, a negativa desses países em aceitar a presença em Bruxelas do Presidente da Ucrânia, Volodymir Zelensky. É ponto central para a UE, mas a América Latina entende que a guerra não lhe pertence, que é problema a ser resolvido pela Europa. Refugia-se numa suposta neutralidade ou prioriza vínculos económicos e políticos com a Rússia.

É possível que se declarem a favor de “uma saída política e diplomática” para a guerra, mas vão preferir usar o termo “conflito” e não vão condenar a Rússia nem apoiar a Ucrânia. Nicarágua e Venezuela estão com Putin e a sua invasão. “A América Latina não tem interesse em envolver-se. Não vão aplicar sanções nem enviar armas, claramente”, descarta Malamud. Será curioso ver a Argentina a pressionar por um parágrafo que reforce os seus direitos sobre as Ilhas Malvinas, baseado no princípio de integridade territorial, enquanto se nega a incluir um parágrafo, pelo mesmo princípio, a favor da Ucrânia.

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