Com barragens a menos de metade da capacidade, Espanha sente a ameaça da seca extrema

Não chove há 125 dias e houve ondas de calor de mais de 40ºC. Madrid tenta coordenar esforços com Lisboa no âmbito da União Europeia
Não chove há 125 dias e houve ondas de calor de mais de 40ºC. Madrid tenta coordenar esforços com Lisboa no âmbito da União Europeia
Correspondente em Madrid
A seca em Espanha, fenómeno natural que afeta toda a Península Ibérica, está a atingir níveis alarmantes. As estatísticas consagram o mês de abril como o mais quente da História desde que há registos, em 1961. Na penúltima semana, uma vaga de calor mais própria dos meses de julho ou agosto trouxe temperaturas superiores a 40ºC na comarca de La Campiña, em Córdoba (Andaluzia).
A chuva reduziu-se exponencialmente. Barragens e albufeiras estão, em média, a menos de 50% da sua capacidade de armazenamento. A agricultura, sector básico da economia produtiva espanhola, está no mínimo, com uma redução drástica das colheitas num cenário de permanentes aumentos dos custos de produção. Salvo casos isolados, ainda não houve restrições severas ao consumo doméstico, mas as autoridades alertam para a necessidade imperiosa de poupar água.
As expectativas não são animadoras. O verão será especialmente seco, indica o prognóstico de Carlo Buontempo, diretor do Laboratório de Alterações Climáticas do programa Copérnico, adscrito à Agência Espacial Europeia. O perito admite que “a situação na Península Ibérica é dramática”. Só a remota perspetiva de um outono húmido, alimentada pela chegada do fenómeno meteorológico conhecido como “El Niño”, alenta a esperança de que algo mude.
As autoridades governamentais não deram ainda um sinal de alarme claro, mas vozes como a da vice-primeira-ministra e titular da pasta da Transição Ecológica e Desafio Demográfico, Teresa Ribera, reconhecem que estamos perto de “cenários preocupantes”. Na Catalunha, uma das bacias hidrográficas mais prejudicadas pela ausência de chuva — 125 dias seguidos sem precipitação substancial —, cerca de 250 municípios já impuseram a proibição de rega de zonas verdes, lavagem de ruas, enchimento de piscinas particulares e lavagem de automóveis.
Cientistas como Antonio Ruiz de Elvira, catedrático de Física Aplicada da Universidade de Alcalá de Henares (Madrid), afirmam que a seca está a passar de fenómeno cíclico a endémico. Segundo os seus cálculos sobre as tendências históricas, na Península devia chover seis meses por ano, entre novembro e abril, mas há dez anos observa-se uma redução clara deste calendário, para quatro meses, de dezembro a março.
A precipitação registada desde o início ano hidrológico, a 1 de outubro de 2022, até 15 de abril deste ano — que segundo os dados médios da década precedente seriam de de 411 litros por metro quadrado —, não chega a 337. Em 2022 choveu menos de 80% do que seria normal, mesmo numa década de seca continuada.
No final de abril, as reservas de água nas barragens somavam 28.400 hectómetros cúbicos, quando o normal seria armazenarem 37 mil. Algumas, como a de Sau, na comarca catalã de Osona (Barcelona), estão a 11% da capacidade. As bacias hidrográficas que afetam Portugal não são as que oferecem pior panorama. A do Tejo, por exemplo, está a 61% da capacidade; a do Douro, a 69%; a do Guadiana, a 34%.
Os efeitos da seca em sectores tão sensíveis como a agricultura já estão à vista. As organizações agrárias dão por perdida boa parte da colheita de cereais e graves prejuízos a cultivos lenhosos como o olival, a vinha ou o amendoal. A falta de água já afeta 60% da superfície agrícola espanhola, segundo a Coordenadora de Organizações de Agricultores e Ganadeiros (COAG).
Num ano normal, a comunidade autónoma de Castela e Leao, considerada um celeiro de Espanha, recolhe aproximadamente 20 milhões de toneladas de cereais; este ano calcula-se que não supere os 10 milhões, o que exigirá recorrer a importações e levará ao aumento dos preços. O mesmo sucede com o olival. Na campanha terminada há pouco nas bacias do Guadiana e do Guadalquivir, produziu-se 660 mil toneladas de azeite; na campanha anterior esse valor ultrapassou os 1,5 milhões de toneladas de azeite.
Decorre, em Espanha, vasta polémica sobre o regadio, sobrealimentada nas últimas semanas pela decisão do governo regional andaluz de legalizar um milhar de poços ilegais em áreas da reserva natural de Doñana — zonas húmidas protegidas ameaçadas de secar por completo —, para regar cultivos de frutos vermelhos nas províncias de Sevilha e Huelva.
De toda a água de barragens em Espanha, 80% vai para a produção agrícola em regime de regadio, com 20% da superfície arável útil, onde se produz 65% das colheitas vegetais espanholas. “Um hectare de regadio produz o mesmo que seis de sequeiro”, afirma Andrés del Campo, presidente da Federação Nacional de Comunidades de Regadores de Espanha (Fenacore), que defende que em Espanha a rega dos campos se faz de forma muito eficiente, com 77,7% do total modernizado (55% gota a gota e 22,7% por aspersão).
Certos subsectores são especialmente afetados, como o da criação de touros de lide, a que se dedicam cerca de 300 mil hectares do campo espanhol. “Sem pastos, sem cereais, sem forragem, enfrentamos a ruína”, afirma Victorino Martín, um dos criadores mais renomeados do mundo taurino.
“Todo o sul de Espanha está devastado”, lamenta Martín. Pede ajuda ao Governo “com quantias diretas por número de cabeças” e explica que o valor dos touros de lide caiu para preços de 2004, enquanto os custos de produção se multiplicaram por três. “Um touro come oito quilos de ração por dia e quatro a cinco de palha. Produzir um exemplar apto para uma corrida não desce dos 5500 euros”, detalha Martín. Os ganadeiros espanhóis levaram para o mercado local e para Portugal e França 8272 animais na última temporada taurina, além de 19 mil novilhos soltos nos festejos populares de todo o país.
As autoridades espanholas começam a tomar medidas para paliar estas graves circunstâncias. Uma das primeiras, adotada pelo Executivo sob proposta do ministro da Agricultura, Pesca e Alimentação, Luís Planas, é baixar 25% aos rendimentos tributáveis em sede de Imposto sobre o Rendimento, medida que garantirá a 800 mil agricultores e criadores de gado uma poupança global de 1807 milhões de euros.
Outra foi a distribuição de cerca de 300 milhões de euros para compensar a subida de preços dos fertilizantes, concedendo a 250 mil agricultores de todo o país uma subvenção de 20,82 por hectare de sequeiro e 52,06 euros em regadio.
Planas está em contacto próximo com a homóloga portuguesa Maria do Céu Antunes, para em conjunto conseguir uma espécie de “frente agrícola ibérica” que exerca pressão na UE para libertar fundos especiais para apoiar os agricultores dos dois países face ao presente drama. Este já fez com que em Espanha mais de 100 mil pessoas abandonassem a agricultura e a pecuária no último ano, segundo dados oficiais do Inquérito de População Ativa.
Um dos efeitos menos desejados, mas mais previsíveis desta situação de seca e´o aumento dos incêndios florestais. Este ano os valores já são preocupantes: entre janeiro e março arderam, em Espanha, 41.773 hectares. Em 2022 foram 310 mil, mais de 40% da área arrasada pelo fogo em toda a Europa.
Dado o cenário de precariedade acima descrito, chama a atenção o anúncio de projetos de alto consumo, como o que acaba de aprovar o governo regional de Castela La Mancha. Prevê a construção de um grande centro de dados em Talavera de la Reina, a 350 quilómetros da fronteira portuguesa, em plena bacia hidrográfica do Tejo.
O centro, propiedad da Meta, empresa dona das redes sociais Facebook, Instagram, WhatsApp, entre outras, consumirá 665 milhões de litros de água limpa por ano, 200 dos quais para refrigerar instalações que albergarão dexenas de milhares de computadores de alta prestação, responsáveis por elaborar os algoritmos utilizados nas aplicações mais avançadas do mundo digital e do Metaverso. Estes dados, extraídos da memória descritiva oficial do projeto, confirmam que o complexo industrial ocupará 180 hectares e moverá milhões de litros de águas residuais.
Entidades como a Ecologistas en Acción alertam para a inoportunidade da obra, segundo o diário “El País”. “El río Alberche, que abastece a zona, faz parte de um sistema deficitário de água que já está sob grande pressão. Incorporar novos consumos gera dúvidas sobre a capacidade real para sustentá-los”, explica um porta-voz da organização ambientalista.
A própria bacia do Tejo está em situação de pré-alerta. A Junta de Castela La Mancha já ativou um pacote de ajudas de 50 milhões de euros para agricultores e ganadeiros afetados pela seca na zona. As autoridades desta comunidade autónoma asseguram, não obstante, que o consumo humano está garantido.
A infraestrutura da Meta implica um investimento de cerca de 1000 milhões de euros. Dará emprego permanente a 250 pessoas altamente qualificadas.
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