Internacional

O “gesto político” do Kosovo ao pedir a adesão à União Europeia: tensão com a Sérvia é o principal obstáculo, mas não o único

O momento de assinatura do pedido
O momento de assinatura do pedido
Anadolu Agency

Ao longo dos últimos meses, a antiga tensão entre o Kosovo e a Sérvia agravou-se. Num momento de crise, o Kosovo formaliza o pedido de adesão à União Europeia. Ao Expresso, o historiador Bruno Cardoso Reis explica o contexto da região, onde há o risco de uma escalada, e o que esperar de um processo que seguramente será longo e complexo

O primeiro-ministro, a Presidente da República e o líder do Parlamento do Kosovo assinaram nesta quarta-feira o pedido de adesão à União Europeia, que deverá ser apresentado na quinta-feira. “A União Europeia (UE) é um lugar de paz, segurança, igualdade e prosperidade e é por isso que o lugar da República do Kosovo é nesta casa comum como um país que ama a paz”, defendeu o primeiro-ministro, Albin Kurti, ainda na terça-feira.

A decisão surge num momento em que a tensão com a vizinha Sérvia tem registado sinais de agravamento – e esta é uma questão decisiva para o processo. Processo esse que se pode esperar longo e difícil. O vice-primeiro-ministro do Kosovo responsável pela integração europeia, Besnik Bislimi, apontou 2030 como meta. Para Bruno Cardoso Reis, historiador e especialista em segurança internacional, esta data é “relativamente otimista”.

Desde logo porque cinco Estados-membros da UE – Espanha, Eslováquia, Chipre, Grécia e Roménia – não reconhecem a independência do Kosovo, declarada em fevereiro de 2008, assim como a Sérvia e a Bósnia, o que representa um “entrave”. “Não é lógico que países que não reconhecem um Estado vão votar a favor da adesão deste Estado à UE”, diz Bruno Cardoso Reis ao Expresso.

Alguns têm “razões de peso” para adotarem tal posição, como é o caso de Espanha – num país com movimentos separatistas “muito fortes”, trata-se de “não criar um precedente”. Enquanto outros, como o Chipre e a Grécia, têm “tradicionalmente relações mais próximas” com a Sérvia, explica o especialista. E, no contexto da relação entre o Kosovo e a Sérvia, o pedido de adesão ocorre “no pior momento possível”.

Relação com a Sérvia

Nos últimos dias, manifestantes sérvios no norte do Kosovo bloquearam várias estradas principais, depois de uma troca de tiros com as autoridades na sequência da detenção de um antigo polícia sérvio. Um veículo da EULEX, missão da UE no Kosovo, foi atingido por uma granada, sem causar feridos. Devido aos protestos, a Presidente do país, Vjosa Osmani, anunciou o adiamento das eleições na região norte, previstas para domingo, para abril do próximo ano.

“Temos uma daquelas crises que, periodicamente, acontecem sobre o estatuto da população sérvia no norte do Kosovo e sobre as relações entre o Kosovo e a Sérvia”, enquadra Bruno Cardoso Reis. Além da população sérvia, os habitantes do país são, maioritariamente, de origem albanesa. É aqui que se coloca uma das principais dificuldades: o direito à autodeterminação dos povos, enquanto populações diferentes coexistem nas mesmas zonas. “Isso cria um problema de uma enorme complexidade, que também explica porque é que há divisões mesmo no seio dos próprios países europeus.”

Um dos bloqueios de estradas
STRINGER

O clima que se vive, portanto, “não é propício” e não há indícios de que a normalização das relações entre os dois países esteja à vista, algo essencial para a integração europeia. Neste sentido, Bruno Cardoso Reis encara o pedido de adesão como um “gesto político” da liderança do Kosovo, de forma a procurar criar um “facto político” ou uma “narrativa positiva” num momento de crise.

Já a Sérvia tem “procurado jogar em vários tabuleiros”, com algumas aproximações à China e à Rússia, numa “postura de bastante ambiguidade”. No âmbito da invasão da Ucrânia, a Sérvia não aderiu às sanções impostas à Rússia, embora tenha condenado o conflito. “Provavelmente, na medida em que for possível, os diplomatas e os agentes secretos russos tentarão sempre criar problemas nesta região”, considera o também investigador do Centro de Estudos Internacionais.

A porta-voz do Ministério dos Negócios Estrangeiros da Rússia, Maria Zakharova, reiterou na segunda-feira o apoio do país à Sérvia.Continuaremos a ajudar Belgrado a defender os seus legítimos interesses nacionais em relação ao Kosovo”, garantiu. As tentativas de ingerência da Rússia na região não são novidade: em 2016 registou-se uma “tentativa de golpe com o envolvimento de agentes russos” quando Montenegro se preparava para aderir à NATO, recorda Bruno Cardoso Reis.

Adesão europeia

No que diz respeito aos Balcãs Ocidentais, quatro países já têm o estatuto de candidato à UE: Albânia, Montenegro, Macedónia do Norte e Sérvia. A Bósnia era até agora classificada como potencial candidata, mas na terça-feira os Estados-membros aprovaram a concessão do estatuto de país candidato à adesão.

Para Bruno Cardoso Reis, há uma “maior noção” no conjunto da UE de um “risco de que países que ficam de fora ou que estão na expectativa há muito tempo e não se concretiza, acabem por ser captados por potências rivais e cada vez mais ameaçadoras, como é o caso da Rússia ou mesmo da China”. Por outro lado, existe também um certo “cansaço” em relação aos alargamentos devido a “um balanço que se foi tornando mais negativo”.

“No início houve uma visão muito positiva do alargamento a leste, que tinha permitido consolidar a democracia e o desenvolvimento económico desses países e tornado a Europa mais segura, livre e próspera”, refere o especialista. Entretanto, devido à Hungria, mas também à Polónia, concluiu-se que surgiram “enormes problemas”. “Não garantiu uma democracia plena nesses países, houve processos de regressão de regimes cada vez mais iliberais ou mesmo com tiques autoritários e que, além disso, criam dificuldades ao funcionamento da UE, com bloqueios e vetos”, ilustra.

Agora, resta o Kosovo, país com menos de dois milhões de habitantes que, além da tensão no território, tem ainda questões por resolver relacionadas com a pobreza, a criminalidade organizada e a corrupção. As diferentes dificuldades que o país terá de ultrapassar para cumprir as exigências europeias são admitidas pelos próprios líderes políticos. Na assinatura do pedido, o primeiro-ministro disse estar em causa um “momento histórico”, mas que implica um “longo caminho”, com progressos dependentes do “compromisso com reformas profundas e progressistas”.

“Há sempre o risco de uma escalada nesta região”

Possível escalada

Desde 1999 que a NATO lidera uma operação de apoio à paz no Kosovo – a Força do Kosovo (KFOR). Como resposta aos acontecimentos dos últimos dias, a Sérvia indicou estar a ponderar pedir a esta força o envio de tropas do país para o norte do Kosovo, algo que os Estados Unidos já disseram rejeitar.

“O envio de tropas sérvias no quadro do KFOR é algo que não faz muito sentido. Não faz sentido ter uma força de interposição, mandatada pelas Nações Unidas para manter a paz na região, e depois ter nessa força tropas que, pelo menos para os kosovares, são vistas como sendo parte do problema e não da solução”, esclarece Bruno Cardoso Reis.

Soldados da missão KFOR da NATO durante um dos bloqueios rodoviários
ARMEND NIMANI

Sobre um possível conflito, nem Belgrado nem Pristina estarão interessados em que tal aconteça, mas “há sempre o risco de uma escalada nesta região”. “A questão são as dinâmicas locais, nomeadamente as comunidades sérvias na zona do norte do Kosovo. Há sempre algum risco”, salienta o especialista.

Neste contexto, a UE tem desempenhado um papel de mediação diplomática, além de ser a “principal fonte de auxílio externo” em termos de financiamento, tanto para o Kosovo como para a Sérvia. “O problema quando estamos a falar de conflitos deste tipo – identitários e potencialmente violentos ou armados – é que a UE tem uma grande limitação: não é muito credível como uma potência militar”, aponta Bruno Cardoso Reis.

É aqui que surge o “papel muito importante” dos Estados Unidos, que proporciona “não só a dimensão diplomática ou de incentivos económicos, mas também uma ameaça credível de uma intervenção mais musculada, que é algo que a UE tem dificuldade em fazer”. Quer a UE como os Estados Unidos e as Nações Unidas têm apelado ao fim dos bloqueios e à moderação, de forma a que as negociações entre Kosovo e Sérvia prossigam – o diálogo, patrocinado pela UE, decorre desde 2011.

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: scbaptista@impresa.pt

Comentários

Assine e junte-se ao novo fórum de comentários

Conheça a opinião de outros assinantes do Expresso e as respostas dos nossos jornalistas. Exclusivo para assinantes

Já é Assinante?
Comprou o Expresso?Insira o código presente na Revista E para se juntar ao debate
+ Vistas