"Mito da irmandade eslava" e "manipulação anti-Ocidente": sérvios acreditam que Putin os vai salvar
Estrada para Belgrado tem um painel publicitário de apoio a Vladimir Putin
Chris McGrath
Muitos sérvios, sobretudo no Kosovo do Norte, ainda alimentam ressentimentos em relação à NATO, pelo bombardeamento de 1999. Por outro lado - e consequentemente - encaram a Rússia de Vladimir Putin como um potencial salvador. Orhan Dragaš, analista sérvio em segurança e relações internacionais, diagnostica, no entanto: “Os interesses dos sérvios no Kosovo ou na Sérvia não existem; existem apenas os objetivos imperiais da Rússia de Putin, em que Kosovo, sérvios e Sérvia são apenas um elemento para atingir um fim"
Bandeiras russas penduradas nas ruas e o símbolo “Z” escrito nos carros do Kosovo do Norte não significam que os sérvios que ali vivem entrarão na guerra lado a lado com Moscovo. Escancaram, ainda assim, uma mensagem clara ao Ocidente, em particular, aos Estados Unidos da América. A região, de maioria étnica sérvia, está em contraciclo com o resto do país, onde os albaneses, que apoiam maioritariamente a Ucrânia, representam mais de 90% da população. Orhan Dragaš, um especialista sérvio em segurança e relações internacionais, tem observado o movimento no Kosovo do Norte, e conta ao Expresso que é sem surpresa que vê o (pouco ruidoso) apoio a Vladimir Putin.
Quando o filtro para (tres)ler a realidade é a mágoa em relação a um passado histórico, até a guerra na Ucrânia passa a ser aceitável. Muitos sérvios do Kosovo do Norte acreditam que o Ocidente e a aliança militar NATO foram responsáveis pelo desmantelamento da Jugoslávia, da qual o Kosovo fez parte até às guerras nos Balcãs nos anos 1990. O autor de "Duas Faces da Globalização - Verdade e Mentiras" ["Two Faces of Globalization - Truth and Deceptions"] lembra, no entanto, que, por diversas vezes, a Rússia mostrou ter falta de solidariedade em relação aos sérvios. Imediatamente depois do fim do bombardeamento da NATO e da entrada das tropas da aliança militar no Kosovo, em 1999 [quando Boris Yeltsin ainda estava no poder], um batalhão do exército russo foi transferido à pressa da Bósnia-Herzegovina para o Kosovo, para que Moscovo pudesse estabelecer um equilíbrio militar com as tropas da NATO. Geraram-se grandes tensões entre a NATO e a Rússia, e por pouco não eclodiu o conflito armado.
“Os sérvios do Kosovo receberam os soldados russos como libertadores, atirando-lhes flores e esperando que, com eles, viesse a sua proteção. Contudo, o batalhão retirou-se depois de apenas alguns dias, porque só então tomaram conhecimento de que cada país financia a própria missão no Kosovo, e a Rússia não queria - ou não tinha dinheiro para - essa operação. Na verdade, a Rússia nem sequer estava interessada nos sérvios do Kosovo, só estava interessada no equilíbrio de poder com a NATO, para o qual também não tinham dinheiro - hoje têm ainda menos.”
O sentimento anti-ocidental que os sérvios do Kosovo e da Sérvia abraçaram não nasceu do bombardeamento de 1999, tem uma tradição mais longa. Embora a Sérvia, quando integrava a antiga Jugoslávia, fosse fortemente pró-Ocidente e EUA e aberta a influências económicas e culturais tendo ainda o socialismo/comunismo como ideologia dominante, tudo mudou com a liderança de Slobodan Milosevic. “Em Belgrado, num festival de cinema do início dos anos 1970, os melhores de Hollywood daquela época - Jack Nicholson, Robert de Niro, Coppola, Roman Polanski - foram convidados. A companhia aérea da ex-Jugoslávia foi a primeira na Europa a comprar o modelo 737 mais vendido da Boeing. O nosso povo viajou livremente para o Ocidente, estudou e conseguiu emprego. Infelizmente, esse sentimento de proximidade com o Ocidente e com os seus valores foi alterado durante a Presidência de Slobodan Milosevic na década de 1990.” O antigo líder sérvio recebeu um grande apoio dos círculos conservadores russos, principalmente do exército. “A narrativa pró-Rússia que ele estabeleceu, infelizmente, ainda se encontra viva hoje, especialmente no Kosovo, onde os sérvios sempre apoiaram amplamente o regime agressivo de Milosevic e até mesmo os crimes cometidos contra os albaneses do Kosovo, sob o seu domínio.”
Na região, o sentimento 'anti-NATO' prevalece
ARMEND NIMANI
“Uma gota de sangue fraterno russo junta-se ao sangue sérvio"
Entre a Rússia e o Kosovo do Norte, não há uma relação de admiração, nem de desinteresse recíprocos. Na estrada principal que sai de Mitrovica para Belgrado - onde o posto de segurança é assumido por soldados norte-americanos -, um painel publicitário exclama que os sérvios não estão sozinhos na luta contra o Ocidente. Contam, em vez disso, com amigos proeminentes, cujas fotografias podem ser admiradas: Vladimir Putin, Aleksandar Vucic, Presidente da Sérvia, e o tenista sérvio Novak Djokovic. Os três são cidadãos honorários, mas Putin nunca apareceu para receber o título, apesar de os residentes o verem como um salvador, que continuará a proteger os “irmãos” eslavos de grupos “estranhos”, em particular, muçulmanos.
Mas “há muitos exemplos de que o apoio russo aos sérvios do Kosovo é apenas verbal e manipulador, de que não é real”, ainda que o mito da “irmandade histórica infelizmente prevaleça sobre a verdade”, garante o investigador Orhan Dragaš. Não é apenas entre os sérvios do Kosovo que a narrativa se impõe: Vladimir Putin reúne muito apoio em toda a Sérvia. “É o resultado de uma dupla manipulação, a que os sérvios estão expostos há muito tempo, mais de um século, e especialmente nos últimos 30 anos.” Em primeiro lugar, o analista em questões de segurança e relações internacionais quer dissecar a ideia de que sérvios e russos foram amigos ao longo da História, expondo as incongruências dessa crença. ”A Rússia tem uma rica coleção de decisões que foram direcionadas contra a Sérvia e o seu progresso. Durante as guerras nos Balcãs, na década de 1990, na ONU, a Rússia apoiou a introdução de sanções contra a Sérvia, por exemplo. A sensação de que sérvios e russos são grandes amigos históricos não tem origem em eventos reais, mas em vagos mitos em torno da chamada ‘irmandade eslava’."
“Uma gota de sangue fraterno russo junta-se ao sangue sérvio que flui há séculos”, pode ler-se na representação em bronze de um emblemático combatente russo. Os mitos vivem de símbolos, mas nem as estátuas em homenagem ao príncipe Lazar e Grigory Scherbina, um enviado russo à região que foi morto perto da cidade de Mitrovica por um militar muçulmano em 1903, bordam a linha definitiva que une Kosovo e Moscovo. “Quase não há empresas russas na Sérvia, as pessoas da Sérvia não viajam para a Rússia por turismo ou por motivos de ensino, poucas pessoas na Sérvia podem dizer que conheceram alguém da Rússia, ninguém conduz carros russos”, deslinda Orhan Dragaš.
Bandeiras russas penduradas em Mitrovica
Chris McGrath
Abrir um “precedente” na Sérvia é “útil” para a Rússia
Os albaneses do Kosovo seguem as políticas e diretrizes declaradas dos EUA, mas também da UE e da NATO, considerando-os os maiores responsáveis pelo facto de terem conseguido a independência do Kosovo. Não tendo uma política externa definida, o país também aplica a dos Estados Unidos. “O facto de os albaneses no Kosovo serem pró-americanos e os sérvios serem pró-russos é, na verdade, um reflexo de um antagonismo bilateral”, defende o também fundador do Instituto de Segurança Internacional, sedidado em Belgrado. O Presidente da Sérvia, Aleksander Vucic, rejeitou a imposição de sanções a Moscovo, apesar das atrocidades cometidas em território ucraniano, mas, durante anos, fez discursos acerca da marginalização dos sérvios. Ao mesmo tempo, tenta colocar o país no mapa da União Europeia.
Orhan Dragaš, que nasceu em Prizren, na Jugoslávia, e já terminou a escola primária em Dragash, no Sul do Kosovo, alerta, há vários anos, para o perigo de a Rússia encarar o Kosovo como um símbolo no seu “jogo” de conquistas, cuja principal aposta é a Ucrânia. “Os sérvios do Kosovo do Norte estão convencidos de que a Rússia protege os seus direitos no cenário mundial e de que se bate pela plena independência do Kosovo, sobretudo pela sua adesão à ONU. Mas a Rússia simplesmente não protege ninguém, além de si mesma e dos seus interesses.” O investigador acredita que o alegado apoio de Moscovo à manutenção do Kosovo dentro das suas fronteiras visa apenas estabelecer “um precedente que um dia será útil à Rússia, para justificar as suas ações agressivas e a tomada de territórios de outros países”. Foi o que aconteceu com a “anexação ilegal da Crimeia em 2014, e especialmente com o ataque à Ucrânia e a desagregação das suas regiões do leste”, acrescenta o autor. “Os interesses dos sérvios no Kosovo ou na Sérvia não existem; existem apenas os objetivos imperiais da Rússia de Putin, em que Kosovo, sérvios e Sérvia são apenas um elemento para atingir um fim.”
"O Kosovo é Sérvia e a Crimeia é Rússia", pode ler-se neste mural no Kosovo do Norte
ARMEND NIMANI
Tirar mais um coelho da cartola ou como organizar mais uma manobra de distração
Orhan Dragaš não tem dúvidas de que a Rússia tem “colaboradores, sobretudo criminosos, para as suas operações sujas, entre os sérvios locais do Kosovo”, podendo iniciar na região “um novo foco de crise, a fim de obter algum tipo de alívio no seu empreendimento mais importante, que é a guerra contra a Ucrânia”.
“A Rússia precisa que se provoque tensão ou mesmo um conflito no Kosovo, para desviar as atenções do Ocidente para os acontecimentos na Ucrânia, já que os países ocidentais tentarão resolver a nova crise nos Balcãs”, sustenta o investigador, depois de esclarecer que, há dois meses, Moscovo conduzia “uma operação muito intensa e perigosa, cujo objetivo era provocar um conflito armado entre os sérvios e albaneses locais no Kosovo do Norte, para atrair as forças de segurança sérvias para o local, que deveriam confrontar a missão da NATO no Kosovo”.
Para a empreitada, Moscovo desenvolveu uma campanha de desinformação, em que divulgava que um conflito armado tinha começado nas zonas sérvias no Kosovo, que havia vítimas e que a Sérvia estava a preparar-se para envolver militares. Algumas declarações do Presidente sérvio foram adulteradas, embora Aleksandar Vučić tenha tentado resolver a crise pacificamente.
“Um conflito militar na região seria uma dádiva para a Rússia num momento em que sofre derrotas na Ucrânia, porque abriria uma verdadeira frente armada para a NATO, na qual a Aliança teria de investir muitos recursos e energia”, analisa Orhan Dragaš.
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