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“O Brasil não fez nenhum lockdown. O Brasil fez medidas depois do leite derramado": as revelações do ex-ministro da Saúde de Bolsonaro

“O Brasil não fez nenhum lockdown. O Brasil fez medidas depois do leite derramado": as revelações do ex-ministro da Saúde de Bolsonaro
Senato TV

O primeiro ministro da Saúde do mandato de Jair Bolsonaro foi ouvido, na terça-feira, na Comissão Parlamentar de Inquérito à gestão da crise sanitária durante mais de sete horas. "Bolsonaro divergiu das orientações científicas, no isolamento e na cloroquina. Foi um depoimento importante na minha opinião para clarear exatamente o que ocorreu naquele momento inicial da pandemia”, concluiu o relator da CPI, o senador Renan Calheiros, que se tornou numa espécie de “insólito novo líder da oposição a Bolsonaro”

Se há uns tempos se engenhou a ideia de um voo de sete horas para lado nenhum, a viagem de Luiz Henrique Mandetta na Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) à gestão da pandemia de covid-19 foi diferente. Também durou sete horas (e 22 minutos), é certo, mas transportou toda a gente para o início da crise sanitária. Foi o primeiro ministro da Saúde de Jair Bolsonaro, esteve no cargo entre 1 de janeiro de 2019 e 16 de abril de 2020, até sair em divergência com o Presidente.

Era um dos depoimentos mais aguardados, ainda que o de Nelson Teich, o seu sucessor, que será ouvido esta quarta-feira, talvez o supere, pois falta saber porque abandonou aquele ministério menos de um mês depois de assumir a pasta.

Mandetta disse na terça-feira algumas das coisas que já dissera na entrevista ao Expresso, em outubro, depois de publicar o livro "Um paciente chamado Brasil: Os bastidores da luta contra o coronavírus”, no qual abordava os primeiros 90 dias da pandemia no país. Na altura, descreveu Bolsonaro como um “Presidente de impulso”, negacionista, que revela raiva pelo "carteiro" que leva as más notícias. E disse mais: "a aposta política [de Bolsonaro] sacrificou o esforço da Saúde". Mandetta, cujo ministério chegou a ter uma taxa de aprovação popular superior à do Presidente, saiu em choque com a figura maior do Governo Federal. O tema da cloroquina terá sido decisivo.

Ao longo das mais de sete horas, os temas levantados foram variados: do início da pandemia ao diálogo com os municípios, passando pelas vacinas e testagem em massa, assim como pelo isolamento social e a divergência com o Presidente, não faltando a rejeição de Bolsonaro em fazer uma campanha institucional contra a covid-19, a sua saída após fritura pública e as duras críticas ao ministro da Economia, Paulo Guedes, que levou os responsáveis da CPI a quererem ouvir aquele governante naquele espaço. O ex-ministro disse mais: Carlos Bolsonaro, vereador do Rio de Janeiro e filho do Presidente, estava presente nas reuniões de então e disse ainda que informou Bolsonaro, numa fase inicial, de que o país chegaria às 180 mil mortes até 31 de dezembro do ano passado. A realidade não estaria longe: 194.976 óbitos registados no último dia do ano.

“Cento e oitenta mil óbitos para quem tinha na época menos de 1000 era um número muito difícil de você fazer uma assertiva dessa”, comentou Mandetta na CPI, aqui citado pelo “G1”. “Eu acho que ali ficou dúvida, porque havia ex-secretários de Saúde, parlamentares, que falavam publicamente: 'Olha, essa doença não vai ter 2000 mortos, essa doença vai durar de quatro a seis semanas’. Havia uma construção também de pessoas que falavam absolutamente o contrário. Eu acho que naquele momento o Presidente entendeu que aquelas outras previsões poderiam ser mais apropriadas para aquele momento.”

ADRIANO MACHADO/REUTERS

O ex-ministro abordou também a questão da cloroquina e da intenção de Bolsonaro, que teria uma “assessoria paralela”, de mudar a bula daquele medicamento, passando a indicar que servia para covid-19. “A única coisa sobre cloroquina que o Ministério da Saúde fez, após consulta ao Conselho Federal de Medicina e aos conselheiros todos, era para o uso compassivo. O uso compassivo é uma utilização que se faz quando não há outro recurso terapêutico para os pacientes graves, em ambiente hospitalar”, disse, citado no mesmo artigo do “G1”. “A cloroquina é uma droga para uso indiscriminado, sem monitoramento, a margem de segurança dela é estreita. Ela não é aquela coisa assim: se bem não faz, mal também não faz. Como todo o medicamento, ela tem uma série de reações adversas, ela tem uma série de cuidados e a automedicação com cloroquina poderia ser muito perigosa para as pessoas.”

E acrescentou: “Eu estive dentro do Palácio do Planalto quando fui informado, após uma reunião, que era para eu subir para o terceiro andar porque tinha lá uma reunião com vários ministros e médicos que iam propor esse negócio de cloroquina, que eu nunca tinha conhecido. Quer dizer, ele tinha esse assessoramento paralelo. Nesse dia, havia sobre a mesa, por exemplo, um papel não-timbrado de um decreto presidencial para que fosse sugerido daquela reunião que se mudasse a bula da cloroquina na Anvisa, colocando na bula a indicação da cloroquina para coronavírus. E foi inclusive o próprio presidente da Anvisa, [Antônio] Barra Torres, que disse não”. A Anvisa é a Agência Nacional de Vigilância Sanitária.

Mandetta deu conta ainda de que escreveu uma carta para Bolsonaro, para defender medidas como o isolamento social. "Era muito constrangedor para um ministro da Saúde explicar que o ministro da Saúde estava indo por um caminho e o Presidente por outro", disse ainda, aqui citado pela “Folha de São Paulo”. Nesse mesmo pedaço de papel, a que aquele diário teve acesso e que remonta a 28 de março de 2020, Mandetta “recomendava expressamente” uma alteração do posicionamento do Presidente, pois assim poderia “gerar colapso do sistema de saúde e gravíssimas consequências à saúde da população".

Durante a audição de Mandetta deu-se um momento caricato. Ciro Nogueira, um dos senadores ‘governistas’ (afeto ao Governo Federal) - são quatro em 11 senadores da comissão -, fez a certa altura uma pergunta sobre uma alegada orientação do ex-ministro para que os que sentissem os primeiros sintomas evitassem ir para o hospital, receitando ainda "chá, canja de galinha e reza contra o novo coronavírus". Mandetta alertou-o então que já conhecia aquela pergunta, já que a recebera na véspera por engano do ministro das Comunicações, Fábio Faria.

"Senador Ciro Nogueira, ontem eu recebi essa pergunta, exatamente nessa íntegra, do ministro Fábio Faria, que ele inadvertidamente mandou para mim. Quando eu ia responder, ele apagou a mensagem. Então vou responder para o senhor, mas também para o meu amigo, que foi parlamentar comigo, ministro Fábio Faria", relata a “Folha”. Mandetta limitou-se a referir que se trata de uma “guerra de narrativa”.

O ex-ministro abordou ainda a questão do confinamento. “O Brasil não fez nenhum lockdown. O Brasil fez medidas depois do leite derramado. Depois que a gente falou ‘vai entrar em colapso o sistema de saúde: então fecha. Vai acabar o remédio: então fecha’. A gente foi sempre um passo atrás desse vírus em relação ao lockdown. Esse vírus não negocia nada com ninguém.”

Luiz Henrique Mandetta, que ainda não está arredado da corrida ao Planalto em 2022, escreveu ainda uma ode ao conhecimento. “A ciência não comete crimes. A ciência vai à luz dos factos, quer a gente goste do resultado ou não. A ciência parte da dúvida. Não existe verdade absoluta (...). Para isso existe a ciência, para isso é feita. Para tomar decisões baseadas nela. Para o bem, quer eu goste, quer eu não goste. Ela está ali, é límpida”, desabafou, preparando terreno para a questão do tratamento precoce.

Jair Bolsonaro e Luiz Henrique Mandetta
André Coelho/Getty Images

“Falar de tratamento naquele momento seria criar um kit ilusão. A pessoa poderia pensar: ‘eu posso ir, porque se eu tomar isso daqui...’ Eu perdi tantos amigos que tomavam esses medicamentos prévios. Eu tenho um amigo que não vacinou pai e mãe”.

"Bolsonaro divergiu das orientações científicas"

O relator da CPI, o senador Renan Calheiros, descreveu como “graves” as informações fornecidas por Mandetta. “O depoimento mostrou que houve aconselhamento paralelo na covid, adoção da cloroquina ao arrepio do Ministério [da Saúde], participação de Carlos Bolsonaro [vereador do Rio e filho do Presidente] em reuniões e alerta sobre 180 mil mortes", defendeu o homem que, depois de quase ser afastado do papel de relator, se tornou numa espécie de “insólito novo líder da oposição a Bolsonaro”, como lhe chama este artigo da versão brasileira do “El País”.

Calheiros acrescentou: "Bolsonaro divergiu das orientações científicas, no isolamento e na cloroquina. Foi um depoimento importante na minha opinião para clarear exatamente o que ocorreu naquele momento inicial da pandemia”.

Nelson Teich, o sucessor de Mandetta que não durou nem um mês, deveria ter sido ouvido na terça-feira, mas a audição vai decorrer esta quarta-feira. “O ponto central é entender o que a saída dele tem a ver com o protocolo da hidroxicloroquina", disse Randolfe Rodrigues, o vice-presidente da CPI, que pediu a instalação da mesma.

Marcelo Queiroga, o atual e quarto ministro da Saúde de Bolsonaro, será ouvido na quinta-feira, tal como Antônio Barra Torres, o presidente da Agência Nacional de Vigilância Sanitária. A sessão de Eduardo Pazuello, o sucessor de Teich e terceiro responsável pela pasta da Saúde no mandato de Bolsonaro, deveria acontecer esta quarta-feira, mas passou para dia 19, já que o general indicou que havia estado em contacto com pessoas que contraíram a doença, algo que levou à ironia do relator Renan Calheiros: “[Esta novidade representa] perda porque só vamos ouvi-lo no dia 19. E [representa] ganho porque parece que vai haver uma conversão. Ele quer depor remotamente, agora para evitar aglomeração”.

A atuação de Pazuello, responsável pela tutela aquando da tragédia em Manaus com a falta de oxigénio, levou o procurador-geral da República a pedir ao Supremo Tribunal Federal para investigar a conduta e eventual omissão do então ministro. Sobre o general, enquanto explicava que não apresentou nem apresentaria a demissão, Mandetta disse o seguinte: “Eu tinha que ficar com meu paciente [Brasil], baseado no que eu tivesse de melhor. Eu acho que o Presidente não gostou, não quis, achou por bem ter outro ministro, o Teich. Depois encontrou um ministro com quem parece que ele teve maior afinidade nas suas ações [Pazuello]”.

A CPI, que investiga ações e omissões do Governo Federal no combate à pandemia, deverá prolongar-se por 90 dias, sendo que o prazo pode ser alargado.

O Brasil aproxima-se das 15 milhões de infeções confirmadas por covid-19. Já morreram naquele país 411.588 pessoas, de acordo com a Universidade Johns Hopkins, que indica ainda que 6,68% da população brasileira já recebeu duas doses de vacina anticovid.

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