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Era (mesmo) o último dia para o acordo do ‘Brexit’ mas afinal não foi. O que se passou desta vez?

A pergunta de um manifestante europeísta ainda não teve resposta no processo de negociação entre o Reino Unido e os 27
A pergunta de um manifestante europeísta ainda não teve resposta no processo de negociação entre o Reino Unido e os 27
NEIL HALL/EPA

Passou-se o de sempre: o monstro de três cabeças (concorrência, pescas e disputa de conflitos) continua a impedir um acordo comercial entre o Reino Unido e a UE mas o cansaço começa a pesar, tal como a falta de paciência que nem de um lado nem de outro há esforço para esconder

Era (mesmo) o último dia para o acordo do ‘Brexit’ mas afinal não foi. O que se passou desta vez?

Ana França

Jornalista da secção Internacional

Já ninguém consegue contar, sem passar algumas horas nos motores de busca da internet, os prazos marcados e falhados pelas equipas de negociadores britânicas e europeias para um acordo comercial no pós-'Brexit’. Este domingo marca mais um desses limites que na verdade não o foram. Ainda não há acordo, acordou-se em continuar em discórdia e as conversações prosseguem nos próximos dias.

“Apesar da exaustão de quase um ano de negociações e apesar do facto de os prazos terem sido incumpridos uma e outra vez, acreditamos que, nesta fase, é responsável fazer um último esforço”, reagiu a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, num comunicado curto, assinado também pelo Governo britânico.

À Sky News, o primeiro-ministro britânico voltou a reiterar que é preciso preparação para a possibilidade de um acordo não vir a ser assinado, o que resultaria numa imposição imediata de tarifas no dia 1 de janeiro entre dezenas de outras normas que agora apenas se aplicam aos países fora da UE. “Ainda estamos bastante longe em determinadas matérias fundamentais. O Reino Unido não pode ficar prisioneiro da órbita regulatória europeia”, assumiu Johnson.

A famosa frase da ex-primeira ministra Theresa May, “Brexit means Brexit” (“Brexit quer dizer Brexit”), parece hoje ainda mais críptica do que na altura em foi proferida, em 2016, quando ainda havia a esperança, pelo menos pelo lado dos mais radicais apoiantes do ‘Brexit’, de que a saída fosse total, limpa, sem qualquer ligação, por mínima que fosse, ao bloco europeu. Porém, como muitos analistas, incluindo alguns próximos do Partido Conservador, têm argumentado desde então, os conservadores que fizeram campanha para as legislativas de 2019 recolheram uma votação estrondosa entre os britânicos porque prometeram o melhor de dois mundos: um acordo comercial simples e, ao mesmo tempo, o fim da ingerência da União Europeia nos assuntos internos britânicos.

Um ano volvido, parece óbvio que os britânicos terão de aceitar um certo grau de intromissão por parte, por exemplo, de alguns organismos regulatórios da UE em coisas como a qualidade dos produtos que entram no mercado único ou em eventuais futuros litígios comerciais.

Para Boris Johnson é difícil vender este cenário em casa já que toda a argumentação pró-'Brexit’, desenhada, aliás, por Dominic Cummings, a sumidade entre os mais dedicados ‘brexiteers’ despedido há semanas, assenta na recuperação de soberania - seja anulando a jurisdição do Tribunal Europeu de Justiça em terras britânicas, seja recuperando as milhas de pesca que considera só suas. Foi de facto um golpe de génio ter desenvolvido uma campanha inteira não em redor de erros específicos da UE mas desse conceito abstrato tão querido ao imaginário dos britânico que é a soberania.

Porém, nem uma nem outra exigências foram ainda aceites pelos congéneres europeus de Johnson. Podem vir a ser, mas já nada é certo e a atmosfera entre os líderes europeus não é a mais efusiva. Boris Johnson já assumiu que “há uma forte possibilidade, uma forte possibilidade mesmo” de não haver acordo. Ursula von der Leyen disse o mesmo aos líderes dos 27, durante a Cimeira Europeia de quinta e sexta-feira passadas, e nem sequer quis oferecer uma percentagem de probabilidade de acordo.

Jim Brunsten, correspondente em Bruxelas do Financial Times, esteve no podcast de política diário do jornal londrino na sexta-feira a explicar o que se passou nessa cimeira - e nada do que se passou foi ‘Brexit’. “Durante uma maratona de nove horas, os líderes europeus discutiram o problema das minas de carvão, metas ambientais com as quais a Polónia parece ter um problema, as relações com os vizinhos, a importância do estado de direito e várias outras coisas. O ‘Brexit’ foi um minúsculo ponto na agenda e consistiu apenas numa breve apresentação por parte de von der Leyen, sobre o jantar que tinha tido na noite anterior com Boris Johnson.

Brunsten apresentou ainda a sua própria análise dos factos: “É muito significativo o quão pouco se falou de ‘Brexit’, o tema foi deliberadamente colocado de lado. Nenhum dos líderes, à chegada, mencionou o assunto sequer. É um sinal de que, para já, estão satisfeitos em deixar tudo isto nas mãos das equipas de negociadores, ao contrário dos britânicos, sempre obcecados com cimeiras. O cenário de sonho dos britânicos são as conversas bilaterais para resolver as coisas”.

A agência Reuters escreveu mesmo que Johnson tentou marcar reuniões unilaterais com o Presidente francês, Emmanuel Macron, e com a chanceler alemã, Angela Merkel, mas ambos os encontros lhe foram negados. Em resposta veio um comunicado da equipa de negociações europeia a dizer que todas as decisões passam pela Comissão. Um balde de água bem fria para Boris Johnson, herdeiro de uma tradição negocial na qual o Reino Unido sempre teve um peso diferente do dos restantes membros da UE. Hoje já não é assim.

A decisão da Comissão Europeia de divulgar o plano de contingência para a possibilidade de uma saída sem acordo, no qual assume cenários semiapocalípticos como a interrupção das ligações aéreas e rodoviárias, não pode ser entendida senão como uma última força de pressão sobre os britânicos para que estes aceitem as condições para uma futura relação comercial. Também aqui não há certezas que a estratégia venha a resultar.

Os problemas permanecem os mesmos de sempre: as milhas de pesca, as regras para a concorrência justa e como (e em que instituição) resolver eventuais disputas comerciais futuras. No primeiro ponto, Londres exige autonomia para decidir as condições de acesso dos barcos europeus às suas águas, tal com o total da quantidade de pescado retirado dessas mesmas águas. Em contrapartida, aceitaria manter por três anos o acesso à zona entre as 12 e 200 milhas náuticas (mas com quantidades de pescado mais reduzidas), e impedir o acesso de embarcações europeias à zona entre as 6 e as 12 milhas náuticas – o que afetará sobretudo os franceses, que têm sido os que mais têm pressionado o principal negociador europeu, Michel Barnier, para que a saída do Reino Unido não seja prejudicial aos restantes países europeus.

Passados esses três anos, Londres quer negociações anuais - o que a UE recusa, oferecendo antes 10 anos de “período de graça”. Quando essa exigência surgiu, há duas semanas, na imprensa britânica foi classificada de “bizarra” e “ridícula” por membros da equipa negocial britânica que preferiram não dar os nomes ao “Telegraph”, fonte original dos adjetivos depois impressos quase em todo o lado. Mais uma vez, o que está aqui em causa é uma ideia de soberania que o controlo das águas territoriais dá aos britânicos. Na verdade, são precisamente os pescadores que mais se arriscam a sofrer com a eventualidade de um ‘no deal’ e, consequentemente, com a imposição de tarifas imediatas sobre o peixe que vendem à UE - cerca de 70% de todo o peixe vendido por pescadores britânicos.

A concorrência e as regras para a manter entre os mercados europeu e britânico é a questão mais decisiva para o futuro das relações entre a UE e o Reino Unido. Num resumo muito resumido, o Governo britânico luta pela tal liberdade (soberania) que foi prometida aos britânicos no referendo: o fim das imensas regras que a UE impõe às suas empresas, mas quer manter acesso à “parte boa” da UE, o mercado único, o que advém de uma crença antiga entre os britânicos de que todo o projeto europeu se devia basear unicamente numa aliança comercial, sem proximidade política.

Londres quer que fique escrito que nenhuma regra nova desenhada em Bruxelas virá a ser imposta aos britânicos no futuro, mas a UE diz que para haver confiança entre as duas partes, é preciso que o Reino Unido se comprometa a acompanhar se não todas pelo menos as mais significativas regulamentações que possam vir a ser impostas pela UE aos seus Estados-membros como, por exemplo, as que controlam a emissão de gases poluentes.

Para Bruxelas, essa é a condição indispensável para “nivelar o campo de jogo”, a tradução da frase mais escrita nos últimos meses nos jornais britânicos que já se tornou um conceito económico - o level playing field. Se estas condições não forem cumpridas mesmo depois de um acordo assinado, então é preciso um local onde dissolver as disputas - e aqui reside o terceiro problema. Quem serão, então, os árbitros destas disputas? Vai nascer um organismo novo ou levam-se os litígios à obesa Organização Mundial do Comércio que demora anos a processar queixas dos seus membros?

A confiança dos Estados-membros no que Londres pode fazer no futuro já sofreu graves danos quando o Governo de Johnson tentou violar os termos do acordo de saída da União assinado em outubro de 2019 ao aprovar a “Lei do Mercado Interno” que punha em causa as disposições do protocolo de saída da UE relativas à Irlanda do Norte.

A primeira coisa que é preciso esclarecer é que o acordo que quase toda a gente conhece como sendo o “do divórcio” entre o Reino Unido e a União Europeia não é uma lei britânica, tornou-se um tratado internacional quando foi aprovada pelo Reino Unido e pelos 27 restantes membros da União Europeia. O primeiro-ministro britânico já era então Boris Johnson. O artigo 4.º desse tratado estipula que o que está escrito nas suas linhas se sobrepõe, em termos legais, a qualquer lei “doméstica” britânica que se debruce sobre os assuntos abrangidos pelo tratado.

Em causa estava, sobretudo, a possível quebra do protocolo para a Irlanda do Norte, que visa evitar uma barreira física entre a Irlanda do Norte (parte do Reino Unido) e a República da Irlanda (parte da UE) enquanto estabelece, ao mesmo tempo, um controlo alfandegário no Mar da Irlanda que possa garantir, para os consumidores europeus, que tudo o que chega do Reino Unido cumpre as exigências de qualidade vigentes no mercado único.

Este problema já foi ultrapassado, com o Reino a aceitar retirar essas cláusulas da lei. Em troca, a UE garantiu que vai aligeirar as verificações da origem e qualidade dos produtos que tenham potencial de passar para a República da Irlanda e por isso para o mercado europeu, um esquema que recebeu o nome “comerciante de confiança”.

É preciso também referir que mesmo que um acordo venha a ser assinado, será apenas o mínimo dos mínimos necessários para que nos meses seguintes, então sim, as equipas se possam reunir com mais tempo para finalmente concordar em termos duradouros. Johnson tem vendido a ideia de que um acordo semelhante ao que existe entre a UE e a Austrália seria o ideal mas até o próprio ex-primeiro-ministro australiano, Malcolm Turnbull, considera o acordo “mau”. “As barreiras na agricultura são muito grandes e há muitas fricções na área dos serviços”, disse à BBC, avisando que se for este o tipo de acordo que o Reino Unido espera então os britânicos devem preparar-se para “uma grande desilusão”.

Não é como se nunca ninguém tivesse avisado o Governo britânico sobre os possíveis impactos de uma saída sem acordo - e mesmo uma saída com acordo pouco ambiciosa terá as suas consequências. A previsão do Governo aponta para uma quebra de 5,2% do PIB nos próximos 15 anos, isto com um acordo. Sem o acordo essa queda passa para os 8%.

O Instituto para a Responsabilidade Orçamental (OBR, na sigla em inglês) detalha: aumento do desemprego (1 ponto percentual em cenário de ‘no deal’), subida dos preços (mais 1,5 pontos percentuais), quebra das receitas fiscais e mais custos com segurança social e outras medidas de apoio social e laboral. Isto para não falar no tal cenário de pré-apocalipse, que, de resto, alguma imprensa britânica já está a adiantar, com fotografias de carrinhos de compras cheios de mantimentos para o caso de, por exemplo, virem a faltar produtos alimentares, um cenário que pode parecer extremado mas não é assim tanto quando pensamos nas mais que prováveis filas de camiões com destino ao Reino Unido que podem começar a formar-se nas fronteiras alfandegárias recém-impostas.

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: afranca@impresa.pt

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