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O que é que ainda está a bloquear as negociações para o acordo do Brexit?

Michel Barnier
Michel Barnier
PETER NICHOLLS/REUTERS

Há quase um ano que os negociadores europeus e britânicos dedicam a maioria do seu tempo à resolução de apenas dois temas: as quotas e milhas de pesca a serem divididas entre o Reino Unido e os agora 27 países da UE e as regras da concorrência equilibrada entre empresas britânicas e europeias

O que é que ainda está a bloquear as negociações para o acordo do Brexit?

Ana França

Jornalista da secção Internacional

Em quase um ano de reuniões, as equipas negociais não chegaram a um consenso. A meros dias do prazo limite para que exista um acordo passível de ser analisado pelo Parlamento Europeu, nem o Reino Unido nem a União Europeia parecem dispostos a ceder às exigências um do outro. As negociações estão temporariamente interrompidas, por razões classificadas por uma fonte da equipa britânica ao “Telegraph” como “ridículas”.

Este adjetivo, que denuncia o extremar de posições entre os dois lados nos últimos dias, prende-se com um problema que paira há anos sobre as relações entre o Reino Unido e a União Europeia: as pescas e as milhas em águas britânicas disponíveis aos barcos europeus. Há cerca de duas semanas, circulava a notícia que o Reino Unido se tinha oferecido para estabelecer um “período de transição”, ou seja, um espaço de tempo, possivelmente de cinco anos, durante o qual os barcos europeus ainda pudessem pescar em águas britânicas mas um pouco menos a cada ronda negocial, para se conseguirem adaptar, procurar outros mercados, modificar o modelo de negócio, escolher outros tipos de peixe para pescar entre outras coisas.

Os que mais sofressem com estas adaptações seriam elegíveis para uma compensação estatal. Ora, segundo diversas fontes que falaram aos jornais britânicos após a quebra das negociações, foi Emmanuel Macron que voltou a mergulhar as negociações no caos, ao exigir um período de transição de 10 anos no mínimo. França não vai aceitar qualquer acordo que seja “pouco proveitoso” para a UE, garantiu o chefe de Estado francês, com eleições presidenciais na mira (marcadas para abril de 2022). "No início da semana vimos Macron a tentar galvanizar outras capitais da UE, acusando-as de estar a ceder demasiado. Agora vemos Barnier a voltar com o processo a voltar para trás. Acho que podemos ligar os pontos”, disse uma outra fonte da equipa negocial britânica do “Telegraph”.

Sem precisar de anonimato, o ministro dos Assuntos Europeus de Macron esclareceu, se dúvidas restassem, a posição francesa: “Se o acordo não corresponder aos nossos interesses, não vamos votar a favor. Cada país tem direito de veto. A França, como todos os seus parceiros, tem meios de veto. Devemos levar a cabo a nossa própria avaliação, é apenas o processo normal e devemos isso isso ao povo francês, devemos isso aos nossos pescadores e a outros setores da economia”, disse Clément Beaune, citado pela imprensa internacional.

Numa declaração conjunta na noite de sexta-feira, o negociador-chefe do Reino Unido, David Frost, e Barnier confirmavam os medos: as negociações não iriam prosseguir, para já.

“Depois de uma semana de intensas negociações em Londres, os dois negociadores principais concordaram que as condições para um acordo não foram atendidas, devido a divergências significativas tanto na igualdade de condições concorrenciais e nas pesca”, escreveram ambos em comunicado.

A pesca é um setor assim tão importante?

A questão das milhas de pesca é uma das duas principais razões para o bloqueio das conversações (a outra é o estabelecimento de regras justas de concorrência, já lá vamos).

A caminho de Bruxelas este sábado de manhã, Barnier não levou consigo nenhum colega britânico para continuar as negociações, dizendo apenas aos jornalistas que se deslocaram à estação internacional de Saint Pancras: "Mantemos a calma, como sempre, e se ainda houver um caminho, veremos.” Fontes do Governo de Johnson disseram ao “Guardian” que a possibilidade de atingir um acordo está “no máximo, nos 50%”.

Vários analistas escreveram já sobre a relativa insignificância do problema das pescas, quando comparado com o descalabro económico que se podem abater sobre todos os restantes setores da indústria britânica se um acordo não for assinado, principalmente quando a pandemia já paralisou milhares de empresas. Como quase tudo desde que a campanha pelo ‘Brexit’, o simbolismo parece ultrapassar o pragmatismo.

Qualquer custo político que o Governo de Johnson possa vir a enfrentar por parte das comunidades piscatórias (até na Escócia, onde o ‘Brexit’ perdeu, as comunidades ligadas à pesca votaram a favor da saída por valores a rondar os 60%) esmorece perto dos danos que um ‘Brexit’ sem acordo traria não só à própria Escócia como a todo o Reino Unido. É preciso recordar que as eleições legislativas estão à porta no pedaço mais independentista do Reino Unido e a exigência de um novo referendo soa cada vez mais alto entre os escoceses que não querem ficar fora dos benefícios comerciais que advêm da sua ligação com o mercado único.

O custo económico é igualmente alto. O Instituto para a Responsabilidade Orçamental alertou na semana passada que um Brexit sem acordo poderia arrasar com dois pontos percentuais do PIB britânico e empurrar o desemprego para 8,3%. Tudo isso para proteger os direitos de uma indústria que contribui com 0,2% para esse mesmo PIB já em queda com a pandemia, em queda, isto contando com o processamento de pescado. Por outro lado, até mesmo as comunidades que dependem da pesca estão assustadas com a possibilidade de um fim abrupto - 70% do peixe que apanham é vendido à UE. Tarifas por cima dessas vendas é algo que ninguém deseja, nem em nome da preciosa soberania apregoada.

Quando as negociações entraram no último mês, o “Expresso” falou com vários analistas sobre os pontos de contenda que restam. O académico Ludo Sappa-Cohen, especialista em negociações comerciais entre a UE e o Reino Unido no grupo Best for Britain, disse na altura que “a questão das pescas tornou-se tão importante porque toda a campanha pelo ‘Brexit’ se focou na história, cultura e excecionalidade britânicas”. Pela mesma razão, “vender” o acordo, mesmo que este não traga benefícios económicos a curto prazo, pode revelar-se relativamente simples, em termos políticos. “Se os conservadores puderem dizer que a nação voltou a ser independente, que temos controlo sobre as nossas águas, que as leis da UE já não têm valor no nosso mar, e outras parangonas assim, isso para já será suficiente para classificarem o acordo com vitória perante o eleitorado interno.”

Esta análise é secundada por Matt Bevington, do grupo de académicos UK in a Changing Europe. Com um acrescento: crê que nunca houve um esforço da classe política para levar as pessoas a entender os vários lados da questão. “Aqui em casa, o Governo só precisa de uma manchete do tipo ‘Barcos britânicos vão pescar muito mais nas suas próprias águas’. Mas as consequências desta simplificação do debate são claras: tudo foi sempre preto ou branco, ninguém se esforçou por aproximar os dois lados, ninguém quis construir terreno comum e acabámos polarizados em dois assuntos que não interessam assim tanto, são simbólicos”.

No entanto, fontes da UE rejeitaram as alegações de Downing Street de que a demanda por um período de transição de 10 anos para a introdução de mudanças nas frotas pesqueiras europeias era o grande obstáculo para um acordo. “O Reino Unido quer uma transição curta, nós pedimos uma muito mais longa. Existe um meio-termo”, disse ao “Guardian” uma fonte próxima das negociações.

O equilíbrio na concorrência

As dificuldades mais significativas estão relacionadas com a necessidade de a UE ter garantias de que o Reino Unido não irá ser capaz de distorcer as leis da concorrência através de subsídios estatais ou cortando nas proteções ambientais, laborais e sociais de modo a tornar mais baratos os produtos que coloca no mercado europeu. Este é o capítulo chamado “level playing field”, a maior dor de cabeça dos negociadores.

Esse equilíbrio que a UE exige não está a ser bem aceite em Londres, já que o Governo britânico não quer ter de pedir autorização aos europeus de cada vez que precisar de salvar uma empresa. Ainda mais quando Bruxelas tem a intenção de isentar todo o financiamento da UE das futuras regras de auxílio estatal, o que os britânicos veem como uma injustiça: negar-lhes a eles algo que os países europeus podem fazer.

A questão da ajuda estatal prende-se com outra notícia que tem ocupado a imprensa britânica: a demissão de Dominic Cummings, ex-conselheiro do primeiro-ministro britânico e arquiteto de toda a ideologia anti-elites que os conservadores semearam para colherem vitória nas legislativas. Era ele, no Governo, quem mais defendia a possibilidade de o Tesouro britânico ajudar sectores, principalmente o da tecnologia.

“Cummings sempre viu o Reino Unido como um sítio ideal para criar uma espécie de Silicon Valley, como existe na Califórnia. Isso exige apoios do Estado, por que sempre lutou muito. Daí que não queira a UE a restringir estes apoios. Por outro lado, a possibilidade de ajuda pública às empresas foi a rede narrativa que os apoiantes do ‘Brexit’ encontraram para convencer as pessoas de que o Governo poderia apoiá-las caso a economia viesse a sofrer com a saída”, explicou ao “Expresso” James Kane.

Londres quer que a legislação que fará do acordo lei passe pelas duas casas do parlamento (Comuns e Lordes) antes do Natal. Os funcionários do Governo reconhecem que podem ter que pedir aos parlamentares que permaneçam em trabalho até 23 de dezembro se o acordo só for concluído no início da próxima semana. Na sexta-feira, o presidente do Conselho Europeu, Charles Michel, prometeu aos Estados-membros que teriam tempo suficiente para examinar quaisquer termos acordados entre as equipas de negociação.

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: afranca@impresa.pt

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