A Ilha da Culatra fica na Ria Formosa, mais ou menos entre Faro e Olhão, no Algarve. Aliás, pertence às freguesias da Sé e São Pedro, em Faro, mas a capitania é do porto de Olhão, ou seja, é daqui que há mais frequência de barcos e é aqui que os pescadores e viveiristas da ilha vêm vender o peixe e marisco. A viagem demora uns tranquilos 30 minutos e à chegada dá logo para sentir o sossego, mesmo quando, no verão, o barco chega com turistas para passar o dia ou uma temporada. Ao contrário do que se passa no resto do Algarve, a Culatra não vive, de todo, do turismo. Vive da pesca e dos viveiros de amêijoa e ostra e tem orgulho nisso, aliás, têm sido os moradores a zelar para que assim se mantenha. “A identidade da Culatra é muito importante para nós. Não queremos que seja uma aldeia para turistas”, conta Rui Conceição, 62 anos, pescador e fundador de duas das principais associações da Ilha.
A força dos moradores
A Ilha da Culatra já conta com 200 anos de história, mas foi só no final dos anos 1980 que se deram os primeiros passos para deixar de ser uma “aldeia” de casas ilegais, sem esgotos, sem água potável, sem eletricidade e sem passeios, só areia e terra. Tudo começou em 1987, quando o governo criou o Parque Natural da Ria Formosa e quis demolir todas as construções. “Esqueceram-se que moravam aqui pessoas”, lembra Daniel Santos, 66 anos, um dos fundadores da Associação dos Moradores da Ilha da Culatra (AMIC) e da Associação da Nossa Senhora dos Navegantes. Consternada, a população bloqueou as eleições legislativas desse ano e decidiu criar a AMIC, com o objetivo de “melhorar a vida dos moradores”. “Estávamos aqui jogados sem nada”, conta Sílvia Padinha, 56 anos, e atual presidente da Associação. As demolições foram travadas, mas começou e verdadeira e incansável luta por melhores condições de vida.
Em 1991 chegou a eletricidade. Os esgotos e a água potável chegaram em 2010 e “foi só porque já tínhamos um problema de saúde pública com os poços contaminados”, conta Sílvia. Já em 2018 conseguiram, “finalmente”, que o governo reconhecesse que os moradores eram donos das suas casas, um título que é válido por 30 anos e que obriga a que as casas não possam ser vendidas, apenas deixadas aos descendentes. Desta forma, evita-se a especulação imobiliária e garante-se que a ilha continua a ser habitada, porque os moradores não podem vender a pessoas de fora que apenas queiram alugar a turistas. “Se as pessoas vendem as casas, deixam de morar aqui, deixam de haver crianças, depois fecha-se a escola, quem ainda cá está tem de sair e qualquer dia não mora aqui ninguém”, explica Sílvia. “Primeiro queremos ter uma Culatra boa para viver e para trabalhar e depois boa para passear”.
“Sou do tempo em que as casas eram de madeira e estudava à luz do candeeiro a petróleo e que os barcos eram à vela e a remos e não a motor como hoje. Quando chegou a eletricidade foi a maior festa de sempre. E algum dia eu esperava ver aqui água canalizada e esgotos? Mas concretizou-se e fomos nós, os moradores, que fizemos acontecer”, diz Daniel Santos. E só faz isto quem se sente feliz no sítio onde vive. “Gosto de viver numa comunidade onde todos se acarinham. Temos o vizinho do lado que nos ajuda e as portas sempre abertas. É um sítio feliz para se viver”, repara Cecília Mendonça, 70 anos, enfermeira reformada mas que ainda “faz de tudo”, incluindo “dar abraços”.
Proteger a produção de ostras
A garra destes moradores e tudo o que já conquistaram é reconhecida noutras zonas do Algarve que dizem que a AMIC funciona como uma câmara ou junta de freguesia. Por exemplo, estão atentos a todos os concursos de fundos europeus, lutam para mudar a legislação, vão buscar o correio a Olhão e fazem a contabilidade dos pescadores.
Por isso, depois de conseguirem as infraestruturas básicas de vida, os 750 a 800 moradores da Culatra focaram-se na melhoria das condições de trabalho. Arranjaram fundos para fazer um porto de abrigo onde se juntam todos os barcos de pesca que antes estavam espalhados pela Ria; e arranjaram um tractor para puxar as redes que antes eram puxadas pela força dos braços.
Além disso, têm lutado para manter a produção de ostra em mãos nacionais em vez de nas mãos dos franceses, um dos maiores produtores do mundo. “Em termos legais não há nada que os impeça de vir para aqui, não há limites de capacidade de produção. Se não estivéssemos atentos, os viveiros já eram todos deles”, diz Sílvia. Por isso, têm estado a motivar os jovens da Ilha que queriam trabalhar no mar a optar pela produção de ostra. “Ajudamos a montar o negócio e agora temos uns 15 jovens a trabalhar com ostras e a vender aos franceses em vez de serem os franceses a produzir”, explica.
Mas esta luta não é só para manter a riqueza na Culatra e em Portugal, é também por questões ambientais. “Os franceses vêm com ideias megalómanas que podem estragar o ambiente”, repara Daniel. E se há coisa que os moradores da Culatra querem é preservar o ambiente. Por exemplo, as crianças do ATL fizeram sacos do lixo a partir de redes de pesca velhas que depois colocaram na Ilha e nos barcos para os pescadores colocarem o seu lixo. Consequentemente, sensibilizaram os pescadores a recolher o lixo que encontrassem na água e a trazê-lo para terra para deitar fora nos locais apropriados. E nas festas do União Clube Culatrense, aderiram ao copo único para reduzir o desperdício de plástico.
O Culatra 2030
Com o direito recém adquirido de serem proprietários das suas casas, “vem o dever de proteger o meio ambiente”, diz Sílvia, e o grande objetivo “é que a Culatra seja 100% renovável e que fique mais limpa e cuidada”, acrescenta Rui Conceição, outro dos fundadores da AMIC e da Associação da Nossa Senhora dos Navegantes. Foi, por isso, que surgiu o Culatra 2030, um programa apoiado pela Universidade do Algarve que já tem projetos em curso, como “limpar, recuperar e colocar painéis solares nos telhados das casas de arrumos dos pescadores”, diz Rui; ou instalar painéis solares por toda a Ilha, mas apenas em edifícios existentes, para não prejudicar o ambiente, explica Sílvia. Desta forma, a Culatra será independente energeticamente, produzindo energia renovável numa cooperativa que foi criada para esse efeito e a quem depois os moradores pagam a conta.
Para já, concorreram a fundos europeus e instalaram painéis solares no topo de uma estrutura do porto de abrigo, que alimenta a arca frigorífica onde guardam o peixe quando a lota de Olhão esta fechada e que alimenta também o recém adquirido barco solar, onde os pescadores e viveiristas se juntam para transportar a apanha e, dessa forma, poupar combustível. “Aqui metemos a gasolina no barco como vocês metem no carro”, diz Hugo Padinha, 27 anos, um dos poucos jovens que preferiu a pesca aos viveiros de ostra. E o combustível está caro, nota. “Antes eram 20 euros para ir ao mar e agora são uns 60”, acrescenta Alexandre, 54 anos, enquanto limpava as redes da pesca da manhã. Outros projetos deste Culatra 2030 incluem ter uma máquina para derreter o plástico e reaproveitá-lo, triturar as cascas das ostras para fazer compostagem ou usar como brita ou adubo e ainda apostar na dessalinização da água do mar.
O centro social e o clube de futebol
Em 1993, Daniel Santos e Rui Conceição fundaram a Associação da Nossa Senhora dos Navegantes, uma organização de cariz social que tinha como objetivo apoiar crianças e idosos. “Uma professora dizia-me que os miúdos chegavam à escola primária mal preparados e depois a segurança social veio cá e disse que queria fazer um centro social e que eu fosse o presidente. Aceitei por amor à Culatra e às pessoas”, conta Rui Conceição que entretanto passou a pasta a Daniel Santos para se poder dedicar à Associação dos Moradores. O local escolhido fica a poucos metros da escola, num edifício que serviu de salva vidas e de escola primária até aos anos 1970, mesmo junto ao início do caminho para a praia de mar. Hoje, dá emprego a 19 pessoas da Ilha que se ocupam de um ATL e de uma creche, “que este ano estão com lista de espera”, diz Daniel, e dá apoio domiciliário a idosos. Entretanto foi pedida autorização à Agência Portuguesa do Ambiente (APA) para construir um centro de dia para idosos, “porque a população está a ficar envelhecida e com o pandemia aumentaram os problemas psicológicos”, repara. Também aqui, apesar de serem uma instituição de apoio social e receberem apenas ajuda da parte da Segurança Social, conseguiram colocar painéis solares na cobertura e têm um pequeno carro elétrico para distribuir a comida. Além disso, em breve vão ter um triciclo elétrico para as ruas mais estreitas.
Painéis solares é algo que o União Clube Culatrense também vai ter em breve. Fizeram uma candidatura e conseguiram fundos, conta Nélia Sousa, 42 anos, vice-presidente que aproveitou as férias para se dedicar um pouco mais ao clube uma vez que trabalha em Olhão e, só aos fins de semana, é que está na Culatra. Tal como todos os elementos da Associação de Moradores e como o presidente da Associação da Nossa Senhora dos Navegantes, também este cargo no União Clube é voluntário, ou seja, não remunerado. É por amor à camisola, à ilha e às pessoas, dizem todos, sem excepção. O Clube foi fundado pelo seu pai e por Daniel Santos, em 1974, e apesar de não terem um campo próprio e treinarem em Olhão, este ano chegaram à primeira fase da Taça de Portugal. Diz Nélia que isto só é possível “com dedicação e com o apoio dos moradores” que aderem às festas que o Clube organiza todos os sábados de verão para angariar fundos e aos almoços e passeios nos dias de jogo. “Há aqui uma solidariedade como há em poucos sítios e tudo em prol da comunidade. Mesmo havendo pouco dinheiro, todos ajudam”, conclui Daniel.
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