A viagem pelos bairros felizes de Portugal chegou ao Alentejo, à freguesia de Canaviais, situado a cerca de cinco quilómetros de Évora, mas que “mais parece uma aldeia”. Não tanto pelo sossego que ali se encontra, mas mais porque “aqui as pessoas ainda estabelecem ligações e ajudam-se muito umas às outras”, diz Alexandra Caravela, 40 anos, coordenadora do centro de dia para idosos, uma das principais instituições do bairro. Mariana Fialho, 68 anos, sabe-o bem. Nascida, criada e moradora nos Canaviais, quando o marido morreu, já lá vão sete anos, fechou-se em casa, mas depressa a incentivaram a integrar a comissão de festas e o grupo de Cantares da Casa do Povo. “Foi a dona Ana [Pedrosa] que me puxou para aqui e foi como ganhar uma alma nova. O melhor dos Canaviais é esta camaradagem”, conta. E mesmo os novos moradores sentem isso. São atraídos pelo sossego do bairro, mas conquistados - e contagiados - pelo espírito de comunidade.
Envolvimento voluntário
A primeira vez que Nuno Henriques, 48 anos, veio aos Canaviais foi em 1993, quando estava a estudar na Faculdade de Évora. “Vim à festa de Carnaval aqui na Casa do Povo com uma amiga que era daqui do bairro e foi das noites mais divertidas de sempre”, conta. Na altura, não lhe passou pela cabeça que iria trocar Santarém, onde nasceu, por Évora; que iria viver nos Canaviais com a mulher, ter e criar ali os três filhos; e que, 20 anos depois de se mudar, seria presidente da Casa do Povo e estaria a organizar as muitas atividades pedagógicas e festas que ali se realizam. “Uma noite fui deitar o lixo e a Ana [Pedrosa] perguntou-me se queria fazer parte da direção. Primeiro disse que não, mas depois disse sim e quando ela deixou a presidência substituí-a, em janeiro de 2021”, conta. Ana Pedrosa, que foi presidente da Casa do Povo durante 11 anos e a grande mentora de todas as alterações que ali existiram recentemente, viu em Nuno Henriques a capacidade de iniciativa e energia que é comum aos canavienses e a todas as organizações do bairro. “Por exemplo, aqui no Grupo Desportivo há um envolvimento enorme dos pais na angariação de fundos para irem jogar a Espanha”, conta Manuel Henriques, 57 anos, gerente do bar e do restaurante do Grupo.
Um envolvimento que é totalmente voluntário, mesmo da parte dos presidentes das organizações, que fazem este trabalho nas duas horas livres. É assim com Nuno Henriques, que trabalha na Associação De Criadores Bovinos Mertolengos; com Manuel Caroço, um distribuidor de medicamentos de 58 anos que faz 600 quilómetros por dia mas que arranja sempre tempo para passar na associação. “Se não vou ao salão, perguntam logo por mim”, diz. Ou ainda com Bernarda Cota, enfermeira que trabalha na Administração Regional de Saúde do Alentejo, mas que também presidente da Junta de Freguesia de Canaviais. “Nas freguesias com menos de cinco mil habitantes, os órgãos sociais não ganham ordenado, apenas ajudas de custo”, explica.
A Casa do Povo
A génese da Casa do Povo de Canaviais começa em 1911 com a Sociedade da Pêra, uma associação e edifício criado e construído pelos trabalhadores agrícolas das quintas que ali havia como espaço para a comunidade e para organizar bailaricos. Mais tarde, mudou de nome para Sociedade Operária de Instrução e Recreio do Povo, mas durante o Estado Novo foi obrigada a encerrar e, já nos 40, passou a ser chamada de Casa do Povo de Évora, expropriando a sociedade de todos os seus bens. Mas, a 14 de março de 2000 foi decidido devolver todos os bens àquela associação e a passou então a chamar-se Casa do Povo de Canaviais, um espaço que manteve a tradição e que, hoje, é a maior montra do espírito de comunidade que tanto caracteriza o bairro. Além das festas que ali organizam, é também lá que fica o ATL e o pólo de Évora da Universidade Popular Túlio Espanca, para pessoas com mais de 55 anos. Foi também ali que nasceu, em setembro de 2010, o grupo de Cantares dos Canaviais que dão concertos em várias festas da região. “Lançámos o convite à população para criar um grupo de teatro e um grupo coral. Apareceram 20 pessoas e foi metade para cada lado e são todos moradores nos Canaviais. Nós fazemos as coisas e a população adere logo”, conta Ana Pedrosa, 70 anos que, apesar de já não ser presidente, mantém-se na direção da Casa do Povo e é figura presente em todas as iniciativas que organizam.
Apoio social
A Associação de Reformados, Pensionistas e Idosos de Canaviais gere um centro de dia e de apoio ao domicílio fundado em 1992 e, tal como a Casa do Povo, também foi criado por iniciativa dos moradores. “As pessoas dos Canaviais são muito bairristas e queriam ter um sítio para os reformados sem que tivessem de sair do bairro”, conta a coordenadora, Alexandra Caravela. “Vinham para aqui ao fim de semana fazer isto, por isso é que levou dois ou três anos a construir”, acrescenta Manuel Caroço. Hoje, dos 65 utentes de quem cuidam todos os dias da semana, já são mais os que vêm de fora dos Canaviais. “As pessoas procuram-nos porque somos como uma família”, conta Alexandra. Além disso, ao longo dos últimos anos foram feitas inúmeras melhorias no edifício, principalmente durante a pandemia. “Renovámos a cozinha e o salão, as casas de banho e as lavandarias são novas, instalamos 80 painéis solares no telhado e dos seis carros e carrinhas que temos, dois são elétricos”, explica Manuel Caroço.
Tudo isto foi feito com apoios de fundos europeus a que se candidatam, mas tal como na Casa do Povo, também aqui se organizam festas para angariar algum dinheiro. Até porque, diz Manuel, o que a Segurança Social paga por cada utente não chega. Assim, além de sardinhadas que se prolongam pela madrugada, organizam a Festa do Porco ou a Noite de Fados. Foi também Manuel que instigou à criação do Grupo de Acordeonistas. “Começou numa sardinhada. Convidei uns três ou quatro que sabia que tocavam para formar um grupo e apareceram 16 pessoas, alguns de fora. Agora fazemos ensaios à quinta-feira. Mas eu não toco ainda, só toca viola e cavaquinho”, conta.
A Associação de Reabilitação, Apoio e Solidariedade Social (ARASS) é outras das instituições do bairro que surgiu da boas relação entre os moradores, já há uns 30 anos. Segundo Ana Pedrosa, foi Eulália, a mãe de Sara, “que precisava de um sítio para a filha ficar e então reuniu fundos e fez este lar e esta associação”, exclusivamente para pessoas com deficiência. Hoje têm 30 utentes, 23 dos quais em regime residencial, e é presidido por Vítor Catrapona, um enfermeiro militar reformado de 56 anos que mora nos Canaviais há 53 anos e que também exerce esta função de forma voluntária.
Os ratinhos
Começou por ser conhecido como bairro do Espinheiro pela sua proximidade ao Convento do Espinheiro, hoje um hotel de cinco estrelas, mas mais tarde passou a chama-se Canaviais porque havia ali duas grandes quintas - a Quinta do Canavial de Fora e a Quinta do Canavial de Dentro - onde se criavam os animais e cultivavam os produtos que depois iam, de carroça, ser vendidos a Évora. Aliás, ainda hoje há vários vestígios dessas quintas, algumas abandonadas, mas onde subsistem as placas com os nomes e os grandes terrenos, agora secos. Foi para essas quintas que, no final do século XIX e início do século XX, vieram muitos homens e mulheres do norte do país para trabalhar nos campos. “Chamavam-lhes os ratinhos”, conta Manuel Caroço. E foram esses trabalhadores que foram construindo casas à volta das quintas, na altura clandestinamente, mas já na forma ordenada e estruturada em ruas paralelas e perpendiculares umas às outras que existe atualmente. Ainda pertenceu à jurisdição da Sé, em Évora, mas em 1985 foi elevada a freguesia.
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