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Viagem pelos ‘bairros felizes’ de Portugal. Capítulo 1: a Foz Velha

Durante os próximos seis meses, e a propósito da iniciativa Bairro Feliz do Pingo Doce, o Expresso vai andar pelo país, incluindo Madeira e Açores, à procura de bairros onde haja um espírito de comunidade e onde os seus moradores se sintam bem, apesar das dificuldades e problemas que lá possam existir. Porque não há bairros perfeitos, mas há bairros felizes

Viagem pelos ‘bairros felizes’ de Portugal. Capítulo 1: a Foz Velha

Ana Baptista

Jornalista

O primeiro capitulo desta viagem levou-nos à Foz Velha, um bairro que começou por ser uma aldeia, e que só no século XIX é que foi integrada na cidade do Porto. Ao longo do tempo foi-se alargando e deu origem ao bairro da Foz, onde o velho se mistura com o novo e, consequentemente, o barato com o caro. Por exemplo, a parte velha mantém esse desenho tradicional, de ruas estreitas e moradias baixas com rendas de €60, apesar de algumas das casas degradadas estarem a ser transformadas noutras mais modernas, mas geralmente bem integradas na estética tradicional. E na parte mais nova já há prédios e até casas de luxo com preços milionários. Aliás, segundo conta o presidente da junta da União de Freguesias de Lordelo do Ouro, Foz e Nevogilde, Tiago Mayan Gonçalves, já no século XIX, o popular e a alta sociedade se cruzavam na zona Foz, ou seja, as pequenas casas do interior do bairro misturavam-se com as moradias apalaçadas mais perto do mar onde os mais abastados passavam o verão. Ainda assim, o que nunca faltou foi o espírito de comunidade e o convívio entre vizinhos como, aliás, se pode ver pela idade das associações que ali resistem: O Orfeão tem 106; o Paraíso Spor Club tem 85; o minigolfe tem 49; a Academia de Danças e Cantares tem 43; o Futebol Clube da Foz tem 88 e a Banda Marcial tem 139 anos, fazendo dela a mais antiga do Porto.

O Paraíso

Há vários pequenos ‘bairros’ dentro do bairro da Foz Velha e o Paraíso é um deles. Poder-se-ia pensar que, por causa do nome, ficaria ao pé da praia, mas é das zonas mais afastadas do mar, a escassos metros do mercado da Foz e da Universidade Católica. Chama-se assim porque fica na Rua do Paraíso da Foz onde, por sua vez, fica o Paraíso Sport Club da Foz, um dos clubes desportivos da zona fundado em 1937. Além de organizar jogos de futebol para crianças, tem um restaurante, uma esplanada improvisada e uma comunidade de fiéis amigos e sócios. Até porque as quotas mensais só custam um euro, conta José Monteiro, de 55 anos. Está reformado desde março deste ano, mas antes disso já lá parava todos os dias. Também por lá encontrámos José Carvalho, mais conhecido por Caioca. Tem 63 anos e ainda trabalha, por conta própria, e não houve ninguém que ali passasse que não o cumprimentasse. Além disso, por causa da proximidade com a universidade, é um dos poisos preferidos dos estudantes, a qualquer hora do dia e, na altura da queima das fitas, também da noite.

Os trajes de papel de São Bartolomeu

Contado ninguém acredita. É preciso ver ao vivo e até tocar, com jeitinho, para perceber que aquele vestido e fato é mesmo feito de papel crepe, prensado e forrado, e que é mesmo para vestir e não apenas para enfeitar por cima da roupa de tecido. Aliás, tem de aguentar todo o cortejo em honra de São Bartolomeu, uma das festas religiosas mais importantes da Foz que percorre o bairro e termina, literalmente, no mar. O objetivo é que, quem quiser, termine o cortejo com um mergulho no mar, deixando os trajes desfazerem-se com a água. Tiago Mayan Gonçalves garantiu-nos que será um deles.

Clementina Delgado, a modista transmontana de 48 anos que já vive no Porto desde os anos da faculdade, foi a escolhida pela junta para conceber estes exuberantes trajes que parecem alta costura digna de uma cerimónia de entrega de prémios. Mas não está sozinha. No atelier improvisado na antiga junta de freguesia, entre o mercado e o cemitério da Foz, estão ainda mais três costureiros - Conceição, Beatriz e Miguel - que têm até meados de agosto para tirar as medidas a quem vai vestir os trajes e para os coser, com o cuidado de não rasgar o papel e de o reforçar de forma a que, quando vestidos, sejam confortáveis e não rasguem facilmente, explica Clementina. Miguel está atarefado a estender uma enorme folha de papel crepe verde em cima da mesa e a cortar e a montar o que serão os gigantes folhos de um vestido que tem como tema o mar. “Isto é mais difícil do que tecido, mas é muito interessante”, diz com um sorriso.

O mini-golfe

Fica no Jardim do Passeio Alegre, mesmo junto à foz do Douro, ou seja, tem vista para o rio e para o mar e, por isso mesmo, “é um dos clubes de minigolfe mais bonitos do país”, diz Tiago Mayan Gonçalves. Foi fundado em 1973, foi palco de campeonatos internacionais e é um ex-libris da Foz e do Porto. Às quatro da tarde de uma quarta-feira tinha turistas e moradores locais, alguns já reformados, mas também pais com os filhos. Também por lá estava António Costa e Silva, de “84 quase 85 anos”, mas com uma agilidade e energia de fazer inveja aos mais novos. Não há dia que não vá ao clube, não fosse ele um apaixonado e devoto pela modalidade. Já foi campeão várias vezes, ali e noutros pontos do país, e foi presidente da Federação Portuguesa de Minigolfe que ajudou a fundar. “Comecei a jogar quando isto abriu e entusiasmei-me”, conta. “Mas aqui o meu amigo Sebastião tem mais bolas que eu”, diz sorrindo para o amigo. De facto, são já mais de mil que Sebastião Campos, de 72 anos, tem na sua coleção em casa. Casa essa que agora fica em Gaia, mas que já foi na Foz, onde nasceu, e de onde se arrepende muito de ter saído. “Coisas da vida”, repara. “Mas aqui é o meu sonho, a minha paixão. Talvez por nascer aqui, por ter aqui as minhas amizades de criança, ou por ter uma ligação familiar muito grande. O Chalé Suisso [um quiosque/café no Jardim do Passeio Alegre] foi construído pelo meu tio-avô e a Farmácia Campos [a mais antiga do Porto] era da minha tia-avó”, conta. É por isso que se mantém ligado ao bairro e passa lá os dias como tesoureiro do minigolfe, outra das suas paixões.

O Orfeão

A associação recreativa Orfeão da Foz, que já soma 106 anos, é um dos melhores exemplos do associativismo e espírito de comunidade que ainda persiste na zona da Foz Velha. Fica ao fundo de uma das ruas estreitas da Foz Velha, muito perto do Jardim do Passeio dos Alegres, do rio e do mar, num edifício antigo com um pé direito alto, interiores de madeira e tetos ornados. Resquícios do primeiro casino do Porto que ali se instalou em finais do século XIX. É aqui que decorrem todas as atividades do Orfeão: os ensaios do grupo de Cantares Regionais, onde a atual presidente, Fernanda Chalupa, toca bombo; o grupo de teatro amador - onde “o mais novo tem 50 anos”, conta Álvaro Cardoso, outro membro da direção; as aulas de dança de salão da professora Paula Carneiro; a universidade sénior; os campeonatos de subbuteo; a escola de música; um curso de formação musical; ou a conceção dos trajes de papel para o cortejo de São Bartolomeu. E na cave, um bar e restaurante com palco e televisão é o ponto de encontro ao final do dia durante a semana e aos fins de semana, o sítio onde muitos moradores, da Foz e de outros bairros, se juntam para ver os jogos, beber umas cervejas, jogar às cartas ou participar nos jantares dançantes animados por Fernando Gomes, mais conhecido por Botafogo. “O meu receio é que deixem de haver pessoas que façam isto”, repara Álvaro.

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