Portugal à espera da mineração urbana

Resíduos. Apenas 30% dos equipamentos eletrónicos são atualmente recolhidos para reciclagem. Em cada casa de família, há uma minúscula “mina” à espera de ser explorada
Resíduos. Apenas 30% dos equipamentos eletrónicos são atualmente recolhidos para reciclagem. Em cada casa de família, há uma minúscula “mina” à espera de ser explorada
O que fazer com 100 mil toneladas de resíduos de equipamentos elétricos e eletrónicos (REEE)? As entidades de tratamento e recolha de gadgets e eletrodomésticos sabem como dar resposta ao volume anual de REEE, mas Portugal apenas consegue reciclar 30 mil toneladas anuais de REEE e, por isso, mantém-se aquém da meta de 65% fixada para a UE. Falta uma mudança de mentalidade do consumidor, mas a concorrência de “catadores” e sucatas ainda se faz sentir. E na 2ª conferência e-Waste, que se realizou esta semana em Lisboa, não faltou quem lembrasse que o problema tem impacto financeiro.
“Só com o aumento das recolhas é que poderemos aumentar os ecovalores”, lembrou Ricardo Neto, presidente da ERP Portugal, entidade dedicada à recolha de REEE, de pilhas e acumuladores, que organizou o evento e-Waste em parceria com a LG Portugal.
E recorda que a ERP Portugal é uma entidade sem fins lucrativos e considera que não faz sentido aumentar ecovalores, que são pagos pelos consumidores aquando da compra de novos equipamentos, porque o montante final haveria de superar o necessário para o nível de recolha de REEE alcançado na atualidade.
Os ecovalores são fixados tendo em conta o peso e a tipologia dos resíduos e funcionam como taxas que financiam o sistema de recolha e reciclagem de equipamentos elétricos e eletrónicos no país — ou que pelo menos fomentam a consciência ambiental. Em 2019, esse valor fixou-se num total de €91,8 milhões, que abrange todo o tipo de resíduos.
Os ecovalores são determinados pelas autoridades nacionais e esse ponto também merece reparo por parte das entidades que recolhem REEE. “Portugal é ainda o único país da UE que tem os ecovalores regulados”, lembrou o responsável da ERP Portugal.
O Regime Geral da Gestão de Resíduos (Unilex), que serve de referência às várias entidades especializadas na recolha e reciclagem de resíduos, centra atenções e reparos. Até porque o diploma também fixa requisitos e obrigações sobre fabricantes de eletrodomésticos e equipamentos eletrónicos no que toca às melhores práticas ambientais.
Ruy Gil Conde, diretor-geral da LG Portugal, defende que a marca sul-coreana tem vindo a fazer a parte que lhe compete. Na LG, há o objetivo de alcançar a neutralidade das emissões de carbono e garantir que 95% dos equipamentos vendidos são devidamente desmantelados e reciclados localmente até 2030. E também lembra que a marca tem vindo a trabalhar em medidas que fazem a diferença no dia a dia, como a redução de consumos de água nos diferentes eletrodomésticos que fabrica. “Queremos que os nossos produtos sejam amigos do ambiente”, reiterou Ruy Gil Conde. As boas intenções não chegam para dissipar números e tendências que confirmam que as marcas também poderiam fazer um esforço para, a par das políticas amigas da reciclagem, facilitar a reparação ou o reaproveitamento, que permitem dar nova vida aos equipamentos. “O nosso drama é que não sabemos reparar os equipamentos”, sublinha Fernando Leite, diretor-executivo do Serviço Intermunicipalizado de Gestão de Resíduos do Grande Porto (LIPOR), defendendo a necessidade de formar consumidores, ao mesmo tempo que aponta o dedo aos fabricantes que enveredam por designs que dificultam as reparações.
Ouro, cobre, estanho, chumbo e metais raros são o principal chamariz para “catadores” e sucatas — e possivelmente nem os consumidores têm noção de que mantêm em casa pequenas reservas destes minérios à espera de serem aproveitadas em telemóveis, computadores, câmaras ou tablets que deixaram de ser usados mas ganham novo valor à luz do novo conceito de mineração urbana (urban minning).
Um estudo recente da LIPOR e da Universidade do Porto apurou que 76% dos cidadãos portuenses mantêm em casa vários equipamentos que não usam. Em média, cada família portuense tem cinco destes aparelhos obsoletos guardados e sem uso. As estimativas revelam ainda que 60% destes equipamentos podiam ser reutilizados de alguma forma — e apenas 25% não têm reparação possível. A amostra recolhida na Invicta permite concluir que, possivelmente, os portugueses não estão muito inclinados a tirar partido nem das reparações nem da reciclagem de REEE.
Nuno Lacasta, presidente da Agência Portuguesa do Ambiente (APA), lembrou que, além da reciclagem e da reparação, há ainda a via do reaproveitamento, que pode ser promovida por decisões tomadas pelos consumidores no quotidiano, com a compra de equipamentos recondicionados, que “dão” nova vida a equipamentos que os proprietários iniciais já não pretendem usar.
“A recolher 30% (da meta estipulada para os REEE) não vamos lá”, dita o líder da APA. E considera que um equipamento esquecido no armário mais não é que uma matéria-prima fora do lugar. Em plena fase de reindustrialização pós-confinamentos, o desaproveitamento assume contornos geoestratégicos.
“Temos de criar uma política de retenção de matérias-primas na Europa”, alerta o presidente da APA.
O Serviço de Proteção da Natureza e Ambiente da GNR (SEPNA) recebeu, em 2020, 12 mil queixas relativas a casos relacionados com resíduos abandonados em espaços públicos. “A sociedade exige de nós uma segurança ambiental que nunca exigiu no passado”, referiu, durante a e-Waste, Ricardo Alves, chefe da Divisão Técnica Ambiental do SEPNA. O tenente-coronel da GNR lembra que boa parte da mudança de atitude provém das novas gerações, que muitas vezes interpelam os pais quando têm atitudes pouco ecológicas. Em paralelo com esta tendência, irrompeu uma outra em sentido contrário, que foi exponenciada pelos confinamentos. “As pessoas recorrem ao comércio eletrónico mas não conhecem direitos e deveres e não sabem das responsabilidades de quem vende os equipamentos (relativamente à recolha de equipamentos antigos)”, refere Ricardo Alves.
É nos equipamentos de menor porte que se assiste a uma maior taxa de desperdício de resíduos. Rosa Monforte, diretora-geral da ERP Portugal, recorda que os equipamentos de maior porte têm índices superiores de entrega para reciclagem devido à conveniência que representam para os consumidores em termos de espaço no lar e também ao facto de todos os retalhistas com mais de 400 metros quadrados de espaço comercial estarem obrigados a receber estes equipamentos para os encaminharem para a reciclagem — mesmo que não tenham sido vendidos por esses estabelecimentos. Apesar destas leis que fomentam o aproveitamento de REEE, os índices de recolha de equipamentos não crescem o desejado, “porque os REEE não chegam aos lugares a que deveriam chegar”, lembra Rosa Monforte.
O mercado mundial dos equipamentos elétricos e eletrónicos tem um valor estimado de €855 mil milhões — e tudo leva a crer que vai crescer com a digitalização e a robotização. Por ano, são produzidas 54 mil milhões de toneladas de REEE, mas apenas 17% são recicladas ou reaproveitadas, estima a Plataforma para a Aceleração da Economia Circular (PACE, na sigla em inglês). O que significa que, por ano, há €50 mil milhões de matérias-primas que se perdem. “Se olharmos para o consumo sustentável, verificamos que estamos formatados para comprar uma coisa, usá-la e deitá-la fora… Se fizermos isto no mundo inteiro, não há matérias-primas para esta gente toda”, alerta Nuno Lacasta, presidente da Agência Portuguesa do Ambiente (APA).
Textos originalmente publicados no Expresso de 30 de outubro de 2021
Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: senecahugo@gmail.com