Falta de informação, acesso e serviços encerrados. Estas são as queixas dos doentes do SNS
Plano de Recuperação e Resiliência, aprovado na quarta-feira, prevê investimento de €1.383 milhões no SNS até 2026
José Fernandes
Projetos Expresso. Na semana em que o Plano de Recuperação e Resiliência foi aprovado por Bruxelas, falámos com quem recorre à prestação de cuidados médicos regularmente para perceber quais são as dificuldades que sentem no dia a dia. À sexta-feira, o ‘Mais Saúde, Mais Europa’ faz um resumo dos momentos que marcaram a agenda, numa iniciativa do Expresso com apoio da Apifarma
Francisco de Almeida Fernandes
De acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS), o cancro é a segunda causa de morte em todo o mundo, sendo responsável por uma em cada seis mortes registadas. Até 2040, espera-se que o número de casos diagnosticados atinja os 29,5 milhões por ano, o equivalente a um aumento em torno dos 10 milhões quando comparado com os valores atuais. O retrato é negro, mas ajuda a compreender o impacto que a pausa assistencial no Serviço Nacional de Saúde (SNS), em consequência da pandemia, pode ter em patologias tão sensíveis como as ligadas à oncologia. “Esta paragem está a ser completamente dramática”, lamenta Cristina Nogueira ao Expresso. A advogada conhece bem a ansiedade de quem aguarda um exame complementar de diagnóstico para descobrir se tem, ou não, algum tipo de cancro. “Preocupa-me muito esta questão de estar tudo parado”, diz.
A ficha clínica de Cristina dá-lhe autoridade para analisar o sistema de saúde e apontar áreas de melhoria com base numa densa experiência de utilização – foi diagnosticada, em 2016, com uma das mais raras variações de cancro da mama e mais tarde com uma metástase no cérebro, condições que a obrigaram a ser submetida a mais de 150 intervenções médicas. “Tive muita sorte”, conta ao telefone com um sorriso na voz. A sorte que refere é por viver a cerca de 50 quilómetros do Porto, onde se encontra o IPO. Pela proximidade, o seu caso foi sempre seguido no instituto portuense, que, aponta, foi rápido, eficiente e eficaz ao longo de toda a sua jornada. “Esta é a vantagem de estar no IPO do Porto, imagine se fosse qualquer outro hospital”. O destino de Virgínia Ferrão, de 79 anos, não foi igual, tal como explica a filha ao Expresso. “Fomos ao IPO do Porto depois da minha mãe ter sido diagnosticada com cancro no rim, mas havia quatro ou cinco pessoas à frente e disseram-me que podia demorar alguns meses até à cirurgia”, recorda Susana Neiva. A solução, forçada pelo medo e pelas dores constantes, foi realizar a intervenção cirúrgica no sector privado. “Pagámos 12 mil euros”, esclarece. Neste momento, e depois do primeiro diagnóstico em janeiro, Susana revela que existem suspeitas de que o cancro se tenha espalhado para outras zonas do corpo e queixa-se da não resolução do problema. “Estamos à espera, não sei o que fazer”.
“Há doentes com cirurgias canceladas, exames cancelados, é impensável ter este tipo de diagnóstico e não poder ir a um centro de saúde”, atira Cristina Nogueira, advogada e ex-doente oncológica
O caso de António Patrício, oficial de justiça, é diferente. António lembra-se dos primeiros exames a que foi submetido, no final da década de 70, quando tinha apenas cinco anos. Veio mais tarde a descobrir que sofria de uma variação de displasia óssea, hipoplasia cartilagem cabelo (HCC), uma condição sem cura que limita a sua mobilidade pela ausência de cartilagem nos joelhos. “Há dias em que é um esforço muito grande”, sublinha. Apesar de viver nas Caldas da Rainha, desloca-se de tempos a tempos a uma clínica privada, no Porto, onde encontrou uma terapêutica que permite aliviar, provisoriamente, as dores que sente no corpo. “Cada vez que vou ao Porto, deixo lá cerca de 1400 euros entre a clínica e as despesas”, diz, porque nunca encontrou alternativa no sistema público. No SNS, é seguido no Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra por um médico ortopedista.
Estes são três retratos de utentes e doentes que utilizam os serviços de saúde, públicos e privados, e que identificam, com base na sua experiência, as dificuldades que sentem e os obstáculos que consideram importante resolver. O acesso equitativo à prestação de cuidados e aos medicamentos no país e na Europa é uma prioridade assumida pela Comissão Europeia e pela Presidência Portuguesa do Conselho da União Europeia, cujo mandato está prestes a chegar ao fim. À sexta-feira, o ‘Mais Saúde, Mais Europa’ resume os momentos-chave da semana, numa iniciativa do Expresso com o apoio da Apifarma.
€12.000 milhões
é o montante aproximado do orçamento inscrito pelo Governo para o Serviço Nacional de Saúde em 2021. O valor deste ano inclui um reforço de investimento nos cuidados de saúde primários, de €90 milhões, a que se juntarão os €463 milhões do PRR para esta área
Promessas não chegam
Para Cristina Nogueira, que faz questão de realçar como sempre foi bem tratada no SNS, existem ainda áreas que precisam de ser melhoradas. À boleia da aprovação do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR), que aconteceu na passada quarta-feira, a advogada diz que “falta muita informação” aos doentes. “Acho que falta uma coisa muito importante que é explicar os direitos que os doentes oncológicos têm porque existem alguns e as pessoas não sabem”, lembra.
Em simultâneo, pede que os centros de saúde retomem a atividade normal o mais rápido possível para que seja possível recuperar o tempo perdido e diagnosticar, atempadamente, eventuais novos casos de cancro. Esta é uma opinião partilhada por Susana Neiva, que pede mais celeridade ao SNS no seguimento e tratamento dos doentes oncológicos. “É angustiante não saber o que fazer”, revela.
António Patrício mostra-se surpreendido “como é que estes profissionais [de saúde] se sentem motivados” com as condições de trabalho de que beneficiam. “Precisamos de investir mais e ter recursos humanos motivados”, acredita. Para o oficial de justiça, é preciso remodelar os grandes hospitais do país, como na capital, e garantir mais meios técnicos e de diagnóstico às unidades de saúde.
A bazuca da saúde
Inês Alves, presidente da ANDO Portugal, diz ser necessário “melhorar a qualidade dos serviços” através da recolha sistemática de dados sobre os doentes e o efeito das terapêuticas, mas também analisá-los e avaliar os profissionais de saúde. A responsável acrescenta ainda o papel do digital neste processo. “Também a centralização e digitalização dos dados, a expansão da telemedicina e formação continuada em e-Health têm de ser passos fundamentais para a qualidade dos serviços e satisfação do utilizador”.
O PRR nacional foi aprovado na passada quarta-feira com o anúncio, em Lisboa, da presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen. Ao todo, o programa de investimentos prevê gastar €1.383 milhões no SNS, sendo que €300 milhões estão destinados à transformação digital do sector. O dinheiro proveniente de fundos comunitários e empréstimos terá de ser investido até 2026.