Há perguntas que não se devem fazer a lésbicas, gays e bissexuais – um guia prático
Um guia prático de base sobre as perguntas que, embora muitas vezes não sejam feitas por mal, são ofensivas para pessoas lésbicas, gays e bissexuais
Este é um guia prático de base sobre as perguntas que, embora muitas vezes não sejam feitas por mal, são ofensivas para pessoas lésbicas, gays e bissexuais, com testemunhos de pessoas cisgénero – que se identificam com o género que lhes foi correspondido à nascença, conforme o órgão genital com que nasceram: nasceu com pénis e identifica-se como homem, nasceu com vulva e identifica-se como mulher.
Claro que, se o contexto de total liberdade de perguntas for oferecido pelas pessoas da comunidade, há mais margem para fazer perguntas. Mesmo assim, quase sempre este não é o caso.
Cada uma destas perguntas tem um preconceito velado, que aqui irei explorar. Ninguém está livre de preconceitos, mas toda a gente é capaz de os desconstruir, se assim quiser. É natural que o que é menos comum no dia-a-dia de alguém cause estranheza às pessoas e que até, a pessoas conversadoras, repulsa à primeira vista, pois é natural para o ser humano ter receio do que não conhece. Mesmo assim, todas as pessoas se podem educar, não são só as crianças. Se o mundo tem pessoas com as mais variadas características, temos de validar as pessoas como pessoas inteiras, com as suas diferenças e tentar compreender.
Proponho, também, antes de avançarmos para as perguntas em si – organizadas em secções – que, ao invés de chamarmos alguém de homofóbico/ transfóbico/ bifóbico, logo à partida, aquando um comentário desse teor, que se critique antes o comentário e não diretamente a pessoa, para que haja mais abertura para diálogo (havendo disponibilidade para ouvir e para o trabalho emocional de explicar).
Por todo o mundo, pessoas LGBTQIA+ são vítimas de preconceito em locais de trabalho, espaços públicos, hospitais e até nas suas casas pela sua família, Aliás, há 3 vezes mais possibilidades de uma pessoa jovem LGBT+ se suicidar, comparando com os jovens em geral, especialmente se não for aceite pela própria família.
Este preconceito vai muito além de comentários horríveis na rua, que já seriam maus o suficiente: há pessoas a serem perseguidas, agredidas e até mortas só por serem LGBTQIA+. No 2º Inquérito LGBTI+ da Agência para os Direitos Fundamentais da União Europeia, feito em 2019, “40% das pessoas inquiridas admitem que se sentiram discriminadas pelo menos num dos seus contextos do quotidiano, e 20% no local de trabalho; 30% afirma ter sido vítima de algum tipo de abuso no último ano, e 5% sofreu um ataque nos últimos cinco anos”. (Relatório ILGA, discriminação LGBTQ, 2019)
Há, inclusive, países em que ser LGBT+ é mesmo crime, como por exemplo, Indonésia, Marrocos, Paquistão (onde a pena máxima é morte por apedrejamento), Tunísia, etc. O mapa completo com todas as consequências legais pode ser consultado aqui.
Ora, Junho é o Mês do Orgulho LGBTQIAP+: Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transgénero, Queer, Intersexo, Assexuais, Pansexuais
Quanto ao comprimento devido da sigla, há muitas teorias e propostas. Desde que se queira compreender todas as minorias de orientação sexual e identidade de género, a meu ver, não há problema nenhum em usar um ou outro. Pode-se argumentar, validamente, que incluir a sigla completa é uma forma de visibilizar todas as minorias. Dada a extensão do artigo, foquei-me apenas em pessoas cisgénero lésbicas, gays e bissexuais. No entanto, é importante reconhecer e falar sobre a existência natural de pessoas transgénero, queer, não binárias, intersexo, assexuais e pansexuais. Tenciono fazê-lo no futuro em artigos específicos.
Quando as pessoas LGBTQIA+ crescem a sentirem-se as diferentes, as que não encaixam, tendem a pensar que há algo de errado com elas, que não são normais. Por isso é importante o orgulho – um nível acima da autoaceitação. Não vemos uma pessoa heterossexual a ser vítima de preconceito, perseguida, agredida ou morta por ser hetero. Assim, as pessoas hetero que, como piada, dizem “mas então e nós, não temos direito a um mês do orgulho hetero?”, fiquem antes contentes por não haver a necessidade de o terem: não há perigos de violência pela orientação sexual para quem é hetero.
Para tirar dúvidas sobre as diferenças entre “sexo biológico, identidade de género e orientação sexual”, aconselho o capítulo homónimo no livro “Guia Prático Antimachismo”, de Ruth Manus, a página de InstagramNão Me Calas, de Wolf, e o Glossário online da ILGA Portugal.
Então és virgem, certo? Isso não é sexo a sério…
Lá vem a história das lésbicas como as eternas virgens. Ainda há a ideia tradicional de que só há relação sexual se houver penetração de um pénis, senão não conta. Ora, mesmo a própria ideia de virgindade é um mito social, sem fundamento científico. Podem ler mais sobre esta questão no meu artigo “O Mito da Virgindade”.
Quem é o homem da relação?
Não há, são literalmente duas mulheres. Há uma ideia pré-estabelecida de papéis de género na sociedade, fazendo com que haja propensão a achar que para um casal funcionar e se completar, as duas pessoas têm de encaixar de alguma forma nesses papéis, mesmo se forem do mesmo género. Há ainda a ideia que num casal de lésbicas há automaticamente uma que tem uma expressão de género mais masculina e outra não. Tanto pode acontecer como não.
Por que namoras com uma mulher que parece um homem? Deverias estar com um homem.
Porque uma pessoa que se identifica como homem não é uma pessoa que se identifica como mulher. São características diferentes: se a característica que me atrai é alguém mulher, porque raio haveria de eu querer estar com um homem? Acima de tudo, este tipo de conselhos – “deverias estar com um homem” – é intrometer-se à séria na vida alheia.
Como podes saber se és mesmo lésbica se nunca estiveste com um homem?
Da mesma forma que um homem hetero não precisa de ter uma relação homossexual para saber que é hetero: uma pessoa sente o que a atrai e o que não.
[testemunho] Somos duas mulheres e temos filhos. Insistem em perguntar quem é a mãe, como se só que engravidou fosse a “verdadeira mãe”.
Percebo que seja uma curiosidade, mas, por muito que possa haver essa curiosidade, guardem-na para dentro. Isto é um nível acima de problemático a perguntar a um casal hetero que adoptou quem são os “pais verdadeiros” da criança.
Esta problemática de confundir biologia com orientação sexual também vai ao encontro da pergunta problemática “Mas e se um dia quiseres ter crianças?” Sendo duas mulheres cis, até têm as duas útero, só precisam de esperma de um dador e até podem escolher quem engravida (depreendendo que é algo possível para as duas). Ainda, podem sempre adoptar. Acho incrível como as mesmas opções estão disponíveis para casais heteronormativos quando ou ela ou ele são inférteis, ou têm problemas de fertilidade, mas as pessoas não conseguem conceber automaticamente os mesmos tratamentos como disponíveis para casais homossexuais.
Fazem a tesoura (scissoring)?
Acredito que de alguma forma possa ser agradável para algumas mulheres, quem sou eu para julgar, mas o sexo lésbico não é à volta do scissoring – se puder, posicione duas barbies na posição e veja como parece extrememanete desconfortável: a tesoura não é o equivalente ao missionário no sexo heterossexual. Acredito que esta crença à volta do scissoring como prática principal para lésbicas se deve ao facto de haver gente que não consegue conceber sexo em que não há contacto máximo direto entre os orgão genitais das pessoas envolvidas, como se o mais próximo de sexo “a sério” – que é considerado o penetrativo – fossem duas mulheres nesta posição que, honestamente, é só cómica e irrealista. Há muito mais prazer no corpo para lá da penetração e não faltam mãos e brinquedos para penetrar, se assim desejado. Ainda, recentemente, tornou-se viral The Knee Thing no Tiktok, o que só mostra como as pessoas são mal informadas quanto a sexo lésbico, já que esta prática é muito comum nesse contexto. (O artigo que identifiquei considera que é preliminar, mas, a meu ver, tudo que dá prazer em contexto sexual consentido é sexo).
A vida sexual de um casal só deve ser partilhada em contexto consentido para tal, por todas as partes envolvidas. Imagine-se perguntar a uma casal aleatório na rua se fazem posição sexual de lótus…
É isso que queres para o teu futuro?
Este tipo de pergunta depreende que ser lésbica é algo mau. É o que se pergunta quando alguém não se aplica nos estudos, ou bebe muito ou consome drogas regularmente. Associar uma orientação sexual a algo mau e problemático não é só errado como nocivo.
Não tens medo que, se todos fossem como tu, vocês pudessem levar a humanidade à extinção?
Primeiro, esse contexto não é de todo realista, porque assim como nem toda a gente é hetero, nem toda a gente é gay, e sempre assim foi (por muito que muitos não o assumam ou tenham assumido). Ainda, há imensos casais de homens gays que querem adotar e adotar crianças. Essas crianças podem vir a constituir família biológica. Para quem acha que há mais probabilidade de uma criança com pais gays ser gay, engana-se: a orientação sexual é algo que faz parte da pessoa. Como refere Ruth Manus, chama-se “orientação sexual” e não “opção sexual” – esta também é a resposta para a pergunta “Mas porque é que escolheste isso?. Uma criança filha de pais gays poderá estar mais à vontade com a sua orientação sexual e ter menos problemas em fazer questões e explorar a sua sexualidade, mas isso não lhe muda a orientação sexual, seja ela qual for.
És ativo ou passivo? Ativos são menos gays e passivos são bichas
(A versão que transparece ainda mais preconceito é “És o homem ou a mulher?”, pergunta feita pelo pai de um seguidor quando este lhe contou que era gay)
Há a ideia de que quem penetra é mais macho e quem é penetrado é menos. Este tipo de preconceito tem como base a ideia de papéis de género da binomia homem e mulher. Para além de ser uma pergunta extremamente pessoal, encontra-se na mesma família de comentários como “não tenho nada contra gays, mas bichas…” Ter uma expressão de género mais feminina não faz de um homem menos homem. Ser penetrado ao invés de penetrar, não faz de ninguém menos homem.
A pergunta “quem é a mulher da relação?” vai beber à mesma fonte de preconceito ou de desinformação.
Mas isso, então, é por fases? O facto de gostares umas vezes de raparigas e outras de rapazes?
Não é por fases, é por pessoas. Assim como uma pessoa hetero não se atrai por toda a gente do género oposto, nem tem sempre o mesmo “tipo” de pessoa por quem se atrai. Quem é bi não se atrai necessariamente por um órgão sexual, atrai-se pela pessoa inteira.
Gostas mais de homens ou de mulheres?
Ora, por muito que esta questão seja semelhante à anterior, decidi incluir por uma questão pessoal: a relação que uma pessoa bi tem com homens pode não seguir os mesmos padrões que a relação que tem com mulheres. Por exemplo, no meu caso, com mulheres sinto que crio uma ligação emocional de forma mais rápida do que com homens. Falei disto à minha psicóloga e ela disse-me que é algo muito comum para pessoas que se sentem atraídas pelos dois géneros. Acredito que tal tenha a ver com a forma como somos criadas: entre meninas, raparigas, mulheres, é permitida uma aproximação física e emocional maior pela sociedade em geral, de forma tida como normal, durante o crescimento. Até porque, infelizmente, “gay” ainda é usado como termo depreciativo entre homens, mas nem tanto entre mulheres. Duas adolescentes de mãos dadas é considerado bem mais banal, e não necessariamente romântico, do que dois adolescentes rapazes de mãos dadas.
Como é que és bi se nunca namoraste com uma mulher?
Porque as pessoas sentem atração. Consegues saber se te sentes atraída/o por uma pessoa sem necessariamente namorares com ela ou fazeres sexo com ela. É igual para pessoas hetero: um homem hetero não precisa de namorar com um homem para saber que é mesmo hetero.
Seres bi é só uma fase, não é? Tu gostas é de homens.
Assumir o que uma pessoa gosta não é correto. Este comentário parece-me uma negação acerca da orientação sexual da receptora da mensagem, como quem diz: “Eu preferia que fosses hetero, era fixe que isto de ser bi fosse só uma fase”.
Teres casado com um homem faz de ti heterossexual?
Uma pessoa bissexual que se case com um homem, faz dela uma pessoa bissexual numa relação heterossexual. Tão simples quanto isso. Esta pergunta, a meu ver, não tem muito de ofensivo, é só uma procura de compreensão.
Agora que conheces orgasmos com raparigas, já não tens a mesma tesão por sexo com pénis?
Honestamente, ri-me um pouco. A partir do momento em que uma mulher tem orgasmos com outras mulheres, apercebe-se ainda mais de como o sexo precisa de ser menos falocêntrico: porque o pénis em si não é essencial para o prazer. Claro que há mulheres para quem o pénis é super importante, mas não faltam formas de o substituir ou de ter prazer sem qualquer tipo de penetração. A partir do momento em que uma mulher tem sexo com outra mulher, apercebe-se, sim, de mais dimensões do sexo.
A maior parte destas questões vem de um lugar de desinformação, curiosidade e de suspensão de crença na diversidade. Por muito que possam não ter a intenção de serem ofensivas, acabam por ser.
Toda a gente é passível de se educar, só é preciso querer.
“Certas vidas são extremamente desafiadoras. O mínimo que podemos fazer é ter respeito por elas”. Ruth Manus, pág. 80, Guia Prático Antimachismo.
Deixo, ainda, aqui algumas associações LGBTQ+ em Portugal: ILGA, Rede Ex Aequo, Associação Plano i, Casa Qui.
Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: clubeexpresso@expresso.impresa.pt