Geração E

Tudo às claras: liberdade sexual

Tudo às claras: liberdade sexual

Clara Não

Ilustradora, ativista, autora

Continua a haver o papel da mulher como quem dá: damos a nossa virgindade, damos sexo, etc. O homem é quem leva de nós e nós somos quem damos para os outros. As respostas de Clara Não às perguntas dos seguidores

Na última segunda-feira de cada mês, respondo a uma seleção das perguntas colocadas pelas pessoas que me seguem no Instagram. Este mês de março temos como tema “Liberdade Sexual”, não fosse este o mês do 25 de Abril. Inspirada na ousadia das Novas Cartas Portuguesas, quebremos, então, aqui, o papel da mulher recatada e do lar, sem esquecer o que significa empoderamento feminino.

Repare-se que as respostas dadas estão escritas num tom casual, de miga para miga, e respeitam as palavras usadas nas perguntas por quem as fez.

Como me posso sentir sexualmente empoderada em relações sexuais casuais?

Primeiro, importa perceber se fazes sexo casual como um meio para te sentires empoderada. Não precisas de ter relações sexuais casuais para seres empoderada. Se queres sexo casual então tem-no à vontade, com segurança, e podem ser, sim, um dos elementos que te faz sentir empoderada: a controlar as tuas ações e a viver o teu corpo como bem te apetece. Por esta razão, há mulheres que preferem que as relações sexuais casuais sejam sempre na sua própria casa, para que possam estar sob o controlo de como têm as coisas à sua disposição na casa e no quarto, com os preservativos que mais gostam (recomendo todas as mulheres que se envolvam com homens a terem), com o lubrificante, brinquedos… E podes viver o momento empoderado de mandar o gajo embora quando tens coisas para fazer, ficando tu na tua cama tranquila.

Segundo, há quem tenha dificuldade em comunicar abertamente em relações casuais, porque não há grande, ou nenhuma, ligação emocional com a pessoa. Eu vejo as coisas de outra forma: podes comunicar tudo sem nenhum floreado, sem teres imenso medo de ferir susceptibilidades, porque não há ali uma ligação emocional que corra o risco de sofrer danos. Claro que deves respeitar a pessoa, isso é básico, mas a maneira que eu vejo de empoderamento em relações sexuais casuais é seres mesmo honesta: o que gostas e gostaste, o que não gostas, aproveitar para experimentar o que queres sem qualquer pudor. Idealmente, em qualquer relação seria assim, com comunicação total.

Ainda, acho que pode ser relevante falar de um assunto pouco falado que é o carinho casual: um colo emocional temporário casual que duas pessoas procuram uma na outra, sem qualquer pretensão de transformar aquela ligação num namoro. Claro que isto para acontecer tem de ser mútuo e comunicado previamente.

É possível passar anos a achar que sou heterossexual e agora descobrir que nunca senti atração por homens?

Resposta rápida: sim. Desde pequeninas que nos perguntavam “tens namorado?”, sem outra opção de género, para além de sexualizarem logo à partida as amizades na infância entre géneros opostos. Todos os filmes corriqueiros de comédias românticas que vimos enquanto crescíamos eram heteronormativos (à excepção do Brokeback Mountain, mas esse acho que nem pode ser considerado um filme corriqueiro). É como se nos dissessem que ser hetero era a única opção válida. Se toda a gente te fala como se fosses automaticamente hetero, é natural que tenhas achado que podias ser hetero.

No meu caso, em adolescente cheguei a sentir-me atraída por raparigas, mas quando me apaixonei por um rapaz, descartei a possibilidade de ser lésbica — achava que só se podia ser uma coisa ou outra. Passei a pensar que a minha atração visual pela beleza do corpo e não sexual nem emocional. Só recentemente aceitei a minha sexualidade em pleno. A minha última relação foi com uma mulher. Por isso, miga, estamos juntas. Desbrava essa sexualidade!!

Sobre a diferença entre uma relação hetero e uma homossexual, sinto que na primeira há uma lista de regras pré-estabelecidas de papéis de género — há relações que seguem e outras que não, felizmente. Estes papéis sociais são os esperados da binomia de género: o homem é o que protege, é a conchinha grande, não usa maquilhagem, etc; a mulher é a que demora mais a arranjar-se, gosta de sentir-se protegida, é mais sensível, etc.

Se essa lista por um lado é limitadora e muitas das vezes também forçada através da educação quando crescemos, por outro lado pode trazer uma sensação de segurança a muita gente: sabem que se seguirem os seus papéis, não serão questionadas socialmente. Numa relação homossexual, o que eu senti, foi que tinha uma mesa enorme à minha frente forrada com uma folha branca, com todos os materiais disponíveis para eu riscar, explorar, pintar: não há papéis a seguir. É uma sensação muito bonita. Claro que comporta elementos sociais exteriores que são uma barreira — cof cof homofobia —, mas na relação, entre ti e ela, são vocês que fazem as regras todas, ou que quebram todas as que poderiam haver.

Como nota final, nunca perguntem a uma mulher numa relação lésbica se aquilo é só uma fase ou “quem é o homem da relação”. São duas mulheres numa relação, duas pessoas inteiras.

Não me consigo masturbar, sinto que é algo “sujo”. Porquê?

Porque fomos ensinadas que é algo sujo, quando não é. Socialmente, continua a haver o papel da mulher como quem dá: damos a nossa virgindade, damos sexo, etc. O homem é quem leva de nós e nós somos quem damos para os outros. Quando nos masturbamos, estamos a ser autossuficientes sexualmente. É muito comum haver um sentimento de culpa em relação à masturbação. (Deixo duas notas: não se dá sexo, faz-se sexo em conjunto; e a virgindade é um conceito social).

O teu corpo existe para ti, antes de tudo. Vê páginas como a da Tânia Graça e a da Platanomelón. Talvez ver pessoas à vontade a falar sobre masturbação te ajude.

Ainda, a masturbação pode ser feita de muitas formas, não precisa de ser penetrativa nem precisa de ser feita com o teu próprio corpo. Há pessoas que preferem de uma forma ou de outra: não há forma correta e errada. Já experimentaste vibradores externos, estimuladores do clitóris, que possam ser usados por cima das cuecas, ou até uma almofada? O facto de não haver toque direto pode ajudar, porque não sujas nada, não usas as tuas próprias mãos.

Honestamente, acho que seria importante desconstruíres esse impedimento em terapia, com uma pessoa psicóloga ou sexóloga. Por exemplo, este tipo de culpa é muito comum quando há uma base de educação religiosa. Não estás sozinha, eu própria sentia-me muito culpada no princípio, antes de fazer terapia.

“Sons” vaginais após a penetração é natural? Como se deve parar?

Resposta rápida: sim.

A primeira vez que isso me aconteceu — podemos chamar-lhes “puns vaginais” ou, então, a versão chique, “flatos vaginais”— , o rapaz com quem eu andava disse-me: “não podes deixar isto acontecer”. Como se a culpa fosse minha. Fiquei muito confusa.

A verdade é que é algo normal e comum, e até pode ser um momento de riso, quando há informação sobre o que realmente se passa. Dando uma comparação brejeira: sabes quando comes e arrotas no fim? Igual. Quando se dão os flatos vaginais, é porque entrou ar durante a penetração. Se o ar entra, tem de sair.

Leonor de Oliveira, psicóloga e terapeuta sexual, no seu recente livro “É Normal?”, diz:

“Os flatos vaginais, ou queefing, são fenómenos normais que ocorrem quando o ar é forçado para o interior da vagina, como quando há sexo penetrativo, e é depois expulso devido à contração natural dos músculos da parede vaginal. (...) é importante pacificarmo-nos com as nossas manifestações corporais de excitação e prazer. Percebo (...) que estas manifestações ruidosas possam ser inconvenientes e stressantes. Se for o caso, podem optar por posições que não forcem tanto ar para o interior da vagina, nomeadamente aquelas em que os corpos estão mais juntos ou em que há menos vaivém do pénis no exterior da vagina (...). (pp. 65, 66)

O meu filho de 10 anos anda incomodado porque uma menina da sala dele passa a vida a apalpar-lhe o rabo. Como é o rapaz “a vítima” ninguém valoriza. A professora valorizou, e ainda bem, mas regra geral toda a gente desvaloriza. Fiquei a pensar nisto.

Liberdade sexual também é podermos ter o controle sobre o nosso corpo, impormos os limites sobre o nosso corpo em relação à interação com outras pessoas, e levarmos a sério os limites que as outras pessoas impõem sobre elas mesmas.

Ora, neste caso, voltamos aos ditos papéis sociais limitadores que nos são impostos: “um rapaz nunca pode ser a vítima porque, como é rapaz, automaticamente vai gostar de ser apalpado”. Errado. É como se fosse o nível 0 de “os homens querem sempre sexo e estão sempre prontos para terem sexo”. Todos os géneros têm direito a ver o seu corpo respeitado segundo os limites que a própria pessoa impõe em relação ao seu corpo. Ser apalpado contra a sua vontade é sempre mau, não importa o género da vítima.

O abuso e a violação também acontecem a rapazes e não é só por se tratarem de rapazes que é menos problemático. Há muitos homens que, em tom de brincadeira, dizem “eu não me importava nada de ser violado por x mulher”, mas esquecem-se que uma violação pressupõe o não consentimento. Uma relação sexual consentida nunca poderá ser uma violação. Por isso, menos piadas que acarretam muito preconceito, mais empatia independentemente do género.

Por fim, e acima de tudo, lamento imenso que o teu filho esteja a passar por isso e fico contente por ele ter uma professora com sensibilidade. Espero que a sociedade no geral acompanhe essa evolução.

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: clubeexpresso@expresso.impresa.pt

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