
À sexta temporada, o britânico baralhou e voltou a dar. Os cinco novos episódios de “Black Mirror” projetam o medo no passado e vão ao sobrenatural, mas nem por isso deixam o espelho menos negro
À sexta temporada, o britânico baralhou e voltou a dar. Os cinco novos episódios de “Black Mirror” projetam o medo no passado e vão ao sobrenatural, mas nem por isso deixam o espelho menos negro
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Tecnologia e distopia sempre andaram de mãos juntas na série que Charlie Brooker criou em 2011 para o Channel 4. A primeira temporada teve apenas três episódios, mais do que suficiente para aguçar o apetite. A fórmula de uma série em que cada episódio funcionasse como uma história independente, sem qualquer ligação entre si, com realidades e elencos diferentes, como uma antologia de contos ligeiramente futuristas — tanto que o futuro projetado parecia, em muitos episódios, ter lugar depois de amanhã — revelou-se absolutamente irresistível no início da década passada.
O único elemento comum a cada episódio eram as personagens, por regra a braços com o potencial nocivo de tecnologias futuristas inspiradas no presente — era a realidade aumentada, a inteligência artificial, os drones ou as redes sociais e o comportamento em manada que propiciam. Personagens criadas por Brooker, que assumiu sozinho a escrita da maioria dos 28 episódios, nalguns dividindo créditos com argumentistas convidados, e só por uma única vez cedendo a batuta criativa. E a quem: a Jesse Armstrong, alguns anos antes de criar “Succession” (foi em 2011, no terceiro episódio, ‘The Entire History of You’).
“Black Mirror” seguiu o habitual caminho reservado às séries de culto, segredos mal guardados partilhados entre amigos, fadados a ganharem nome no boca a boca e condenados a serem consumidos por vias menos legais, que eram as únicas possíveis. Antes de a Netflix tirar a série à televisão pública britânica, o que ajudou “Black Mirror” a chegar ao mainstream, houve mais uma temporada (2013) e ainda um episódio especial de Natal (2014). Estávamos em 2016, quando a terceira temporada, com o dobro de episódios a que estávamos habituados, chegou à Netflix. A quarta, também com seis episódios, estreou em 2017. O ano seguinte trouxe um filme interativo, “Bandersnatch”. Em 2019 chegou a quinta temporada, e, com ela, o regresso ao formato de três episódios.
Até que, depois de uma pausa de quatro anos, “Black Mirror” voltou com mais cinco episódios e um elenco de luxo composto por gente como Salma Hayek, Michael Cera, Aaron Paul, Josh Hartnett e Kate Mara. E voltou diferente. Se a temporada anterior já denunciava que a fórmula pudesse ter as suas limitações e, se calhar, até um prazo de validade, com a sexta temporada Charlie Brooker parece querer mudar o paradigma. “Cansei-me um pouco de escrever episódios em que revelo que as personagens, afinal, vivem dentro de um computador. Por isso, uma das coisas que quis fazer foi abanar os fundamentos que definem a série”, disse Brooker em entrevista a uma publicação britânica.
E abanar os fundamentos ele fez. Se o primeiro episódio, ‘Joan Is Awful’, brinca com a ideia de mundos simulados e coloca a inteligência artificial ao serviço da indústria do entretenimento — num momento em que nos Estados Unidos persiste a greve dos argumentistas que lutam, entre outras coisas, para banir de Hollywood o uso de ferramentas de IA como o ChatGPT —, o segundo episódio, ‘Loch Henry’, leva a ação não a um futuro próximo, mas a um passado pouco distante, os anos 90, onde se procura desvendar um crime misterioso.
‘Beyond the Sea’ é um belo exercício de retrofuturismo contrafactual, ficção científica pura e dura passada em 1969 que envolve astronautas, réplicas robotizadas, transferências de consciência e um crime. Como quase sempre, o que pode correr mal vai correr mal. Mas se o episódio-tipo de “Black Mirror” envolve inovações tecnológicas nesse “correr mal”, a dupla de episódios que fecha a sexta temporada — ‘Mazey Day’ e ‘Demon 79’ — leva a série por caminhos sobrenaturais, com lobisomens e um fim do mundo que só uma série de sacrifícios humanos pode evitar.
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