Em Maputo, esta é a estação do grande calor. “Calor de derreter uma pessoa”, confirma Paulina Chiziane. Coisas que só o ciberespaço permite: de um lado alguém em Maputo a passar um lenço pelo rosto suado, do outro alguém em Lisboa a abrigar-se contra o frio, a olharem um para o outro. Paulina está lá fora, no jardim, a derreter, e o verde contrasta com os olhos acinzentados. O filho Domingos, a quem ela chama “assistente”, corrige a posição do ecrã — ambos abrem o mesmo sorriso. Paulina tem também uma filha e cinco netos. E 11 livros num catálogo que traça o retrato de Moçambique — um país ainda em busca de uma identidade.
Em 2021, Paulina venceu o Prémio Camões e mais uma vez inaugurou uma era. À circunstância de ter sido a primeira mulher a publicar um romance em Moçambique, com “Balada de Amor ao Vento”, em 1990, somou-se a de ser a primeira mulher africana a receber a mais prestigiosa distinção da língua portuguesa. Amar a língua não lhe evita as lutas que por vezes trava contra ela, os conflitos com um léxico que resiste a nomear África e que, quando o faz, não impede um discurso de supremacia.
Nascida em Manjacaze, província de Gaza, a sul de Moçambique, em 1955, Paulina Chiziane cresceu em Maputo, onde frequentou a escola católica e estudou linguística na universidade. Foi membro da Frelimo (Frente de Libertação de Moçambique) na juventude e trabalhou na Cruz Vermelha durante a guerra civil. Mudou-se para a Zambézia, a norte, onde hoje reside.
Em Portugal tem publicados os romances “Balada de Amor ao Vento”, “Ventos do Apocalipse”, “O Alegre Canto da Perdiz” e “Niketche: Uma História de Poligamia”, todos pela Caminho.
Depois de “A Voz do Cárcere”, o seu último livro, escrito a meias com Dionísio Bahule — com as vozes dos reclusos nas prisões, que os dois foram ouvir —, impôs a si própria uma paragem. “Estou a fazer umas folgas. Não tenho escrito muito, mas estou a fazer textos para música”, conta ao Expresso.
“Canções?”, perguntamos.
“Sim, bonitas. Junto-me aos jovens e já lançámos alguns vídeos. A temática é a liberdade, o povo africano, o meio ambiente. Valores universais.”
Disse que nunca teve a intenção de ser a primeira. Mas foi a primeira mulher em Moçambique a publicar um romance — abriu esse caminho. O que é que isso significa para si e para as mulheres do seu país?
Significa muita coisa. Quando comecei a escrever, existia o preconceito cultural segundo o qual as mulheres eram seres inferiores. Havia também preconceitos coloniais, de que as mulheres podiam apenas escrever poeminhas de amor e cantigas de embalar e não tinham a capacidade de trabalhar na língua portuguesa. Essas foram algumas das barreiras que tive de vencer. Não foi fácil e não sabia exatamente o que estava a fazer, mas o gosto de contar uma história fez com que eu fosse escrevendo e escrevendo.
E de onde vem esse escrever? Como começou?
Lembro-me de uma marca na escola primária [católica]. Fizemos uma redação, e a professora, que era uma freira, disse que o meu texto estava muito mal escrito em português, mas que eu tinha escolhido palavras com alma. Olhei para ela — era a irmã Francisca — e pensei: o que é que está para aqui a dizer? Depois corrigiu a minha redação, colocou-a como deve ser, e foi lida no Domingo de Páscoa, na igreja. Isso encheu-me de orgulho. Mas ficou aquela dúvida: o que é isso de as palavras terem alma? Mais tarde, no ensino secundário, entrei em contacto com a poesia de Florbela Espanca e encontrei um verso que nunca mais esqueci: “O coração das pedras a bater.” A minha confusão aumentou. Então, as pedras têm coração? As palavras têm alma? Nos meus tempos de adolescente, tinha a mania de fazer um diário, o ‘diário dos sonhos’. Acordava de manhã, tentava lembrar-me dos sonhos que tivera durante a noite e escrevia-os no diário. Chegava sempre atrasada à escola. Era sempre a última a tomar banho, a última a sair de casa, porque tinha de registar o sonho da noite anterior. Infelizmente, esse caderninho perdeu-se. Posso dizer que sou um ser noturno. Ainda hoje, durante o dia, vejo o mundo a correr e a passar, mas as noites, para mim, têm um encanto especial. Fico a pensar no que aconteceu, no que as pessoas fizeram, e quando dou por mim já estou a rabiscar palavras. Ser escritora faz parte da minha natureza. Posso estar no meio de uma multidão, mas estou sempre só, a processar o que vejo.
O Prémio Camões coloca-a como uma das principais representantes da escrita em português. Qual é a sua relação com a língua portuguesa?
É uma relação de amor. E nas histórias de amor há sempre conflitos. As minhas lutas com a língua portuguesa são várias. Moçambique é este país enorme, com diferentes línguas locais, e falar em português é algo que nos dá comunicação e mobilidade. Saio de Moçambique, viajo pelo Brasil, por Portugal, vou para outros países, comunico com outras culturas e povos a partir da língua portuguesa. Contudo, do ponto de vista prático, existem conflitos. A língua portuguesa, porque veio da Europa, nomeia a cultura, a flora e a fauna da Europa. É muito comum entre nós, escritores africanos, falarmos de pássaros. Nesta região, onde se fala xangan, a língua nomeia-os. Mas a língua portuguesa não penetra tão fundo, porque este pássaro é característico deste lugar. De vez em quando dou por mim a rir-me dos glossários que faço. Temos uma fruta muito bonita, a que chamamos massala, redonda, bem cheirosa, que todas as crianças comem, mas o que é que eu digo para falar dela num texto em português? Massala é uma fruta esférica de casca dura que parece um coco mas não é um coco? É um palavreado sem fim para dizer que há uma fruta, neste lugar, que a língua portuguesa não consegue nomear. O mesmo se passa com as flores. Acredito que o tempo vai resolver estes problemas, que o léxico vai acabar por abrir-se.
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